Usina de Letras
Usina de Letras
151 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62072 )

Cartas ( 21333)

Contos (13257)

Cordel (10446)

Cronicas (22535)

Discursos (3237)

Ensaios - (10301)

Erótico (13562)

Frases (50478)

Humor (20016)

Infantil (5407)

Infanto Juvenil (4744)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140761)

Redação (3296)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6163)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Amélia e o Seu Tempo -- 21/01/2004 - 01:06 (MARIA PETRONILHO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A casa de meus avós ficava no sopé do monte... No cimo o castelo, em ruínas desde que explodira o paiol da pólvora.
Os penedos tinham rolado encosta abaixo, esmagando tudo.
Salvou-se uma mulher, que se abrigou sob o umbral de cantaria da porta.
No nosso terreiro, contra a parede da casinha do forno, sempre vi uma pia baptismal, de granito negro e gasto, tão gasto que apenas se lhe notavam os ténues contornos.
Era talhada de uma única pedra.
Na capela do castelo, entre as ervas, vislumbrava-se o lugar de onde viera.
No topo restava a ara corroída.

Era um lugar solitário, sem loureiros, chamado Louredo.
Em volta da casa, de dois pisos de granito, com balcão e escadaria, inúmeras dependências: palheiros, cabanais, arrecadações, onde pernoitavam as cabras, as burras, as galinhas, patos, perus, que chegavam em fila ao anoitecer e entravam por um buraco, que se fechava com um toco, por causa das raposas.
Mais abaixo a coelheira e lá ao fundo, a furda funda dos porcos.
As chaves, que minha bisavó usava penduradas na cintura, eram enormes, a minha mão cabia na argola de cada uma.
Não se sabe, de tão negras, se ainda rodariam nas caixas das fechaduras.
As portas estavam abertas, à noite fechava-se o trinco, que se abria premindo ao de leve a patilha redonda, com a ponta do dedo.
Além dos terreiros, onde as galinhas ciscavam soltas, ficavam as hortas, os pomares, as vinhas.
Os poços com noras ou cegonhas, os tanques de rega, as calhas de pedra limosa por onde a água corria, tão límpida que à sua beira cresciam todas as espécies de ervas.
As ervas comiam-se às vezes.
Eram agriões, azedas, salsa, e a minha avó cozinhava um empadão de rabaças enquanto o forno, onde o pão crescera e tostara, se abrira como flor de bem-aventurança, esfriava.

E por ali crescia a menina desvalida.
Para onde fosse, levava um livro comigo.
Por esse tempo lia muitas histórias de princesas, de gigantes e de fadas... as leituras ainda recomendadas por minha mãe, que se fora na primavera, amortalhada no seu vestido de noiva.
Por haver muito em que pensar, ninguém se lembrou de me matricular na escola.
Cheguei com um ano de atraso e atrasei-me lá três, sentando-me na classe onde me apetecia, pois tudo o que lá se ensinava eu já antes aprendera.
Foi a primeira vez que contactei com outras crianças, entenda-se: meninas!
Nas paredes, Salazar à direita, Américo Tomaz á esquerda.
Nos livros, Salazar na primeira página, Américo Tomaz na segunda.

Eu não sabia brincar de imitar a mãe a tratar de bebés nem de fazer jantarinhos em tachos minúsculos.
Sabia recortar figuras de papel, as mulheres de saia, os homens de calças, com uma nesguinha fina de papel no meio das pernas.
Nunca vira, mas pelo que ouvia, imaginava.
As figurinhas mais pequenas eram as crianças.
Pegava o que tivesse à mão: achas, folhas, pratos e chávenas... e no nicho do armário de canto, montava o cenário.
Depois, desenrolavam-se milhentas histórias... viviam vidas intensas, aquelas personagens recortadas de livros, jornais e revistas!
Quando cheguei à escola, o embate foi tremendo: nem por nada me entendia com as outras meninas!
Teimosa, ficava na minha... mas elas eram a mais e maiores, e eu a desconhecida, a mais pequenina... apanhava cada sova!

