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Erotico-->AS AVENTURAS DO PADRE DEODORO EM CAMPOS ETÉREOS — XIX -- 04/08/2003 - 09:54 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Argüido diretamente, propenso a tornar todos os temas elucidados, para chegar à verdade absoluta, não se retraiu o Monsenhor, mesmo porque se lembrou de que não havia nenhuma prática em confronto com os mandamentos das leis de Deus e da Santa Madre Igreja que não tenha contado no confessionário.

— Posso começar pelo fim?... Vejo que sim. Então, devo dizer, a meu favor, Hermógenes de prova, que os meus cursos eram ministrados segundo o interesse demonstrado pelas turmas. Se, por acaso, alguma classe desejava fazer “corpo mole”, aí eu incrementava a programação com outros tópicos, ensejando maior devotamento às pesquisas e aos estudos, o que me forçava, evidentemente, a trabalho ainda mais dedicado. O que posso lamentar, nesse aspecto, além de me considerar, como já afirmei, bastante condescendente, é que foram apenas dezoito os meus anos de magistério.

Enquanto Hermógenes apontava o polegar para cima, Deodoro se preparava para o assunto mais pungente.

— Foram exatamente dezesseis as mulheres com quem satisfiz as necessidades fisiológicas. Temo que este número seja bem inferior, feita a estatística, do que a média dos padres, o que, de resto, não justifica os meus deslizes. Todas as vezes, corri a confessar os meus pecados. Contudo, a fúria das paixões carnais — ou a novidade dos relacionamentos proibidos — me permitiam repetir as faltas por períodos que variaram de dois meses a quatro anos, sempre prometendo aos confessores que iria abandonar o vício. Para que não levantem a dúvida, devo dizer que segui as ovulações de todas as mulheres e que não deixei nenhum pretenso herdeiro. Deixei correr algumas lágrimas secretas em diversas oportunidades, quando as cúrias metropolitanas me deslocavam para longínquas freguesias, todas as vezes com a expressa recomendação de não levar comigo aquela com quem partilhava o leito na ocasião. Com o tempo, como ocorre com todos, a vontade de buscar aventuras cedeu perante os riscos, já que as mulheres não me procuravam como quando jovem, e passei ao chamado vício solitário, cada vez menos freqüente, mas sempre muito menos punido pelos confessores. Não podemos esquecer-nos de que também eles tinham o de que se arrepender. O que não sei, agora, é como repercutiriam estas minhas palavras nos espíritos dos possíveis leitores daquela obra que ameaçamos escrever. O que eu não gostaria de provocar é reação de desaprovação pela hipocrisia antiga ou desfaçatez atual. Se o resultado fosse uma luta generalizada para que os sacerdotes pudessem voltar a serem pais de família, estreitando os laços amorosos e impedindo que a vontade alheia venha a perturbar a paz moral entre as pessoas que se entendem, sem ofensa a nenhum direito adquirido por outrem, como se dá com os matrimônios legalmente consagrados pela bênção do oficiante, justificar-se-ia que me visse extremamente satisfeito. Vejam que estou condensando o meu pecado unicamente nas premissas religiosas e na configuração de dolo ou de má-fé na prática do ato sexual, tendo em vista a concordância prévia juramentada de me manter casto. Mas, se nem São José o era...

Hermógenes queria inferir conclusões:

— Meu querido Mestre, a sua argumentação contraria, é verdade, os dispositivos do direito canônico, mas é sumamente agradável aos nossos ouvidos e à nossa consciência. Se estávamos considerando-nos em pecado mortal, agora vemos que era venal o deslize, de modo que se transforma o grave delito contra as leis de Deus e da Igreja, para se constituir apenas em maior ou menor agressão a pessoas muito bem individualizadas.

