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Erotico-->AS AVENTURAS DO PADRE DEODORO EM CAMPOS ETÉREOS — VIII -- 23/07/2003 - 19:29 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
3. O MOSTEIRO

Notou Deodoro que penetrava uma claridade tênue por passagem lateral. Caminhou meio trôpego para aquela banda, cansado, e pôde reconhecer uma abertura bastante rústica.

— Irmão, não se esqueça de que Jesus, que era Deus ele mesmo, após a crucificação, desceu aos Infernos, onde permaneceu três dias. Não estranhe que você tenha sido tentado de todos os modos a renegar a sua fé. Você esteve em mãos diabólicas, mas, graças a Deus, agora está recuperado.

Deodoro queria ver o indivíduo que lhe dizia palavras tão generosas, tão reconfortantes:

— Onde está você, irmão?

— Estou do lado de fora, aguardando a sua decisão de subir os degraus para a salvação.

Deodoro hesitava. Não sabia de onde vinham as reminiscências daquelas expressões. Parecia-lhe que a pessoa que assim tratava com ele deveria descer para ajudá-lo a subir.

— Por que você não vem auxiliar-me?

— É preciso saber se o Padre Deodoro realmente deseja vir para o nosso lado, para prosseguir em sua caminhada rumo ao Paraíso. Se preferir ficar onde está, imerso em sombrios pensamentos, tudo bem. Mais tarde, você, caro amigo, irá resolver-se.

Deodoro não se deixou convencer pelas palavras do outro. Mas a perspectiva de ficar rodando em torno de si mesmo não foi a mais animadora. Decidiu, portanto, partilhar da companhia que se ofertava com menos gentileza do que as nuanças melífluas de suas palavras.

De qualquer modo, pensou, acho que devo antes solicitar-lhe que me acompanhe num padre-nosso.

— Escute, aqui, você aí de fora, vamos rezar uma prece para que Jesus nos ajude, porque eu me sinto muito fraco.

— Tudo bem, Deodoro. Eu começo e você termina. Que tal um padre-nosso?

— Era o que eu tinha em mente.

— Antes, devo dizer que você está me entristecendo com suas desconfianças. Vejo que está temeroso de cair numa armadilha do Demo. Mas eu não vou enganar o nobre amigo. Você não está indo para o Céu, mas também não vai passar nenhuma temporada junto aos caldeirões de óleo fervente. Você acha que o Senhor iria ser tão injusto com um de seus mais fervorosos sacerdotes, alguém que dedicou toda a vida para a Igreja Católica? Pois saiba que o meu nome é Padre Crisóstomo e estou à sua espera faz algum tempo, desde que você abandonou a campa em companhia do Padre Eustáquio.

— Padre Eufrásio, irmão.

— Certamente foi esse o nome que ele lhe deu. Mas, na verdade, queria fazer-se passar por quem não era. Você não desconfiou dele?

— Foi o que mais me preocupou.

— É que faz muito pouco tempo que você chegou. Não teve ainda oportunidade de reconhecer o local para onde está destinado.

— Quer dizer que já estive lá?

— Claro que sim. Deus nos permite que, durante o sono, a gente volte para o local do Purgatório, para encontrar-nos com os amigos mais fiéis, para reafirmarmos os votos de obediência, para o sacrifício da vida por amor de Deus e da Santíssima Virgem.

— Padre Crisóstomo, do jeito que você está falando, é como se nos conhecêssemos.

— Quando você conseguir sair desse buraco escuro, onde não posso entrar, verá quem sou eu e sua memória se restabelecerá.

— Não será como ocorreu com o Padre Eufrásio?

— Padre Eustáquio, por favor.

— Como é que vou ter certeza?

— Do que é que você tem certeza, além de trazer à lembrança os fatos de sua recente vida e de que já transpôs os umbrais na morte?

— Tenho certeza de minha fé em Deus, em sua misericórdia, em sua justiça e nas promessas de salvação do Cristo. E tenho certeza de ter feito o melhor possível para honrar a Santa Madre Igreja, em nome de Deus.

— Pois isso é bem mais do que muitos colegas nossos que aportam deste lado condenando a ausência das legiões de anjos e arcanjos, para a transferência imediata da alma para o Paraíso. Antes, é preciso compreender alguns princípios que nos fazem melhorar, para merecermos ascender aos pés do Senhor. Venha, que eu estou esperando Vossa Eminência.

— Se o amigo sabe quem sou, não deve tratar-me por formalidade que não alcancei. Cheguei a...

