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Erotico-->AS AVENTURAS DO PADRE DEODORO EM CAMPOS ETÉREOS — VII -- 23/07/2003 - 11:22 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Aguardou com certa ânsia que voltasse o outro, mas permaneceu sozinho. Lamentavelmente, vou ter de criar de novo a minha personalidade material e determinar-me a uma atitude mais drástica, quando gostaria de me ver instruído...

Recordou-se de que havia caminhado através do quarto quando Eufrásio estava ausente. Buscou esticar as mãos e os pés e facilmente reconstituiu a figura anterior. Com facilidade, aproximou-se da janela, notando que havia um fecho simples, um gancho que desprendeu, escancarando as folhas. A janela abria-se para um pátio ajardinado, florido, bem cuidado. Ao derredor, erguia-se um alto muro. O local estava deserto: nem pessoas, nem animais. Aspirou o aroma e só então notou que havia uma claridade suave, como se o ambiente estivesse recebendo a luz de diferentes pontos, artificialmente. Ia pensar no desperdício da energia, mas conteve-se a tempo, retrucando que a sua perdição estava em implantar na realidade desconhecida os preconceitos terrestres. Atravessou o vão da janela e se viu entre as árvores, que tocou temeroso de surpresas. Mas os troncos eram troncos, as folhas, folhas e as flores, flores, segundo sua experiência.

Gozado, quando faço uma conjectura, logo me vem à idéia que estou sendo precipitado. Quando examino com os sentidos, constato que poderia muito facilmente ter concluído de acordo com a realidade. Isto é muito esquisito. Se Eufrásio estivesse presente, era um ponto interessante para ser esclarecido. A menos que eu esteja sendo orientado pelas lembranças anteriores à minha vida, porque, se não fui criado para viver na Terra, então devo ter guardado, em algum ponto de minha psique, de meu espírito, de minha alma (claro!), como se comporta a natureza de além-túmulo. Mas isto seria negar tudo o que eu trouxe comigo e que preguei aos paroquianos...

Precisou sentar-se num banco de pedra que encontrou como que disposto a ampará-lo. O pensamento de que poderia ter passado a vida a ensinar tudo errado às pessoas assomou lugar na mente e no coração de Deodoro, a ponto de assoberbá-lo completamente. Sentiu a frustração da perda da individualidade, como se lhe desfizesse o ser no nada dos materialistas e dos positivistas, o que ele tanto vergastou. Deixou-se estar alienado do que era, do que poderia vir a ser, preso a um momento que não iria passar jamais, sem passado e sem futuro, que tudo lhe estava sendo negado. Era como se houvesse perdido o interesse em existir. Acostumado a esperar a morte, impossibilitado de movimentar-se no leito desde alguns anos, Deodoro não sabia mais o que era ter pressa. Assim, deixou-se ficar alheado naquele recanto paradisíaco, muito melhor provido de delícias do que de sugestão de tristezas. A natureza do local era acolhedora e se deixava impregnar de suaves fragrâncias. Mas o sacerdote não prestava atenção em nada que não fosse o seu roteiro frustrado de vida, não acreditando que tivesse permanecido tanto tempo imbuído de sacrílegas teorias, sacrílegas sim, porque não era capaz de conceber que a religião que professava não lhe dissera toda a verdade.

Apoiado com as palmas da mão sobre o banco, sentiu que lhe doíam os braços. Era a primeira sensação de dor. Reagia-lhe ao impacto com imensa satisfação, porque criou a convicção de que poderia, se quisesse, aliviar a tensão provocada pela pressão que exercia, agora de propósito, contra a rigidez do mármore.

Será que, se der uma forte batida, irei ter a resposta da mágoa física? Até agora estive insensível para a realidade material desta região. Agi como se imerso num campo absolutamente energético, vibrátil, sem contextura, como se bailasse na atmosfera, sem peso. Entretanto, as reações mentais estão fortemente excitadas pelo pavor de me deparar em zona de domínio das forças do mal. Olhando ao derredor, mesmo dentro do quarto em que me encerrava, nada encontro que me torne um sofredor. Todas as emoções desagradáveis provêm das frustrações da minha vontade, do meu saber, da minha inteligência. Se a verdade não se encaixa nos princípios que reduzi a simples visão cósmica fundamentada nos cânones católicos, também não posso acusar a Divindade de me haver enganado, tanto que estou em paz neste ambiente tranqüilo. Não se trata do Paraíso, evidentemente, porque me sinto infeliz e minhas lembranças são a minha perdição. Contudo, este ambiente reproduz a ilha de felicidade em que Adão foi colocado, logo que Deus o criou. Desejou ele alguém com quem partilhar as benesses superiores e o Pai lhe deu Eva. Está visto que tudo foi extraordinariamente simplificado para o entendimento dos humanos. Agora que estou neste verdadeiro paraíso, a minha vontade é a de prosseguir numa vida de contato com os outros seres, porque sinto falta da convivência, ainda que precária, de pobre e inculta enfermeira, como a madre que me serviu nos últimos anos.

