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Erotico-->AS AVENTURAS DO PADRE DEODORO EM CAMPOS ETÉREOS — IX -- 25/07/2003 - 08:13 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Olhou ao derredor e encontrou uma cômoda, um criado mudo, um dossel e um crucifixo na parede. Só então reparou que trazia os óculos sobre o nariz, herói ou malabarista, que resistiu a tantos safanões, quedas e... Bateu com os olhos nas roupas e só então reparou que estava de batina. As vestes negras eram o seu vestuário mais comum. Enfiou a mão no bolso e encontrou o mesmo terço dos últimos tempos e o surrado breviário de seu ministério.

Como podem tais objetos ter vindo comigo? Plasmaram-se, de certo, que tudo o que ocorre aqui parece construído segundo a vontade dos espíritos ou das almas. Eufrásio me disse que deveria empregar espírito. Alma seria o espírito quando encarnado. Será que é essa a distinção?

Não parecia a Deodoro muito claro que Eufrásio lhe houvesse passado a instrução.

Se ele não fez enquanto eu estava desperto, pode muito bem ter-me municiado de conhecimentos durante o sono.

Atentou para a possibilidade.

Como é que eu posso ter necessidade de repouso, se não estou mais de posse de meu corpo material?

Aguardou um instante para ver se a resposta lhe seria passada por intuição.

Se o bom amigo estiver invisível, acompanhando-me nesta caminhada sofrível...

Notou que a frase incidia em eco.

Devo estar ficando louco, porque a preocupação da hora deveria prevalecer. No entanto, dou valor a insignificâncias.

Pensou em diversos termos para rimar com insignificâncias.

As minhas ganâncias não me causarão ânsias sem importâncias...

Mas não foi muito longe, pois rejeitou o desvio da análise que se propusera do miserável cômodo. O catre apresentava um dossel, mas o travesseiro vinha forrado de tecido grosseiro, da mesma forma que os lençóis, que não primavam pela limpeza impoluta daquele outro quarto em que mantivera o colóquio filosófico com Eufrásio.

Por que será que o nome do companheiro às vezes eu digo Eufrásio e outras, Eustáquio?

Não soube responder à questão, como deixara no ar o problema da necessidade de descanso.

Se eu tivesse um caderno de anotações e uma caneta ou um lápis, iria fazendo anotações, para perguntar a alguém de confiança... Confianças, lembranças, constâncias... Agora estou misturando os sons. Que belo poeta eu daria!

Recordou-se dos tempos juvenis, quando compusera um hino à Virgem e outro a Jesus. Fora mal nas músicas, ajudado por um parceiro de seminário, mas as letras saíram a contento, tanto que os colegas cantaram nas festas de encerramento das atividades do ano.

Por onde andará o Rupério? E o Augusto? E o Domingos?...

Um a um, foi capaz de recordar-se de todos os amigos. Esforçou-se para ver se a memória não o trairia em relação à escola primária, mas se deparou com todos os rostinhos infantis de suas peraltices escolares.

Não vou precisar de caderneta nenhuma, com tal poder de rememoração. Em todo caso, deixa abrir a mesinha de cabeceira, para verificar o que temos aqui.

Com alguma dificuldade, sentou-se no leito e puxou a gaveta, que se deixou locomover sem resistência. Ali, encontrou lenços misturados com meias e, incrível, uma pomada que costumava usar quando sentia certos pruridos anais. Quase por instinto, impulsionou de volta a gaveta com certa força, provocando um baque surdo que ressoou no ambiente.

Pronto, vão pensar que caí da cama.

De fato, Margarida bateu e foi abrindo a porta, perguntando:

— Monsenhor, está precisando de alguma coisa? Pareceu ouvir um ruído. Mas vejo que está tudo bem.

— Não foi nada, Irmã, eu é que fechei com muita força a gaveta do criado-mudo. Estava investigando o que poderia encontrar ali.

— Não fornecemos muita coisa nova, que somos uma comunidade pobre. Mas o Senhor pode ver que as meias e os lenços estão limpos e passados a ferro. Eu me lembrei da pomada e deixei um tubo à disposição.

— Eu vi, querida. Muito obrigado. Já que você está aqui, diga o que se guarda no armário.

