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Erotico-->AS AVENTURAS DO PADRE DEODORO EM CAMPOS ETÉREOS — XI -- 27/07/2003 - 09:01 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O que Deodoro presenciou então foi inacreditável. A multidão, em absoluta descompostura, abandonou o recinto, inclusive os que se situavam nos postos de honra. Pela sua frente passou correndo o de branco, seguido por Crisóstomo, que nem reparou que o novel discípulo tinha ficado estático, a observar a movimentação geral.

Para onde estão todos se dirigindo, como se a abóbada fosse despencar?

Em todo caso, aprumou-se sem esforço e, com passadas mais seguras, encaminhou-se para a porta principal, não sem antes se ajoelhar diante do altar e se persignar, em ato mecânico que lhe daria, mais tarde, bons motivos para pensar. Naquele instante, interessava-se pelo destino da congregação. Quando voltou a vista para a nave deserta, viu que estavam lá mais quatro religiosos, com as batinas reluzentes e os rosários dependurados ao lado, presos nos cintos. Todos estavam de preto, como ele mesmo, mas não traziam mais do que modestos barretes na cabeça a indicar que eram párocos de pequenas freguesias.

— Irmãos, evocou Deodoro, vamos nos reunir, porque suspeito que sejamos aqueles a quem Sua Santidade se referiu como recém-egressos do mundo dos vivos.

Estranhamente, os outros se aproximaram, ajoelharam-se diante dele e fizeram menção de pedir-lhe a bênção, como se estivessem sagrando-o líder do grupo.

— Vamos, vamos, bons amigos, deixem disso! Aqui, nós todos somos irmãos em Jesus. Ninguém tem mais méritos que ninguém. Não vejam nas minhas insígnias mais do que o reflexo muito pálido das deferências que obtive no plano material. Vejam que não fui capaz sequer de restabelecer o meu corpo, ficando ainda com este miserável aspecto de velho senil. Devo dizer que a minha memória não me faz lembrar das coisas boas e agradáveis, mas o que mais passa pela minha cabeça são as dificuldades que enfrentei nos meus relacionamentos. Estou falando tudo isso, não para que vocês se condoam de mim, mas para que me ajudem, porque estou precisando de todas as forças intelectuais e sentimentais que puder obter.

Calou-se a ver a reação dos outros, mas os quatro permaneciam de cabeça baixa, em atitude de respeito, que nem se estivessem na carne teriam tão profunda.

— Qual de vocês, insistiu Deodoro, vai se apresentar primeiro?

Novamente, aguardou uns minutos, mas, à vista do silêncio absoluto dos quatro, necessitou adotar outro método, para o estímulo dos tímidos:

— Você, meu filho, disse ao que lhe pareceu o mais jovem, passando-lhe a mão sobre a cabeça, descobrindo-lhe a tonsura coberta pelos cabelos compridos, como se chama?

— Roberto, Eminência.

— Sou apenas, ou melhor, fui tão-somente monsenhor, meu filho. Trate-me com menos imponência.

Mas os outros ficaram em silêncio. A observação de Deodoro não lhes alterou em nada a postura.

— Vamos lá! Digam os seus nomes.

— Everaldo.

— Joaquim.

— Hermógenes.

— Fale você, Roberto. Que idade tinha quando deixou a Terra?

— Trinta e seis, Excelência.

— Vamos entrar num acordo. Deodoro começava a se impacientar. Vocês me tratem sempre por Reverência. Está bem assim?

Todos deram com a cabeça que sim, mas não ousaram erguer os olhos para a figura do velho.

Estou bem arranjado, se tiver de tirar tudo com saca-rolhas dessas cabeças.

— Roberto, você está inteiro. Então, quer dizer que morreu de doença?

— Tive lepra, Reverência.

— Essa doença, considerou Deodoro, deve ter exigido de você muitas lágrimas e muita fé no Senhor. Em todo caso, não vejo nenhum sinal...

Enquanto falava, Roberto ergueu as mãos, onde faltavam vários dedos, embora as feridas estivessem cicatrizadas.

Deodoro não se perturbou:

— Meu irmãozinho Roberto, não tenha medo de me contaminar. Aqui, essa moléstia não é contagiosa. Pelo menos, eu acredito que não seja, porque os microorganismos não acompanham a gente...

— Tem certeza, bom Mestre?