— ... monsenhor, é claro. Então, aceite que o chame de Vossa Reverência, que é como eu quero que os que não têm intimidade comigo me chamem, apesar de merecer aquele tratamento que Vossa Reverência recusou.

— Eminência, Cardeal Crisóstomo, quanta consideração! Perdoe-me não ter reconhecido a sua dignidade!

— Vamos ver se o meu abraço vai convencê-lo de que estou aqui para ajudá-lo, porque a sua provecta figura, caríssimo Deodoro, é de todo respeitável, tantas foram as glórias de seu longo ministério.

Esforçou-se Deodoro por subir os poucos degraus que o separavam da saída. A facilidade com que se deslocara anteriormente estava quase desfeita. Movia as pernas sem presteza e o peso do corpo parecia desproporcional. De qualquer modo, logrou o objetivo, vendo-se fora da masmorra, mas com a vista turva e os membros trêmulos.

Sentiu que o agarravam pelos braços e que o depositavam num banco duro, dentro de um veículo que partiu sacolejante. Aos seus ouvidos, a voz que o recebera naquela região:

— Não estranhe o incômodo da situação. Logo você estará bem melhor, porque vai ser acomodado numa cela parecida com aquela que ocupou no convento. A sua visão está prejudicada, Reverência, porque os olhos não se acostumam com muita facilidade à luz mais poderosa desta parte do Purgatório.

— Aquele padre que você disse chamar-se Eustáquio...

— Não hesite em chamá-lo de Eufrásio, se é assim que Vossa Reverência se sente melhor. Para nós do mosteiro, tanto faz.

— Mosteiro? Aqui no Umbral existe um mosteiro? De que irmandade?

— Vossa Reverência, Padre Deodoro, está desejoso de saber muita coisa desde cedo. Mas não seja curioso. As descobertas devem ser paulatinas. Não é verdade que já está observando-me como se fosse um vulto?

— Estou vendo que Vossa Eminência está ao meu lado, que está exalando um forte odor de sacristia, certo mofo misturado com incenso e fumaça de velas de estearina.

— Vejo que a sua acuidade olfativa está melhor que a visual. No entanto, devo dizer-lhe que está atribuindo esse aroma a mim quando deveria saber que existe uma atmosfera exterior saturada por essa mistura, porque são as emanações de nossa colônia, onde a Religião se mantém intacta, nos preceitos cristãos fixados nas bulas papais e nos editos conciliares vigentes, segundo a palavra do Cristo que registram os Evangelhos. Entretanto, a sua atitude é que o mantém afastado da realidade que o está agasalhando. Se Vossa Reverência se dispusesse mais afeito a acatar a verdadeira condição existencial em que subsiste, iria mais rápida e facilmente dominar os sentidos e poderia integrar-se na comunidade que se preparou festivamente para recepcioná-lo, embora não lhe vamos oferecer o Paraíso. Lembre-se, bom padre, de que Jesus desceu aos Infernos, como lhe lembrei oportunamente.

Deodoro, não respondeu, mas deixou-se impressionar pela faculdade de manifestação lingüística do outro. Avaliou a entonação e admirou-se da afabilidade com que a voz lhe demonstrava o pensamento positivo de quem lhe desejava proporcionar proveitosa estadia em local que imaginava aprazível, conforme as recordações dos tempos em que viveu às expensas dos nobres dignitários religiosos. Não seria o Paraíso, por certo, mas esperava-o o bem-estar do gozo material que experimentara ao chegar da Terra, uma vez que nenhum sofrimento lhe perturbara os órgãos ou os membros. Faltava que o outro lhe respondesse às provocações mentais, como Eufrásio fizera. Mas o Cardeal Crisóstomo preocupava-se em dar outro rumo à conversação:

— Queridíssimo Deodoro, Vossa Reverência irá encontrar uma cidadela mais ou menos aquartelada, porque somos assediados constantemente por almas de irmãos que nos apedrejam com os termos mais pesados e agudos, culpando-nos por permanecerem estacionados em locais de sofrimento e dor, já que não fizeram por merecer melhorar de condição pelas boas ações em prol dos semelhantes. São pessoas que se iludiram com as falsas propostas que fizeram aos sacerdotes, desejosas de serem perdoadas, sem que se tenham arrependido dos pecados confessados, havendo praticado o sacrilégio da comunhão ainda com o peso das faltas.

— Não caberia aos que moram no monastério esclarecer-lhes os maus pensamentos?