— Algumas mudas de roupas brancas, outra batina, os paramentos, mais um par de sapatos...

— Não precisa relacionar tudo. Mas me diga, a quem pertenceram tais objetos?

— A Vossa Reverência, não se recorda?

— Desde quando?

— Desde os tempos de sacerdócio na Terra.

— Mas me disseram que a gente não traz nada quando morre.

— Disso eu entendo muito pouco, mas a verdade é que, assim que o Monsenhor chegou, abrimos as suas malas e colocamos as suas coisas no lugar.

— Eu não trouxe mala nenhuma.

— Então, alguém veio com elas. Eu achei ótimo, porque estavam devidamente marcadas, conforme as recomendações da madre superiora.

Deodoro admirava-se cada vez mais com a concretude que as coisas iam aparentando. Mas não insistiu junto à auxiliar.

Afinal de contas, que pode saber uma mulher que abandonou os estudos e as facilidades de aprender?

— Margarida, você está sendo muito útil para mim. Mas se você me disse que era enfermeira e que ajudava os doentes, como é que está tratando de mim, que me considero forte o suficiente para pensar com tanta clareza?

— Eu presto serviços a todos que chegam. Alguns permanecem internados por alguns dias. Já tratei de um padre dois anos no leito, dando muito trabalho. Em média, uns quinze dias são suficientes. Mas Vossa Reverência, se tiver coragem de enfrentar logo as tarefas, porque se sente confortável e sadio, não se acanhe, que me facilitará o trabalho, porque, nesta ala do mosteiro, eu cuido de mais onze pacientes, alguns bastante debilitados. Cada vez que se dá alta a alguém, logo outro ocupa o lugar dele. Digo isso, para que não pense que estou desejando livrar-me do trabalho. Mas me daria muita felicidade cuidar de Vossa Reverência, porque tenho uma dívida muito grande, que não sei como pagar.

Dessa vez, Deodoro foi deixando que Margarida falasse. Gostou de saber que era benquisto por alguma coisa que fizera de bom. Mas bailava em seu cérebro a idéia de que a mulher roliça era por demais ingênua e aceitava de boa mente o respeito com que deveria apaniguá-lo. Recordou-se do berreiro durante a caminhada e disse-o francamente:

— Margarida, você não se sente injustiçada por não haver obtido o direito de adentrar o Paraíso, tantas vezes confessou os pecados e rezou as penitências que lhe passava? Ou melhor, por que você não se reúne com os que estão do lado de fora, acusando os sacerdotes de falsidade?

— Monsenhor, se eu lhe contar que passei cinco anos junto às muralhas, lamentando ter sido iludida, Vossa Reverência acreditaria?

— E o que você fez para merecer entrar?

— Eu perdoei, como me lembrei que o Padre Deodoro me dizia que Deus me perdoava. E aceitei a penitência de trabalhar junto com as almas que mantêm esta colônia de religiosos e religiosas, para poder resgatar as minhas culpas, porque me arrependi de tudo quanto fiz na Terra, principalmente porque roubei o marido...

Lágrimas impediram a freira de prosseguir a narrativa dos acontecimentos que a envolveram e que lhe causavam insuspeitado sofrimento.

— Minha querida, eu posso fazer algo por você?

— Reze por mim, Monsenhor, que Jesus há de ouvi-lo.

Margarida fez menção de beijar a mão de Deodoro que lhe estendeu o dedo do anel. Para espanto seu, lá estava o símbolo religioso de sua posição hierárquica. Sentiu o calor do pranto da criatura que se ajoelhara aos seus pés e, com a humildade do momento, disse, apontando para a porta:

— Agora vá, minha filha, que não convém estas emoções para um coração tão velho quanto o meu.

Margarida saiu de ré, como se o fato de lhe dar as costas pudesse ofendê-lo.

Mas as coisas aqui não estão muito diferentes do que passei quando vivo. Se a simples lembrança de quem fui produz tais reações de submissão e de carinho em pessoa que me deve tão pouco, como reagirão aquelas a quem dediquei afeto e demonstrei...