Tive uma amiga, a Amélia.
Morava muito longe, tinha muitos irmãos.
Depois da escola, ai dela que aparecesse em casa sem lenha!
Ora no terreiro do Louredo, havia enormes montes de lenha rachada pelo Vicente, que trabalhava de sol a sol em troca de um litro de azeite e um cálice de água-ardente.
Acho que levava o dia inteiro a sonhar com as caretas que havia de fazer quando o líquido lhe fosse servido. Era o seu único mimo, além da onça de couro onde guardava um pouco de tabaco e do livrinho das mortalhas.
Às vezes, encostava-se ao cabo da enxada e tirava dos bolsos os seus tesouros.
Mirava-os bem.
Com as pontas dos dedos, separava um papelinho, tirava uma pitada de folhinhas do fundo da onça e enrolava-as carinhosamente, com muito cuidado. Passava a ponta da língua no bordo da mortalha, passava lentamente os dedos no cigarro perfeito e acendia-o por fim, com a chama de um fósforozinho de cera.
Regalava-se.

Eu e a Amélia tínhamos um segredo: ela ia brincar comigo e depois tirava do monte da lenha o suficiente para que nem a mãe lhe batesse, nem a minha avó desse pela falta.
E ficávamos metendo as mãos entre os espaços deixados entre os troncos, onde por vexes achávamos ninhos.
Tirávamo-los com cuidados infinitos, para vermos os ovos, os filhotes, se os houvesse, e depois, sem estragar, colocávamos tudo de novo no sítio... ignorando que a mãe pássaro nos espiava do alto e, vendo o ninho descoberto, nunca mais lá voltaria.
Brincávamos de erguer casas de pedrinhas equilibradas umas sobre as outras, com jardins cheios de flores.
Trocávamos segredos acerca das mulheres que víamos de barrigas gordas... e depois, sem mais nem menos de novo magras e uma criança nos braços.
Tanto matutámos que concluímos estarem os bebés nas barrigas... mas como apareciam cá fora?! Pelo buraco da frente; pelo buraco de trás?!
... E maior mistério ainda: como seria que iriam parar lá dentro?!
Aí nem sombra de suspeita!
Dizia-se que se bebesse água de um poço onde houvesse bolhas ao cimo, nasciam rãs na barriga... mas e os bebés... ?!
Amélia passava fome, o que era tão comum que não causava estranheza.
Os comeres eram pão com azeitonas galegas; e os mimos “batatas guisadas com coelho a fugir na serra”...
Um dia a ceia de Amélia eram feijões refogados.
Ora nem a fome mais negra a fazia suportar o sabor da cebola refogada.
Junto da lareira acesa, debruçou-se a menina, para escolher feijão a feijão, à luz fraca da candeia.
Fosse da fome ou do enjoo, a verdade é que caiu sobre o lume e ardeu como uma tocha viva.
Tiraram-na e levaram-na a correr, para o hospital do concelho.
Três dias depois, morreu.
A mãe foi buscá-la, a pé. Eram muitos quilómetros por caminhos desertos, com a filha morta enrolada num xaile, debaixo do braço.
Não chorou senão perto do povoado.
Quem andava na faina e a viu passar soube depois que o seu pequeno fardo, era a filhinha morta... e censuraram-na durante muito tempo... que fingia; que ficara aliviada por ter menos aquela boca para sustentar.
Foram de casa em casa pedir roupa para amortalhar Amélia. Pela primeira vez iria bem vestida e calçada.
A mim, pediram-me um par de peúgas brancas. Não entendi. Vira sempre a minha amiga descalça, porque só agora iriam calçá-la?!
Por uma vez na vida, a minha avó sentou-me em cima de uma arca e falou mansamente:
- Tu não te ralas de dares umas peúgas à Amélia, coitadinha, pois não?
À noite fomos velá-la.
Deitada sobre um lençol, no chão, finalmente vestidinha e calçada, nem parecia a mesma!
O rosto, intacto e branco, era de perfeita paz.
No dia seguinte, peguei, com outras companheiras, numa das asas do caixão, chorando, chorando, como ainda hoje choro.

Almada, Portugal,
20/1/2004
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui