"Agrupados nas esquinas, os homens ociosos esperavam as horas passar, enquanto os meninos disputavam a sucata e as mulheres lutavam para combater a deterioração".
(De Amor e de Sombra – Isabel Allende)
Misérias... de todos os tamanhos, sem distinção de idade, de credo, etnia ou sexo. As degradações inapelavelmente representam as multidões e são a voz ou a ausência de voz da maioria. A maioria ou a grande e misteriosa instituição, ou o imenso e desconhecido partido político, ou as incontáveis fileiras do exército que não é mais de reserva, mas sim de vultos sem perspectivas de aproveitamento, pois não podem consumir – missão esta indispensável para um Ser ser considerado alguém ou talvez ser Ser Humano. (Ser ou não ser... como já problematizava Shakespeare). Eles estão em todos os lugares, mas estão cada vez mais perto. Buscam os restos, aguardam as sobras da boa vontade. Integram a comprida caravana que aceita a todos e de todos os lugares, porque vão e vêm juntamente de todos os lugares. Percorrem os caminhos e travam os embates cotidianos, que, não se sabe, se serão sempre os mesmos. São os andarilhos que se reconhecem já que as pobrezas são iguais, anônimas, e por isso mesmo são também para os outros, não raras vezes, invisíveis.
Isabel Allende remontou uma palavra-chave, um paradigma, um conceito gerador de outros, uma idéia, uma prática e principalmente um poder: a solidariedade. Ela é – e não as cifras egoístas que amontoam lucros – verdadeiramente a mola propulsora que fez a humanidade se alimentar, construir casas, descobrir remédios, encurtar distâncias, inventar as artes, buscar a democracia e constituir a razão e a ciência em núcleos arrebatadores na Vida. Evidentemente, aqui não se fala de uma solidariedade que ardilmente soube fragmentar e subverter a noção de partilha ou daquilo que deveria ser para todos em privilégio de uma minoria. Uma solidariedade, em suma, às avessas, restrita a um grupo ou uma classe. Essa, em definitivo, não nos interessa.
Aquela que nos serve se utiliza das dificuldades para empregar outro sentido à Vida, mas, de modo algum, necessita das mesmas para se redimir. A solidariedade vindoura um dia, quem sabe, não mais usará a opressão como força aglutinadora. A outra solidariedade nesses dias, portanto, esquecerá que a sua gênese transformadora foram as injustiças.