— Por que você me chama de bom mestre? Está esquecido do que se registrou em São Mateus, capítulo XIX, a partir do versículo 16: “Então, um jovem aproximou-se dele e lhe perguntou: Bom Mestre, qual bem é preciso que eu pratique, para conseguir a vida eterna? — Jesus lhe respondeu: Por que você diz bom para mim? Tão-somente Deus é bom. Se você deseja entrar na vida, guarde os mandamentos. — Quais mandamentos?, perguntou-lhe ele. Jesus lhe disse: Você nunca matará.; você nunca cometerá adultério.; você nunca roubará.; você nunca levantará falsos testemunhos. — Honre seu pai e sua mãe, e ame a seu próximo como a si mesmo.”

Roberto, que havia feito a observação, não se alterou:

— É verdade, Reverência. Mas, se Jesus não queria ser chamado de bom, tinha ele suas razões. Eu também tenho as minhas para chamar Vossa Reverência de bom, porque está preocupado comigo. Eu sei que Deus é bom, mas quem quer ir ter com ele no Céu também tem de ser bom.

Deodoro pegou o tema pelo rabo:

— E você? Você acha que merece ir ao Céu? Quer dizer, você acha que é bom?

Roberto respondeu:

— Eu acho que posso vir a ser bom, se fizer tudo o que Jesus recomendou ao jovem rico, embora tivesse dito depois aos apóstolos: “Eu lhes digo em verdade que é bem difícil que um rico entre no reino dos céus. — Eu lhes digo ainda uma vez: É mais fácil que um camelo passe através do furo de uma agulha do que um rico entre no reino dos céus.”

Deodoro ficou com vontade de interrogar o outro a respeito do que achava sobre a sua condição, mas avaliou que seria melhor não aprofundar o tema naquele momento. Talvez melindrasse algum dos que carinhosamente já estava chamando de pelintras:

Esses aí sabem dar respostas muito convenientes. Ele me chamou de mestre mas não quer dizer que saiba menos do que eu. Preciso dar aos outros um pouco de trela para que se manifestem e, em se manifestando, demonstrem o que são. Quem sabe possam eles me fornecer algumas pistas valiosas para sair da enrascada em que estamos nesta estranha região, onde as coisas têm aparência de serem normais e, de repente, se transformam.

— Everaldo, você saberia dizer por que todo mundo saiu correndo, assim que o ofício acabou?

— Reverência, respondeu Everaldo sem erguer os olhos, foram ao refeitório para o dejejum.

— E vocês, por que é que ficaram?

— Vimos a oportunidade, retrucou Everaldo, de prestarmos um serviço a Vossa Reverência, que ficou sozinho. Prestamos atenção quando chegou carregado, mas os dois e mais o Cardeal Crisóstomo se esqueceram de Vossa Reverência.

— Quer dizer que vocês já se conheciam? Responda você, Joaquim.

— Pois não, Reverência.

Deodoro começava a ficar constrangido com tantas Reverências.

Notei que Crisóstomo já estava me tratando por você. Como será que esses aí reagirão, se lhes pedir para mudar a forma de tratamento?

Em voz alta:

— Não quero mais ouvir falar em Vossa Reverência nem em Vossa Excelência. Peço que me chamem de... Como é que vocês acham que seria mais fácil?

Silêncio total. Ninguém se atreveu a arriscar palpite.

— Vamos ver se “Padre” ou “Professor” soam melhor. Está certo?

Os outros assentiram com a cabeça. Mas Joaquim não ousou prosseguir.

— Joaquim, com quantos anos você chegou aqui?

— Sessenta e seis, Monsenhor.

— E ainda tem esses vezos de respeito excessivo? Aposto que na Terra não procedia desse modo quando se dirigia ao patrono da diocese.

— É verdade, Padre Deodoro, mas deve ter sido por isso que hoje nós estamos no Purgatório e não fomos para o Céu. Eu conversei longamente com o colega Roberto e ele me disse que a lepra (que eu insistiria em chamar de “hanseníase”, se vivo) deveria tê-lo levado diretamente para o Paraíso Celeste, porque o sofrimento que sentiu foi atroz. No entanto, as lamúrias, as lágrimas e os gritos íntimos de injustiça não aliviaram o peso da doença quando aqui chegou. Por mim, acho que ele merecia, de qualquer modo, um tratamento mais ameno. Mas esse meu sentimento ponho na conta de desrespeito, porque deveria saber que a vontade de Deus deve prevalecer sempre sobre a nossa, porque ele é onisciente e eu mal sei soletrar algumas passagens dos Evangelhos.