Foi Joaquim quem desiludiu o outro:

— Pois, meu caro Hermó, se me permite o hipocorístico, aí é que se encontra o pior, pois, pelo que me consta, conforme você mesmo sugeriu a Deodoro, a gente só comete dois tipos de pecados: um, contra o próximo.; outro, contra si mesmo. Contra Deus, ninguém peca, porque jamais alguém irá alcançar denegrir a imagem do Pai, nem que grite, esperneie, renegue a própria vida, amaldiçoe e pratique todos os atos que as religiões consideram agressivos à Divindade. Na Terra, há cultos, seitas, religiões ou simples práticas religiosas que punem com a morte e a excomunhão, sem dó, qualquer palavra dita com sentido pejorativo em relação ao Criador. Mas são sempre os homens que aplicam as leis, julgando, condenando e executando as penas. Nunca se comprovou que foi Deus quem afogou ou queimou as bruxas. Como ainda não se pode atribuir-lhe as vozes com que as consciências acusam os pecadores. Eu, por mim, devo dizer que não me alegro com as declarações de Deodoro. Apenas me vejo caracterizando melhor as minhas responsabilidades, pelas vinte e oito mulheres com quem convivi intimamente, enquanto investido das funções de ministro. Mas, se me permitirem, desejo dividir as tais responsabilidades com elas, porque, nesse caso, ninguém está sozinho diante da sociedade, da Igreja ou de Deus. Se a minha consciência me aponta a falha, não poderei aceitar que o dedo em riste seja exatamente daquelas que comigo trataram. Enfim, a complexidade do tema talvez nos leve a considerações especiosas, antes de nos elucidar totalmente qual o grau de erro que se encontra nesta zona de beligerância íntima.

Arnaldo, vendo que o tema não progrediria, a não ser pela declaração de cada um quanto ao número de mulheres, quis abreviar a discussão:

— Comigo foram dezoito as mulheres. E com você, Everaldo:

— Trinta e duas.

— Alfredo?

— Só três.

— Hermógenes?

— Não sei ao certo.

— Por quê?

— Porque não sei se deverei somar aquelas com quem apenas flertei ou namorei, sem chegar a coabitar maritalmente.

— Conte as últimas. Mais tarde, apreciaremos as condições dos prejuízos causados às demais.

— Sete.

— Roberto?

— Vinte e duas mulheres e treze rapazes.

A confissão propendia a desviar o tema para outras áreas dos relacionamentos humanos. Foi Deodoro quem desejou pôr ordem nas exposições:

— Quero adverti-los de que estou com a palavra. Se deixei aberto um canal para os apartes, quero manter-me com o domínio das premissas. E não vou abrir espaço nem para questões de ordem.

Mas Joaquim levantou-se e, incisivamente, propôs:

— Tenho de levantar uma questão de ordem e nenhum déspota esclarecido irá impedir-me. Apenas peço ao orador que me permita.

Deodoro, percebendo o gracejo, integrou-se na brincadeira:

— Ainda que a sua questão de ordem queira apenas justificar a necessidade ou o direito das questões de ordem, eu lhe permito que me contrarie, uma vez que a minha provocação se deu para que os sentimentos não tumultuassem a sessão. Com a palavra, para simples apontamento, o nobre colega Joaquim.

— Enganei-me, Patrão. O diabo não era tão feio quanto parecia.

A intenção de amenizar o clima de tensão se tornou demasiado evidente para todos, de sorte que os chistes se perderam e o grupo quedou em profundo silêncio por um longo período de tempo, medido no compasso das batidas dos corações e num relógio que se descobriu dependurado na parede ao fundo, entre a estante e uma bandeira brasileira erguida num mastro com pedestal.

Deodoro não fez questão de romper o silêncio e ficou a observar os ponteiros do relógio, a ver se caminhavam no mesmo sentido e no mesmo compasso daqueles da Terra. Era um relógio de pêndulo e logo fez que se interrogasse o observador:

Ainda que eu pudesse constatar que os ponteiros caminham normalmente e não para trás, não saberia, com certeza, se estaria sincronizado com os relógios terrenos. Pode ser que eu não note a velocidade tremenda, porque minha natureza vai do mesmo modo rápida em sua agitação vital ou existencial.; como pode ser o contrário: que os ponteiros vão avançando lentos, com a mesma desenvoltura de minha psique. Também pode estar ocorrendo que eu veja os ponteiros devagar e os outros, uns, mais devagar ainda, os demais, muito mais depressa. Se formular, contudo, alguma teoria a respeito e apresentar aos seis, por certo vão dizer que não pensaram sobre o assunto ou irão concordar sem exame.