— Vossa Reverência irá conhecer melhor o que se passa, quando deixar o leito. Devo dizer-lhe, caríssimo, que precisará de muita coragem para enfrentar, mesmo que seja um só, daqueles indivíduos mal-agradecidos, que tanto trabalho nos deram em vida e que agora desejam que lhes paguemos eternamente as desilusões provocadas por suas próprias fraquezas. Vossa Reverência verá. Por falar nisso, já não está capacitado a distinguir as minhas feições?

Deodoro esforçou-se para delinear visualmente a sombra que se formava em suas retinas. Ia desistir, quando conseguiu enxergar a figura de vermelho que lhe segurava as mãos. Estremeceu involuntariamente mas se manteve íntegro no aspecto fisionômico, sem demonstrar desagrado. Apenas conseguiu exclamar, entre surpreso e fingidamente alegre:

— Eminência, quanto prazer em revê-lo. Só agora estou pondo atenção no nome que não me fazia lembrar de ninguém. Claro que Vossa Eminência é o Cardeal Crisóstomo, com quem tantas vezes me encontrei, em circunstâncias não muito claras para minha condição atual de memória. Contudo, sei que me perdoará e me compreenderá, pois, pelo que pude observar, as pessoas quando morrem perdem bastante de seu traquejo social, de sua perspectiva hierárquica, como se a gente se ungisse no sacerdócio como no matrimônio os casais se ligam apenas até que a morte separe os cônjuges.

Buscava as palavras, para disfarçar os sentimentos. Mas o abraço apertado que recebeu de Crisóstomo não lhe passava outra idéia além de que estava sendo absolutamente bem-vindo.

— Nós nos encontramos muito, prezado companheiro, durante as suas visitas a este sagrado compartimento da existência, enquanto ressonava na carne, deixando o corpo repousar. Víamo-nos nessas oportunidades, alma com alma. Vossa Reverência irá acordar para a verdadeira condição de sua vida, quando puder ler o que escreveu, justamente para o caso de lhe ficar obscurecida a mente, conforme Vossa Reverência mesmo suspeitou nos últimos tempos em que se deixou estar pregado ao leito.

— Quer dizer que vou ficar hospedado em local conhecido?

— É essa mesma a condição do agasalho que proporcionamos aos companheiros de sacerdócio, aqueles que não renegaram os princípios cristãos nem desfizeram os votos de obediência.

— Mas eu confessei que rompi meus votos de castidade e de pobreza, Eminência.

— Não será por essa razão que estamos todos nós nesta região purificatória?

A viagem iria prosseguir silenciosa, pois os dois prelados imergiram em profundas reflexões.

Mas não demorou muito para entrarem em faixa de arrelia geral, tantas eram as imprecações que ouviram a seguir a condução onde se protegiam.

Deodoro não sabia discernir as acusações, que os ouvidos não distinguiam as individualidades, mas o tom geral era de revolta, de dissidência, como se a multidão pleiteasse o direito de pôr as mãos sobre os que passavam. Mas Sua Reverência, como estava gostando de ser alcunhado, não temeu pela sorte da comitiva. Conjeturou que o cardeal não poderia estar só, de forma que não se abalou, afastando os pensamentos ruins através de oração dita no intuito de exorcizar as ameaças.

Foi Crisóstomo quem rompeu o silêncio:

— Vejo que o irmão tomou a melhor atitude, relativamente a debelar o perigo.

— Não sei o que se passa, mas não entendo o vozerio como capaz de pôr paradeiro à nossa caminhada. Se houvesse a iminência do assalto, não teríamos tido tempo sequer de ouvir nada. Sofreríamos a desdita e ficaríamos sob o poder daqueles a quem Vossa Eminência se referiu como crentes em débito para com a consciência religiosa e para com o Senhor, porque acusam a todos de cometerem injustiças. Não é assim que devo analisar o que está ocorrendo lá fora?

— O amigo Deodoro está raciocinando fundamentado nos preconceitos terrenos. O risco que corremos não é o de sermos aprisionados, nem feridos ou mortos, que mortos, feridos e aprisionados já estamos...

— Isso é muito estranho.

— Eu explico: a nossa liberdade de movimentação é muito restrita, neste setor ambiental do espaço etéreo, com perdão dos maus conceitos. Mas é que aqui não podemos ser forçados a nada, a menos se dermos razão a quem nos pressiona, caindo na armadilha que tivermos preparado para nós mesmos. Se mantivermos a postura, se não revidarmos por atos, palavras ou pensamentos...