Deodoro percebeu que o outro esperava, na verdade, uma resposta a respeito da certeza que o bom mestre tinha a respeito da vida dos animais naquele ambiente, ainda que vírus, bactérias e outras formas invisíveis a olho nu.

— Joaquim, estou sentindo que vocês abaixam a cabeça mas mantêm a crista levantada.

— Esse é um dos nossos defeitos mais graves, Padre Deodoro. Mas pode acreditar que tanto o Roberto, o Everaldo e o Hermógenes, quanto eu mesmo, todos nós estamos cientes de que precisamos melhorar, o que o Senhor foi capaz de perceber quando nos citou São Mateus, em passagem exemplar de como se deve proceder para merecer ser recebida a pessoa pelo nosso Pai Celestial.

Deodoro bateu na mesma tecla:

— Quando a pessoa sabe onde está a falha de sua alma, deve agir com honestidade, porque Deus dá liberdade a todos os filhos de se arrependerem e de se confessarem em pecado, para merecerem o perdão. O que eu acho que acontece com todos os que estão reclusos nesta dimensão... Vocês sabem por que eu estou falando em “dimensão” e não em “purgatório”?

Calou-se, aguardando que um dos quatro se manifestasse. Mas lá ficariam “per omnia secula seculorum” se deixasse que um dos quatro “mosqueteiros” tomasse a iniciativa da exposição.

— Eu falo em “dimensão” porque me parece que vocês irão objetar, perguntando de novo se “tenho certeza” do que estou dizendo. Mas vou adiantar-lhes, meus caros, que eu também penso que estamos no Purgatório, apesar de ter tido uma informação diferente do Padre Eustáquio, que eu chamava de Eufrásio... Mas deixem isso pra lá, que vocês não vão saber sobre o que estou tratando.

Hermógenes levantou olhos súplices, como a pedir perdão por ousar uma palavra.

— Fale você, Padre Hermógenes, que me parece o mais sábio de todos nós porque conseguiu ficar por mais tempo calado.

Hermógenes, com um fiozinho de voz quase inaudível, observou:

— Professor, eu fui aluno seu e do Irmão Eufrásio, seu amigo...

Deodoro deu uma boa olhada no “tratante”, conseguindo recordar-se do “safado”, que se formou no seminário mas não professou.

— Você está muito diferente, Hermó... Não era assim que os seus colegas o chamavam?

— Naquele tempo, Vossa Reverência... (Deodoro fez um gesto de desagrado.) — Perdão, Professor, mas o Senhor chamou a atenção da turma porque utilizavam de apelidos.

— E você não aprendeu gramática.

— Sintaxe ideológica, lembra-se, Mestre?

— Certo, para “turma” e “utilizavam”, mas estou falando do regime do verbo “utilizar”.

— É que não me habituei ainda a uma reflexão mais concentrada na correção. Se não tivesse afrouxado a vibração, a comunicação teria repercutido mais orgânica, segundo a possibilidade de registro da parte do recebedor, como estou empenhado neste instante.

Deodoro não se deixou apanhar nas malhas da malícia do ex-aluno:

— Hermó, meu jovem, ainda que você tenha chegado aqui depois dos cinqüenta...

— Cinqüenta e oito, Professor.

— ... não consigo enxergar em sua aura a rigidez da moralidade que imprimiu ao texto através do qual desejou impingir-me a lição. Antes, fui capaz de concluir que a sua assim chamada frouxidão se colocava em seu espírito porque não vê em mim a mesma autoridade que via no seminário. Está revidando aquelas horinhas em que eu lhe dizia para estudar mais. Tanto estou certo que não me lembra de havê-lo encontrado na condição de servo de Deus, porque você não quis prestar os sagrados votos.

— Para mim, Reverência, a vida deu muitas voltas, até que me determinei a seguir o caminho de Jesus, execrando a anterior atitude e volvendo aos estudos em outra instituição, quinze anos depois, exercendo o meu ministério no Nordeste, mas sempre atento para as realizações de Vossa Reverência...

— Vejo que você se magoou com a minha represália de hoje tanto quanto...

— Por favor, Deodoro, se depender da forma de tratamento a nossa amizade, então vou chamá-lo apenas por você.