Estabeleceu consigo mesmo que não estava dando muita importância à força intelectual dos discípulos. No entanto, logo a consciência retrucou-lhe, fazendo-o pensar em que eram os outros que sabiam ler em sua aura, penetrando-lhe no cérebro, enquanto ele mesmo não tinha tido um único momento de pura leitura das vibrações íntimas dos demais, a não ser quando faziam questão de transmitir-lhe os pensamentos ou as emoções.

Interessante é o fato de que não notei nenhuma frase exclusivamente ditada pelo intelecto, sem a participação do setor sentimental. Pelo menos neste campo, estou bem, pois vou caracterizando, se não estão fazendo-me crer em fantasmagorias, que interpreto a contento as intenções de todos.

— Pode crer, Professor, fez questão Hermógenes de assinalar, que não estamos tentando nenhum passa-moleque no nosso querido orientador. No que tange a sermos capazes de ver em sua mente, também não se passa nada de extraordinário. Tenho para mim, aliás, temos para nós, conforme os demais me informam, que a sua recente vinda do plano terreno é que não lhe permitiu ainda utilizar-se deste recurso.

Deodoro quis elucidar um ponto que já estava tornando-se uma idéia fixa:

— Quero crer que você esteja há bem menos tempo que eu neste setor do Umbral, tendo deixado o corpo físico recentemente, haja vista que conheceu aquele brinquedo que mencionei. Vamos, se formos capazes, revelar qual foi o último ano que passamos no orbe terráqueo. Eu, vocês já sabem, me lembro, mais ou menos, do ano de 1958, podendo ser que tenha ficado por lá mais um ou dois anos em coma. Faz, portanto, mais de trinta anos que estou vagando dentro de minha alma.

Everaldo aproveitou para observar:

— E sem sofrimento nenhum, ou apenas um leve mal-estar causado pela ansiedade produzida pelo fato de não haver sido recebido pelos anjos. Eu deixei a vestimenta carnal em 1948, logo depois da rendição das forças nazistas aos aliados. Rogo aos demais que respondam sinteticamente. Hermógenes?

— 1969.

Deodoro não se conformou:

— Vamos devagar com o andor, que este santo é de barro. Você está sendo muito incoerente. Primeiro me disse que faleceu aos cinqüenta e oito anos. Depois, com essa aparência de vinte e poucos, vem me falar que morreu em 1969. O brinquedo a que me referi deve ter sido inventado há menos tempo, quando você já não estava mais na Terra. Como é que fez sermões em prol da saúde pública, condenando a transmissão das bactérias? A bem da verdade, não estou entendendo mais nada.

Roberto, entretanto, informou, sem dar tempo ao outro que respondesse:

— 1983.

Joaquim:

— 1897.

— Como? — inquiriu Deodoro, demonstrando descrença.

— É isso mesmo, estou há um século neste labirinto umbrático.

— E como foi que você enganou os do mosteiro, que pensaram que você estava morto há pouco tempo?

Foi a vez de Alfredo participar:

— 1938.

Antes que Deodoro manifestasse admiração, Arnaldo denunciou:

— 1943.

Aí Deodoro se concentrou no último:

— Caríssimo Arnaldo, como você responderia, se lhe perguntassem por que passou mais de cinqüenta anos em peregrinação por aqui?

— Eu precisaria saber, em primeiro lugar, para quem deveria responder.

Durante um bom tempo, Deodoro e Arnaldo iriam dialogar sem serem interrompidos pelos demais.

— Quer dizer que responderia de maneiras diferentes?