— Acredito que os pensamentos sejam perigosos, já que proporcionam a criação justamente do que nos for possível conceber como a realidade circunstante.

— O seu amigo Eustáquio (Eufrásio, para Vossa Reverência), tendo em vista a sua compreensão distorcida da realidade, chamaria a esse ato de plasmar ou corporalizar o mundo, segundo os temores e os fantasmas que habitam a nossa consciência. É um processo muito complexo, sobre o qual não temos domínio, bastando-nos levantar a guarda para não sermos atingidos em nosso amor-próprio, o que ocorreria se inventássemos que tais indivíduos estivessem em pé de igualdade conosco, segundo o preceito de que todos somos irmãos em Deus.

— E não somos?

— De princípio, sim. Mas existem diferenciações entre as almas, conforme o nível de aquisições morais e intelectuais que só o sacrifício esclarecido pelas orientações evangélicas nos proporcionam. Não fora isso e não se poderia admitir a existência do Céu, do Purgatório e do Inferno. Se Vossa Reverência não concordar comigo, vai ter de estudar o catecismo de novo.

Deodoro quis avaliar se o cardeal estava gracejando ou se falava com absoluta seriedade. Mas não conseguiu decifrar pela expressão fisionômica do outro. Então, perguntou:

— Vossa Eminência está querendo me assustar?

— Jamais, Monsenhor. Sei de sua capacidade e de seus conhecimentos. O que me move é o temor de que tenha tido tempo o Eustáquio de colocar caraminholas na sua cachola.

— Vejo que as palavras devem induzir-me a crer em que agora esteja brincando.

— Estou, Reverência, é colocando-o à vontade, ao mesmo tempo que advertindo-o para as responsabilidades que todos temos relativamente à orientação dos que se encontram esquecidos dos princípios dogmáticos. O pior defeito, como Vossa Reverência bem sabe, é o desafio de quem prega que Jesus não nos fez herdeiros de sua igreja, para a nossa pregação da verdade universal. Nesse sentido, agem bem melhor que muitos de nós do catolicismo os protestantes de todos os cultos e seitas, porque rejeitam “in limine” qualquer resquício de pensamento próprio. Nossa comunidade permite que elaboremos as nossas peças oratórias, para o sermão dominical, e nos oferece todos os subsídios para a exemplificação através da vida e dos estudos realizados pelos santos. Mas daí a nos desviarmos do verdadeiro caminho vai arremessar-nos justamente às mãos daquela turbamulta que nos espreita para além das linhas de nossa muralha.

Só então Deodoro percebeu que a arruaça havia cedido e que a geringonça que os transportava estava parada.

— Antes de sairmos, explicou Crisóstomo, preciso avisá-lo de que preparamos uma festa para recebê-lo. Não se deixe emocionar, porque muitos que estão aguardando por Vossa Reverência são velhos conhecidos, colegas, alunos, paroquianos, familiares e até professores e superiores na ordem. Mantenha a serenidade e faça de conta que muito pouca coisa tem de ver com sua pessoa, do contrário irá mergulhar em profundo abatimento, já que as pessoas que vai ver não estão aureoladas de luz, conforme supunha em suas preces, quando requeria que o Pai se condoesse dos sofrimentos e que perdoasse os pecadores, que todos somos. Devo dizer-lhe que esta é a principal missão de que me encarrego na instituição, qual seja, a de trazer em paz os corações dos que se decepcionam consigo mesmos, porque se acreditavam merecedores de freqüentar a casa de Deus e, de repente, se vêem presos entre paredes vetustas, com ares muito mais de presídio do que de casa de repouso espiritual. Mas você irá acostumar-se aos poucos, até recuperar as forças e colocar os seus préstimos a serviço da comunidade. Coragem, amigo. Agora, guarde as perquirições e goze um pequenino momento de glória, que é aquilo que somos capazes de propiciar aos que ofereceram o sacrifício de suas vidas para a Santa Madre Igreja.

Deodoro fez um gesto para que Crisóstomo aguardasse um momento. Queria avaliar a possibilidade de locomover-se, já que sentia um peso enorme no corpo, como se estivesse, naquele justo momento, recompondo-se para levantar do leito. Perpassava-lhe pela memória a facilidade com que se deslocara antes de sair da caverna e até mesmo a correria lá dentro. Mas Crisóstomo não lhe deu mais do que alguns segundos, abrindo a porta da carruagem e fazendo entrar o alarido de recepção dos amigos que se reuniam no pátio.