Deodoro não deixou que o outro voltasse à atitude de submissão. Puxou-o para seu peito e deu-lhe forte abraço, buscando transmitir o afeto que durante a vida toda depositara nas aulas, porque amara os alunos como se fossem seus próprios filhos. Todas essas emoções iam passando pela mente do Professor, de sorte que o aluno afagado pôde sentir que havia muita verdade naquele transbordamento afetivo.

Ao se separarem, todos notaram magnífica transformação na aparência física de Deodoro. O velhinho já não estava tão carcomido e as feições adquiriram muito mais “vida”, como se tivesse rejuvenescido bastante.

O espanto dos demais estava tão visível que o velho padre quis saber logo o que se passava:

— Parece que vocês estão vendo um fantasma! Que aconteceu?

Realmente, aquela atitude de resguardo quanto a encarar o mestre havia cedido e os quatro se deliciavam com o resultado de sua participação no ânimo do companheiro.

Foi Joaquim quem se atreveu:

— Amigo Deodoro, você está mais perto de nós agora.

Percebeu que manifestara uma idéia muito obscura, mas deixou passar. Acrescentou:

— Antes, a vetusta aparência nos dava a impressão de estarmos perante o Padre Eterno, com perdão da mal citada...

Joaquim não conseguia concatenar os pensamentos. Tão lúcido um momento antes, agora dissociava as idéias, sem compreender o que se passava consigo mesmo.

Foi Deodoro quem arriscou uma explicação:

— Vejo, colega, que você está perturbando-se, ao exprimir um simples raciocínio. E sabe o porquê da dificuldade? É que você se emocionou. Aprendi, nas poucas horas que estou em vilegiatura forçada por estas bandas, que a gente não pode deixar-se influenciar pelo coração, pois, em seguida, as emoções tomam conta da mente e iniciam um processo de plasmação sobre os fluidos que nos cercam, como se realizássemos um trabalho independentemente da vontade consciente.

Os quatro se olhavam interrogando-se, como se todas aquelas expressões se diluíssem em quimeras, porque não afeitos a tal tipo de análise da realidade circundante.

Deodoro continuava impávido, apesar de avaliar as reações dos demais, antegozando o momento em que deveria responder a uma série de argüições pertinentes:

— Penso que você esteja tentando dizer-me que melhorei, no sentido de dominar melhor o meio ambiente, pelas forças naturais que se impregnaram em mim, através da absorção das vibrações de superior categoria, por desejar aos meus semelhantes que tudo venha a decorrer da melhor maneira possível, uma vez que dediquei afeto, no sentido bíblico, ao meu ex-aluno Hermógenes, que me entendeu e correspondeu. Foi um momento de plena felicidade, se é que podemos considerar os fatos como momentaneamente absolutos. Perdoem-me a tentativa de ensinar-lhes algo que para mim mesmo é muito novo, contudo, devo dizer-lhes que acredito nas transmissões telepáticas dos pensamentos, de forma que, em termos espíritas, estou como que mediunizado, aberto, portanto, para a recepção dos conceitos que estão no ar, como, na Terra, os receptáculos das ondas, como sejam os aparelhos de rádio e de televisão, se ligam idealmente aos que transmitem a distância. E essa virtude é recente para mim, oriunda, evidentemente, daquele amor evangélico a que me referi, segundo o prisma dos ensinos do Cristo. Alguém poderá oferecer-me em abono do que estou dizendo alguma passagem de um dos evangelizadores?

Os quatro deram instintivamente um passo atrás.

Deodoro percebeu que estava esperando demais deles:

— Não seja por isso. Eu mesmo vou fazer a citação. Encontra-se um texto em São João, capítulo III, desde o início até o versículo 15: “Ora, havia um homem entre os fariseus, chamado Nicodemos, senador dos judeus, — que veio, à noite, encontrar Jesus e lhe disse: Mestre, nós sabemos que o senhor veio da parte de Deus para nos ensinar como um doutor.; pois ninguém seria capaz de realizar os milagres que o senhor realiza, se Deus não estivesse com ele. — Jesus lhe respondeu: Em verdade, em verdade, eu lhe digo: Ninguém tem como ver o reino de Deus, se não nascer de novo. — Nicodemos lhe perguntou: Como pode nascer um homem que já é velho? Tem ele como reentrar no seio de sua mãe, para nascer uma segunda vez? — Jesus lhe respondeu: Em verdade, em verdade, eu lhe digo: Se um homem não renasce da água e do Espírito, ele não tem como entrar no reino de Deus. — O que nasceu da carne é carne e o que nasceu do Espírito é Espírito. — Não se espante do que eu lhe disse, que é preciso que você nasça de novo. — O Espírito sopra onde ele quer e você ouve sua voz, mas você não sabe donde ele vem, nem aonde ele vai.; acontece o mesmo com todo homem que nasceu do Espírito. — Nicodemos lhe perguntou: Como é que isso pode dar-se? — Jesus lhe disse: Quê! Você é mestre em Israel e ignora tais coisas? — Em verdade, em verdade, eu lhe digo que nós só dizemos o que sabemos, e que nós lhe prestamos testemunho do que nós vimos.; entretanto, você não aceita nosso testemunho. — Mas, se você não crê em mim quando eu lhe falo das coisas da terra, como irá crer quando eu lhe falar das coisas do céu? — Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do homem. — E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna.”