O simples pensamento dos feitos mais pungentes colocou freios à rememoração menos sadia dos relacionamentos condenados pela comunidade religiosa, segundo os juramentos que prometera cumprir e que deixara tantas vezes de lado. Para afastar-se das preocupações mais graves, pôs-se de pé e avaliou as condições físicas. Precisou apoiar-se no móvel à sua frente, mas com algum sacrifício adotou uma postura ereta.

Devo ter regredido para a idade dos oitenta e oito, mais ou menos.

Alegrou-se com a perspectiva.

Em breve, estarei apto a percorrer os corredores. a oficiar missas a ministrar os sacramentos. Deixa estar, Eminência, que vou recordar todos os ensinamentos do seminário e quantos mais assimilei durante tantos anos de sacerdócio.

Abriu o breviário ao acaso e leu:

“Pilatos, tornando a entrar no palácio e tendo feito vir Jesus, lhe perguntou: Você é o rei dos judeus? — Jesus lhe respondeu: Vem de você mesmo esta pergunta, ou lho disseram outros a meu respeito? Replicou Pilatos: Porventura sou judeu? A sua própria gente e os principais sacerdotes é que o entregaram a mim. Que fez você? Respondeu Jesus: Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, minha gente teria combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus.; mas meu reino não é em absoluto daqui. — Perguntou-lhe Pilatos: Logo, você é rei? — Jesus lhe retorquiu: Você o diz.; eu sou rei.; eu nasci e vim a este mundo apenas para dar testemunho da verdade.; quem tem parte na verdade escuta minha voz.” (São João, XVIII: 33-37.)

Deodoro alegrou-se com o texto que prenunciava o reino de Jesus para o outro mundo. Era a confirmação da promessa de que um dia ou outro seria recebido de braços abertos pelo Salvador.

Margarida, com sua simplicidade, atingiu o cerne da questão, quando disse... como foi mesmo?... que perdoou e que aceitou a penitência, à vista do arrependimento dos pecados. Se esta casa de retiro espiritual é transitória e ainda seremos elevados para o Céu, o melhor que faço será corresponder aos anseios de Jesus, em nome das pessoas que se organizaram em respeito à sua igreja. Devo renovar os votos de obediência, de castidade e de pobreza, além de me manter em silêncio, devotando-me às orações e aos trabalhos mais humildes. A idéia de rezar missas e executar outros ministérios mais gloriosos não deverei pleitear, porque seria faltar com a modéstia e com a humildade. Caso contrário, não estarei dando ouvido à verdade, conforme a condição estabelecida por Jesus e transmitida a Pilatos.

Enquanto meditava, Deodoro retirou a batina, ficou com as roupas de baixo, recostou-se na cama, acomodou a cabeça no travesseiro, instintivamente apanhou o terço, beijou-lhe o crucifixo e começou a perpassar as contas, em orações mecânicas, conforme era seu hábito quando queria dormir logo.

Deodoro teve a impressão de ter passado por leve sono e já se encontrou desperto, forçado pelo vozerio externo a levantar-se com extrema curiosidade para decifrar o mistério das matinas.
Ao mesmo tempo, Margarida adentrava o quarto e punha em ordem as roupas que haviam ficado pelo chão. Ia resmungando:

— Sempre o mesmo, Monsenhor?! É preciso ter mais cuidado com os seus pertences, que nem tudo se consegue do bom e do melhor. Quem tem uma batina tão bem cosida, deve preservá-la. Então, como é que está hoje? Vai conseguir levantar?

Falava e ao mesmo tempo ia pegando o padre pelo braço, ajudando-o a pôr-se de pé. Deodoro precisou de algum tempo para acostumar-se com a postura, que a cabeça ameaçou girar. Mas sempre conseguiu equilibrar-se. Havia uma cadeira num canto, para a qual se encaminhou. Enquanto se movimentava lentamente, Margarida, em três tempos, alisou o colchão e deu um trato nos lençóis, batendo o travesseiro para dar-lhe a forma primitiva.

— Vejo que Vossa Reverência está bem disposto. Então, devo avisar Crisóstomo de que vai dar para ele levá-lo à igreja.

Não esperou resposta e saiu.

Estranha criatura essa. Ontem tão afável e hoje tão apressada. Quase diria grosseira e desrespeitosa. Mas fez o seu serviço. Por certo, tem de correr para os outros quartos.
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