— Se me encontrasse com uma criança na Terra, não deveria tratá-la segundo sua capacidade de assimilação das informações? Pois aqui é o mesmo.

— Digamos que eu lhe pergunte.

— Então, eu diria que, tendo em vista terem sido dezoito as mulheres com quem mantive colóquios amorosos e sexuais, fui perseguido largo tempo por algumas delas e respectivos familiares, correndo por lugares de forte sofrimento moral. Devo dizer, contrariando um pouco a colocação de Joaquim, que eu vi, sim, os dedos delas em riste, acusando-me de tê-las iludido.

— Então, eram muito jovens.

— Ao contrário, eram mulheres maduras, que, antes de mais nada, se concentravam no desejo do perdão, porque eu as escolhia entre as que confessavam terem sido infiéis. Ora, o pensamento delas ia da malícia à maldade, pois, argumentavam, em suas ilusórias conclusões, que, no mínimo, arrastariam o confessor para o fundo dos infernos, se não obtivessem o perdão de Deus.

— Eu não quero pôr a mão no fogo pelas minhas, mas acredito que nenhuma teve esse pensamento.

— A sua prudência é louvabilíssima. Mas, voltando ao meu caso, foi preciso que comprovasse a cada uma que eu estava enganado tanto quanto os outros padres que me haviam ensinado. Foi muito difícil, mas afastei de mim todas as acusações, gerando, por outro lado, fortes inclinações contra Deus, de forma que, em lugar de salvar as almas em aflição, dei-lhes motivos outros para desespero. Quando me vi liberto das pressões vibratórias mais densas, fui acolhido no mosteiro, na qualidade, como você viu, de guardião, porque havia aprendido a debelar os impulsos de revide específicos contra a minha investidura sacerdotal.

— Alfredo também era guardião. Teria tido a mesma trajetória?

Arnaldo foi quem respondeu:

— Mais tarde, Alfredo vai falar por si mesmo. Eu pretendo esclarecer a sua dúvida em relação às contradições do amigo Hermógenes.

— Você conhece o caso dele ou vai partir de meras suposições?

— Ele confirmará, se estiver em condições de fazê-lo. Vou, portanto, expressar o que me foi dado conhecer relativamente a diversos companheiros com quem convivi no convento.

À vista de um gesto impaciente de Everaldo, Arnaldo observou:

— Aqueles ponteiros ali na parede estão regulados pelo conjunto energético resultante da média ponderada dos atributos de cada um de nós. Everaldo tem tido muita pressa e depois nos irá dizer a razão disso. Deodoro imaginou que o relógio pudesse ir mais depressa ou devagar, segundo o nosso desenvolvimento espiritual. Mas não é assim que ocorre, porque, se assim fosse, nós não estaríamos reunidos. Não se estabeleceu já que a nossa perspectiva de evolução esteja consagrando um princípio existencial equivalente entre todos?

Deodoro, de novo, quis colocar ordem no roteiro:

— Vamos firmar o princípio de um tema por vez, por favor.

Arnaldo, contudo, contrariou-lhe a determinação:

— Mestre, com o devido respeito, essa sua atitude não tem razão de ser, a menos que deseje esconder algo.

— Essa conclusão parece estapafúrdia.

— Pois não é. Se os temas se desencadeiam por livres associações de idéias, haverá uma ocasião em que algum tópico mais triste, mais pungente, mais aflitivo de suas recordações virá à baila, naturalmente. Aí, devido ao seu temor de ser visto por dentro, você estará na obrigação de mais confidências, tanto que quem chamou outros assuntos ao plenário foi Vossa Reverência. Não era sua vez de ir desfiando os eventos que caracterizaram os pontos mais frágeis de sua experiência terrena?

— Preciso reconhecer que você tem razão, como o fiz todas as vezes em que me vi acusado de sonegar opiniões ou informações...

— E também sentimentos. Não é verdade?

Antes de responder, Deodoro precisou meditar por alguns instantes, tempo computado por Everaldo que, ao se pronunciar o professor, abriu ambas as mãos, enunciando que foram dez os minutos decorridos.