O recém-chegado deslocou-se com enorme esforço para fora e, amparado por braços fortes, se viu de pé sobre o estribo, de onde acenou para os presentes. Reconheceu alguns com quem mantivera simpático relacionamento durante a vida. Entretanto, não suportou a atmosfera carregada e desfaleceu, sendo transferido para o pequeno quarto, onde chegou acordado, sendo esperado por uma freira rotunda, velha conhecida dos tempos em que dava aulas de religião, em peregrinação por várias escolas de primeiro e segundo ciclos.

— Monsenhor Deodoro, quanta saudade, meu Deus! O senhor está um trapinho, mas vamos colocá-lo em forma em pouco tempo. Vai ver! Agora, veja se consegue dormir um pouco, enquanto fecho as janelas e os cortinados, para que a luz não o perturbe.

— Margarida, eu me lembro muito bem de você, dos tempos em que íamos...

O restante da manifestação de solidariedade se perdeu, porque se cruzaram no cérebro do professor alguns sucessos não totalmente felizes envolvendo a enfermeira de plantão. Recordou-se com muita nitidez das confissões e das prescrições que fizera relativamente à reforma moral da noviça, que, finalmente, havia deixado o hábito sem os votos, passando a viver em concubinato com um homem casado, pai de família, com numerosa prole e que...

Suspendeu a rememoração dos fatos e pôs-se de prevenção quanto ao fato de que dera todos os sacramentos à infeliz, conduzindo-a, inclusive, ao campo santo em que foi enterrada mui modestamente, único acompanhante eclesiástico a representar a congregação religiosa.

Eis que a coitada está agradecida até agora e se recorda de mim com alguma felicidade. Deus a abençoe e proteja de novos tropeços.

Fez menção de benzer a mulher mas não se sentiu bem, como se a sua atitude ofendesse algum princípio superior, como se estivesse em débito com os cânones sagrados, como se já não fosse aquele mesmo sacerdote que fora reconhecido ao chegar.

Terei mesmo que voltar aos bancos escolares da infância, para reaver os tesouros do catecismo e das primeiras lições doutrinárias?

O pensamento pareceu-lhe insólito. Se Eufrásio estivesse presente, não hesitaria em interrogá-lo. Perto de Crisóstomo, que fazia menção de se retirar, não ousava quase refletir a respeito dos sentimentos novos que lhe prendiam a desenvoltura eclesial.

— Reverência, vou deixá-lo aos cuidados de Madre Margarida. Mais tarde, quando estiver melhor, já refeito das emoções da chegada, voltaremos a conversar, pois tenho muitas instruções que lhe serão úteis para o desempenho de suas atribuições no mosteiro. Fique com Deus!

Deodoro estranhou que Margarida recebesse o título, como se houvesse declarado os votos. Não resistiu e perguntou-lhe:

— Irmãzinha, não me lembra que você tenha recebido a unção. Você pode explicar-me isso?

— Monsenhor, em vida, fui uma pecadora, como lhe confessei tantas vezes. Vossa Reverência bem sabe que... Não importa. A verdade é que, assim que cheguei, me disseram que estavam faltando enfermeiras e que eu ganharia a posição de Irmã de Caridade se prestasse os serviços correspondentes junto aos enfermos recém-chegados da vida.

— E quanto aos votos?

— Jurei a mim mesma que iria desempenhar o papel que abandonei na Terra, descaindo da confiança das minhas superioras. Aquele arrependimento que o Senhor me pedia, finalmente, eu compreendi bem do que se tratava e agora faço o melhor que posso para merecer passar pelo fundo da agulha, até ser recebida por Jesus na glória celestial.

Deodoro fez um gesto interrompendo o discurso que ameaçava prosseguir no sentido da recomposição de tudo o que fez a pobre mulher de errado na vida. Imediatamente calou-se ela, indicando que respeitava a vontade do antigo confessor.

— Minha boa amiga, deixe-me sozinho com a minha meditação, por favor.

Testava ele o grau de obediência à sua vontade. De fato, em segundos, não sem ouvir a recomendação de que deveria chamar se precisasse de algo, viu-se a sós no quarto. Não resistiu à comparação:

Troquei uma situação agradável por outra bem inferior. Contudo, aqui convivo com pessoas que me têm apreço e que me favorecerão, por certo, a recuperação do poder de influenciação que Eustáquio obstava, sempre colocando senões em meus argumentos. Vamos ver se consigo explorar o ambiente.

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