Joaquim gaguejou:

— Professor, como é que o Senhor é capaz de tão extensa citação?

— Respondam-me vocês se alguma passagem das que tenho citado não repercutem em seus cérebros como se vocês lessem no livro aberto debaixo de seus olhos.

De propósito, Deodoro deixou que o tempo passasse a fim de possibilitar que as idéias se organizassem em suas mentes. Enquanto isso, ele mesmo se aparelhava para dar uma resposta mais cabal à questão, compenetrando-se de que, se lhe tivessem perguntado antes, com certeza iria dizer que talvez pudesse se recordar e se atrapalhasse, porquanto algum elemento emotivo estaria interferindo na rememoração do texto. À vista da perplexidade imperante, não teve outra opção o velho professor senão dar continuidade às suas observações.

— Para dizer a verdade, eu não sei direito como é que o meu cérebro está se recompondo segundo premissas muito diferentes das que caracterizaram a minha personalidade terrena. Tudo está acontecendo como se os meus estudos, a minha reiterada dedicação aos textos (imaginem quantas vezes reli o meu querido breviário) estivessem sendo recompensados pelo inconsciente, que se mostra mais lépido e diligente, quando preciso dos recursos arquivados. O seu incentivo me foi o elemento mais valioso para reconduzir-me às atividades didáticas, vamos chamar assim o ministério educacional dentro do qual vivi por mais de duzentos anos...

Deixou escapar a estapafúrdia quantia, o que repercutiu muitíssimo mal nas mentes dos outros.

Hermógenes não se conteve:

— Professor, mais de duzentos anos?... Inacreditável. Só se estiver somando mais de uma existência terrena na qualidade de mestre.

Deodoro não se apertou:

— Confesso que deixei vazar uma informação sobre a qual não obtive domínio. Saiu espontaneamente do fundo da consciência. Mas, se atentarem para o texto que reproduzi, foi Jesus quem disse que é preciso que as pessoas renasçam muitas vezes para adquirirem as condições propícias para serem aceitas pelo Senhor. Não estou dizendo que mereço a ascensão definitiva, mas que, pelo que entendi, nós todos estamos num ponto da formação espiritual, porque temos a propriedade do intelecto, do raciocínio avançado, que demonstra que passamos pela carne, conforme a excelente referência de Jesus, diversas vezes. E Jesus só falava das coisas terrenas. Como seria se nos viesse falar das celestiais? Aliás, estaríamos atravessando um momento oportuníssimo, porque estamos deixando o círculo material mais denso para trás e nos preparamos para compreender a realidade presente, segundo uma nova filosofia existencial.

Roberto fez menção de participar e Deodoro cedeu-lhe a palavra:

— Fale, jovem amigo.

— Apenas para uma observação periférica ou secundária. Estávamos extasiados com o seu rejuvenescimento visual, vamos chamar assim as transformações que nos foram mostradas ao vivo e em cores. No entanto, a sua “performance” mental, a partir das primeiras frases que nos endereçou até esta verdadeira aula que nos ministra agora, sofreu incrementos vigorosíssimos. E olhe, querido amigo, que eu não estou apto a externar condignamente todo o meu tremendo embevecimento, porque é pobre a minha realização verbal.

— Imagine se fosse rica!

Houve um momento de descontração e todos puderam sorrir, como se sedimentassem ali uma amizade argamassada na compreensão de que os objetivos se uniam em prol do crescimento de todos, como um grupo de estudos e de trabalhos. Realmente, não precisaram conversar a respeito, porque foram capazes de se entenderem apenas pelas vibrações que se uniformizavam dentro de um padrão comum.

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