— Quero pedir desculpas pelo retardo de minhas considerações. Após refletir a respeito destes vibrantes conceitos a meu respeito, devo dizer que não posso aboná-los nem reprová-los. A verdade é que noventa e tantos anos na carne me fizeram esta pessoa que hoje sou. Se me permitirem uma reflexão filosófica, longe dos preceitos canônicos católicos, devo dizer que o que me põe mais na defensiva contra aceitar este purgatório como um local sagrado é o fato de que tudo aqui me leva a julgar que eu mesmo nada sou. Digo mais: a figura que aqui se apresenta deseja reconhecer o que era e quer projetar-se para uma condição de aperfeiçoamento que redundará numa outra pessoa. Se, um dia, eu merecer penetrar nas sacratíssimas terras do Senhor, talvez eu possa dizer: — “Eu sou um ser perfeito e me regozijo de aqui estar, na glória de Deus.” No entanto, poderei também vir a dizer: — “Eu já não sou aquele que desejava aqui estar, porque, se fosse, permaneceria lá mesmo no local de meus merecimentos anteriores.”

Arnaldo intrigava-se com o despojamento das idéias religiosas do Monsenhor:

— Permita-me, Excelência...

— Por que esse retorno ao tratamento cerimonioso? Será que estou parecendo alguém mais categorizado, a ponto de abandonar o grupo à sua própria sorte?

— Deodoro, desculpe-me. Não agi senão com a intenção de demonstrar subido respeito. É que, às vezes, me parece, realmente, que me encontro defasado em relação ao nível de conhecimentos teóricos que você deixa entrever.

— É que você se esquece de que fui professor de Teologia, com a obrigação de saber as fontes principais dos que viriam a refutar os meus argumentos em favor dos dogmas e demais pontos de fé. Não é verdade que cheguei a ler, inclusive, “O Livro dos Espíritos”, de Kardec?

— Então, Professor, como é que se atreve a vir dizer-nos que as suas estruturas mentais estão ainda arcabouçadas pelos princípios de sua personalidade carnal, em detrimento de um maior...

— Não prossiga, por favor. Você vai me acusar de mentir a respeito das tribulações que venho encontrando, a turbar as minhas idéias e os meus raciocínios. Devo esclarecer-lhe, contudo, que, desta vez, fui absolutamente sincero, já que não me vejo suficientemente esclarecido em função dos tópicos que vamos discutindo e sobre os quais somente agora vou tendo os primeiros informes, as primeiras deduções. Veja se não é para ficar intrigado. Everaldo, quando apontou o tempo que fiquei meditativo, fez que eu olhasse para o relógio. De lá até agora, eu reparei que nenhum de vocês se voltou para ver quanto tempo decorreu. Se vocês estiverem lembrados de que horas eram naquele instante, vão ficar admirados de que os ponteiros se adiantaram apenas dois minutos e pouco, para tanta discussão de tão importantes pontos. Se me perguntassem quanto tempo me pareceu transcorrer, eu não diria menos de cinco minutos. É essa a sua idéia, Arnaldo, ou vai insistir nalgum ponto em que me vejo envolvido emocionalmente, para não falar francamente a respeito de meus problemas mais “pungentes”?

Arnaldo fez menção de que iria acrescentar algo justamente naquele sentido, mas resolveu voltar a uma explicação devida:

— Quanto a Hermógenes, ele não mentiu conscientemente. Eu não disse que fugi de muita gente ávida por me agredir? Pois existem aqueles que continuam atuando junto aos encarnados, sem saberem que estão na condição de espíritos. Nesse caso, o seu grau de perturbação é variável. Pelas minhas conversas com os amigos do convento, constatei que muitos açambarcavam as experiências post-mortem ao acervo das recordações da vida, de forma que não eram capazes de dissociar os fatos corpóreos dos espirituais. Foi por isso que me antecipei a Hermógenes, porque deve estar acontecendo o mesmo com ele, ou seja, desconhece o que fez na condição de espírito, tendo, com toda a certeza, subido em muitos púlpitos para pregações que a consciência estava a solicitar, como ocorre às pessoas que dão esmolas, no final da vida, porque, quando mais jovens, deixaram de fazê-lo.

