Pelo tempo recorde que levou para ser fechado (uma semana), pelo seu montante inédito (US$ 30 bilhões), pela suavidade das condições exigidas do governo brasileiro, pela conjuntura duplamente desfavorável (as sérias dúvidas sobre as chances de êxito do candidato do governo na sucessão presidencial brasileira e as não menores incertezas sobre os rumos da economia americana), pela atitude de "negligência benigna" reinante em Washington em relação à América Latina (o presidente George W. Bush - contrariando promessas do candidato - sempre deixou claro que os países da região pouco poderiam esperar de sua administração em matéria de alívio para as suas aflições financeiras), o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciado na quarta-feira é um evento literalmente excepcional não apenas na história das relações do Brasil com o organismo, mas também na história do Fundo Monetário Internacional. Tomara que represente também um ponto de inflexão no quadro geral das políticas da potência hegemônica diante daquelas poucas nações que têm tudo para se tornarem atores respeitáveis na cena econômica global - menos a capacidade de se alçarem a essa condição sem depender do aporte continuado de recursos externos, o que as mantém permanentemente expostas aos vagares da irracionalidade intrínseca dos movimentos especulativos do capital.
Mudaram os Estados Unidos ou mudou o Brasil? O insuspeito Wall Street Journal, que - a partir de uma óptica altamente contestável - se manifestara contra a ajuda do Fundo ao Brasil, sob o argumento de que ela não conseguirá evitar que o País decrete moratória "se os brasileiros quiserem entrar no pântano da febre socialista", elegendo um dos dois "populistas de esquerda que lideram as pesquisas", parece endossar o ponto de vista segundo o qual "o governo (de Washington) finalmente cedeu à pressão cada vez maior de banqueiros americanos, que temiam que uma moratória brasileira pudesse devastar economias na América Latina e ter repercussões nos Estados Unidos".
Além disso, "num momento em que o nervosismo no mercado acionário americano ameaça a recuperação econômica do país, a Casa Branca estaria menos inclinada a assumir o risco de que a turbulência na América Latina possa ter efeitos perversos ao norte". Prova disso também seria o empréstimo-ponte de US$ 1,5 bilhão ao Uruguai, deixando apenas a combalida Argentina em prolongado compasso de espera. Conquanto esse raciocínio seja, sem dúvida, plausível, é certo que a volta atrás do governo Bush foi - enfim - decisivamente influenciada por dois aspectos fundamentais do panorama brasileiro.
Um é que, muito diferente do que se passa na Argentina, a crise de confiança dos mercados financeiros no Brasil nada tem que ver com a situação e as perspectivas da "economia real" do País e nem com a condução da política econômico-financeira do atual governo. O segundo aspecto é o do prestígio internacional conquistado pelo presidente da República. O acordo fora de série com o FMI outra coisa não é, em última análise, se não o reconhecimento do quanto o Brasil mudou, sob a liderança de Fernando Henrique, e uma prova de confiança no seu papel de avalista do amadurecimento da democracia brasileira. E isso, embora ele seja, entre todos os chefes de governo do mundo ocidental, o crítico mais sistemático e consistente não só do unilateralismo e das políticas protecionistas de mão pesada do presidente Bush, como também dos critérios que presidem o funcionamento do sistema financeiro criado em Bretton Woods.
Os Estados Unidos sabem distinguir entre as críticas construtivas de um estadista e objurgatórias ideologizadas do reles populismo queimador de bandeiras. "O mal que os homens fazem lhes sobrevive", disse Shakespeare, pela boca de Marco Antonio, no enterro de César. "O bem, com freqüência, é enterrado com os seus ossos." Mas há sinais de que a racionalidade que Fernando Henrique começou a injetar na vida pública brasileira poderá sobreviver ao seu governo. Agindo como estadista, ele fez o que estava ao seu alcance para persuadir Lula e Ciro Gomes a não criarem obstáculos ao acordo - e nenhum dos dois, de fato, se manifestou contrário a ele, mesmo porque sabem que o principal beneficiário do acordo agora concluído será o sucessor de Fernando Henrique Cardoso. Se o sucessor mantiver o compromisso com as "políticas econômicas sadias" de que fala o comunicado do FMI e já prometidas pelo menos por Lula, ele terá passado pelo "teste de maturidade política" que, nas palavras do economista Paulo Rabello de Castro, espera a próxima administração, qualquer que ela seja.