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Contos-->A noite das mil e uma histórias -- 12/01/2004 - 18:00 (MARIA PETRONILHO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Aberta que foi a porta, os sorrisos abraçaram-se, os olhos rebrilharam e o alívio d’Ele instalou se enfim, na expectativa d’Ela.
Ela esperara-o ansiosamente, preparando tudo afim de não vir a perder um só momento do usufruto da sua companhia.
Portanto, no ar rescindiam os perfumes, que Ele discretamente aspirava e Ela notava, satisfeita.
Sentaram-se lado a lado e uma aura de conforto envolveu-os, enquanto discorriam sobre todos os assuntos, sem divagar mas sem pressa, percorrendo tema a tema de tantos que os ligavam.
Eram ideias, ideais e sonhos, que acalentavam, lendo-se um ao outro como páginas abertas, convidando-se ao mútuo conhecimento.
Requeriam conselhos. Permutas.
Apontavam-se caminhos.
Faziam-se desafios.
Descobertas. Aventuras.
E o tempo decorria como ave que planasse no cimo de uma montanha.
Nos olhos d’Ele e d’Ela acendiam-se chispas.
Sem se tocarem, os sorrisos de um e de outro
iam-se beijando, no claro encontro.
Combinaram que era tempo de chamar à tona
os sentidos do paladar e do olfacto, reacendidos no deleite de degustar os alimentos que Ela combinara como se fizesse um poema, escolhendo cada partícula e tempero, buscando harmonias únicas, emoções gustativas irrepetíveis porque imaginadas, inspiradas, voláteis.
Sentaram-se frente a frente, alegres.
Ele serviu-a gentilmente e serviu-se.
Os sentidos flutuavam, os cincos que se nomeiam e mais os que pressentimos.
Assim, Ela soube que a Ele dava prazer quanto lhe oferecia; prazer que Ele não escondia, antes demonstrava, atento aos pormenores, sabores e formas.
Comentava cada pedacinho que experimentava, sabendo quanto prazer lhe dava a Ela.
Mostrou-se, como um menino, ansioso pela doçura fresca da sobremesa.
Lá fora estrondeavam as festas, no meio de ruídos, rolhas que saltavam das garrafas, estrondear de foguetes... as pessoas isoladas procuram umas junto das outras a ilusão de estarem acompanhadas.
Entre eles a confraternização fazia-se em harmonia.
O carinho, aninhado, transbordava-lhes do peito, como se duas trepadeiras se entrelaçassem, envolvidos os ramos de uma na outra, presas com força as gavinhas, tudo acontecendo na linguagem secreta das plantas.
E juntos partilharam as pequenas tarefas e se sentaram, confortados, lado a lado, no descanso da sala.
Escutaram música, apelando aos sentidos auditivos que erguessem a batuta e se sobrepusessem aos outros, para que ondulassem claras as emoções que a música despertava.

A conversa fluía, por entre risos, como um ribeiro flúi por entre os bosques, deixando ver através da transparência os seixos que, ao saltar brincando em línguas de água, saltaricam em gotas que se entretecem, se deslaçam e logo se reúnem sem quebrar o encanto em que discorrem.
Continuaram a desafiar-se, propondo ora Ele ora Ela que o outro escolhesse melodias, cantos, cantores, descobrindo a coincidência dos seus gostos como dois virtuosos lendo uma mesma pauta.
Ele fez um ângulo com as suas longas pernas e colocou uma almofada de penas entre elas, sobre os tufos do tapete, convidando-a a maior proximidade.
Ela aproximou-se, porém tímida, as pontas dos pés suportando todo o peso da ansiedade, que o resto do corpo, tomado de emoção, se lançava inexoravelmente em direcção ao abrigo aconchegado.
Sentou-se de frente para Ele, de pernas cruzadas, a certa distância, muito direita, na posição de flor-de-lótus.
Se bem que as pontas dos indicadores e dos polegares se não tivessem unido na posição do conhecedor, mas antes as palmas das mãos se dispusessem em concha sobre o colo, a esquerda sobre a direita, na forma de taça, de aceitação e dádiva.
Os olhos de ambos tocaram-se e beijaram-se, húmidos e ternos.
Ele estendeu a mão esquerda, a palma voltada para cima, serenamente entreaberta, e disse:
- Toca-me!
Ela interrogou-o sem palavras, hesitante.
E Ele de novo:
- Sente-me!
Ela levantou do colo a mão esquerda, que repousava na taça da mão direita, e estendeu três dedos, o médio, o anelar e o mínimo, aflorou a pele d’Ele, muito, muito ao de leve, receando não sabia o quê, talvez a pulsão que sentia crescer dentro de si.
- Repousa a palma da tua mão na minha e sente o fluir do meu sangue, murmurou Ele baixinho.
Lentamente, Ela acariciou a palma aberta e nela o coração que aflorava, docemente.
Sentiu o coincidir das pulsações, a compasso, ao mesmo ritmo.
E a palma da mão enfim distendeu-se, deu-se, espalmou-se e aderiu à palma d’Ele, como se um íman secretamente atraísse a limalha de todas as suas células.
A fusão era perfeita. Inegável. Completa.
Vinha de muito longe, de antes do tempo existir; concretizava-se naquele instante preciso.
Soavam apenas a música, o silêncio e o bater compassado que se percebia através das veias.
Encerrava-os um círculo prateado, de aceitação plena. Consentida. Assumida.
O olhar de um encontrou o do outro.
Não sorriram.
Desvendavam-se, atentos.
O seu imo conversava sem voz.
E tudo contaram um ao outro.
Falaram do antes, do agora e do depois.
Falaram com total desprendimento, na voz em que tudo se diz para além do som.
Falaram do ser e do sentir.
Contaram nessa noite mil e uma histórias de si, as acontecidas e as sonhadas.
De almas desnudas, uniram-se num secreto abraço, fundindo-se além do espaço que mediava entre os seus corpos apartados.
Interpretaram-se e preencheram-se.
Contaram um ao outro, sem peias e sem censuras que tinham perfeito conhecimento de algo que não nomeavam mas sabiam existir:
Um botão desabrochava em flor, do fundo de cada um, ansiando frutificar.
Abertas as pétalas, faltava o polinizador.
Os olhos não se desfitavam.
Os rostos mostravam as emoções perpassando como em telas expostas.
Mudos e nus, os rostos.
Distantes mas unidos, os corpos.
As palmas das mãos coladas.
A urgência a gritar por todos os poros.
Na calma imensa, a exaltação elevou-se que nem labareda.
O fogo polinizador apareceu de súbito, tal a chama que se alteia rubra, azul, amarela, negra, escaldante, intensa.
Suave, muito suavemente, quase sem mover os lábios, Ele pronunciou três palavras:
- Queres adormecer comigo?


Almada, 12/1/2004
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