Hermógenes, que seguia as explicações muito atentamente, desandou a chorar. Eram lágrimas do mais profundo desespero, como se os preceitos cristãos lhe escorressem pelas faces, lavando a alma de todos os postulados católicos, sem o respaldo de outros conhecimentos. Desandava, na mais pura expressão do termo, pondo os corações dos outros angustiados. Apenas Deodoro se manteve inalterado, em prece muda, solicitando a Eufrásio que comparecesse para atenuar a dor daquele jovenzinho, que era assim que o Monsenhor via o outro.

Se tivessem reparado no relógio, teriam observado que os ponteiros deram uma volta inteira, marcando exatas doze horas de agonia. Mas as coisas não pareceram dessa forma a nenhum deles. Nem Hermógenes notou que o tempo passava, nem se lhe exauriam as forças, de modo que dava continuidade ininterrupta ao lamentar. Quem se cansou foi Deodoro, cujas preces não pareciam surtir qualquer efeito: nem Hermógenes suspendia as emocionadas vibrações, nem Eufrásio aparecia, deus ex machina a colocar um paradeiro naquele enredo sem saída. Então, apelou para o ex-aluno diretamente:

— Hermó, querido, você foi contemplado com o Paraíso.

Inicialmente, ninguém deu atenção à frase, mas, ao repeti-la pela décima vez, Deodoro conseguiu que lhe buscassem o sentido. Amainada a intempestiva choradeira, o professor discursou:

— Não creio que a perda da identidade tenha sido completa. Quando eu disse que, ao adentrar o Paraíso, eu não seria este que sou agora, também fazia referência ao fato de que tudo está em transformação. Se a transformação se der sempre do mau para o menos mau, quer dizer, se o processo moral evolutivo estiver crescendo continuadamente, então, o Paraíso há de ser, necessariamente, este em que agora estamos, porque no apogeu de nossa condição espiritual. Dessa forma, não estou mentindo ao afirmar que Deus está providenciando, enquanto nos transformamos, que vivamos num paraíso cada vez mais próximo daquele que idealizamos e que não podemos conhecer porque a visão dele seria incompreensível para nós na condição de seres imperfeitos. O que estou dizendo é absolutamente lógico e não fere nenhum aspecto dos raciocínios mais abstratos, com fundamento na concretude dos eventos existenciais. O conhecimento da realidade está além dos pressupostos que admitimos provisoriamente, enquanto caminhamos. Aliás, já citamos Jesus que mandava que os discípulos e os apóstolos seguissem as suas pegadas e sabem por quê? “Pois”, como está em São Mateus, capítulo 16, versículo 27, “o Filho do homem tem que vir na glória de seu Pai com seus anjos, e aí ele retribuirá a cada um conforme suas obras.” Ora, Jesus nos afirmou: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida.; ninguém vem ao Pai senão por mim.” (São João, XIV, 6.) Em decorrência disso, se portarmos Jesus no coração, carregaremos a nossa cruz com muito maior facilidade, porque o seu jugo é suave... Vocês conhecem todos os textos.; não preciso ficar repetindo. O que me estranha é essa desilusão profundamente ofensiva, porque as lágrimas são sinceras e a dor também.

Vendo que Hermógenes se recompunha, finalmente, Deodoro apostrofou o sacerdote:

— Vejo que a sua decepção demonstra uma vaidade, um orgulho e um egoísmo desmesurados. Você pensou que o sacerdócio era o passaporte para a bem-aventurança eterna, sem outro empenho? Se nós estamos entretidos com levantamentos filosóficos do presente estágio de vida ou de existência, será apenas por diletantismo? Jamais! O que cada um de nós deve pretender é assimilar a verdade passível de ser avaliada do ponto de vista etéreo, simplesmente, e aguardar novas surpresas.

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