Dava vazão aos pensamentos com alguma incoerência, mas não punha preocupação nem sentido no fato. Queria fazer o tempo passar, para que alguma idéia luminosa lhe ocorresse, como quando saiu do leito da primeira e da segunda vez. Algo deveria suceder para levá-lo um pouco mais adiante. Reparou que o jardim merecera os cuidados de mãos habilidosas e que o muro e, mais, o prédio revelavam apuro de construção. A curiosidade de comprovar a textura dos materiais levou-o a aproximar-se do paredão, quase totalmente coberto de finas heras, trepadeiras que se agarravam nos interstícios dos grandes blocos e que derramavam pelo espaço as cores vivas de suas flores.

Se eu estivesse mais contente com a situação moral, se não me visse tão pequenino como nunca na vida, teria motivo para me rejubilar através do exame dos objetos. Se tivesse sido um cientista, se tivesse dedicado mais tempo à biologia ou à geologia, iria saber classificar as espécies das plantas e reconhecer as rochas das construções. Volveu ao banco, percebendo que estava sentindo como que uma carga nas costas. Afagou o pescoço e sentiu-o dolorido. Se estou começando a receber o impacto do peso sobre a musculatura, por certo será porque existe algo parecido com a força gravitacional. Dos diversos sentidos, só me falta experimentar o sabor dos frutos. Mas não estou com fome nem com sede.

Foi então que reparou que existia, no fundo do jardim, pequena fonte de águas cristalinas, que lhe sugeriu a idéia de experimentar o poder gustativo. Caminhou sem dificuldade até lá, abaixou-se, pôs as mãos em concha, apanhou um pouco de água e levou à boca. Só então despertou para o fato de ter sentido o gosto salgado das lágrimas que enxugara no dia anterior. Aquela água estava puríssima, sem sabor e sem nenhum odor, com a textura dos líquidos a que se habituara.

Vou colher uma fruta, embora não saiba de que espécie se trata...

Lembrou-se da proibição do Jardim do Éden.

Terá Deus interditado os seres desta casa de colherem o fruto do trabalho dele? Será que este é o verdadeiro pomo do conhecimento colhido por Adão? Se fosse esta a Árvore da Vida, não deveria estar aqui um anjo a guardá-la contra os desejos malévolos dos desobedientes? E não estaria ele empunhando um gládio rutilante, cuja incandescência colocaria em fuga os atrevidos?
Balançou a cabeça desconsolado. Reconhecia que a sua fé ia muitíssimo além da compreensão comezinha dos fatos, em sua realidade histórica.

Se este local me oferece tanta tranqüilidade e se não me foi nada imposto, nem ao menos no sentido da coerção física, se estou apenas enegrecendo a alma pelos meios insólitos da restauração mental dos acontecimentos desagradáveis da vida, aliás, pelas conseqüências e comprometimentos em relação aos conceitos religiosos que fui rompendo e cujo restabelecimento forçava por meio dos recursos da confissão, do perdão e da comunhão, repetindo-os maliciosamente, porque não me arrependia verdadeiramente, tanto que pensava em repeti-los tão prazenteiros eram, afirmando intimamente que todos os homens não revestidos de poder eclesiástico tinham plena autonomia para usufruir deles, então devo acreditar que posso provar de cada fruto deste pomar magnífico.

Só então atinou com o fato de haver penetrado jardim adentro, estando agora envolvido pela densa formação de poderosa e variada vegetação. Elevou os olhos para o alto e percebeu que o céu ganhava tonalidade azulada, como se estivesse amanhecendo o dia. A luz crepuscular punha rebrilhos nas folhas e carregava o verde mais claro de tons que definiam o rendilhado da contextura celular. Ergueu o braço e pegou num fruto que lhe pareceu uma maçã, embora a árvore fosse muito copada, bem diferente das macieiras que tão bem conhecera nas férias européias. Mas não conseguiu destacar a fruta, por mais que imprimisse vigor no gesto.

Não vou desistir facilmente. Vou colher o que me parece de meu direito.

Puxou com tremendo repelão mas o pomo resistiu. Insistiu diversas vezes. Procurou algo com que pudesse bater no galho ou um objeto cortante, mas nada encontrou. Cismou de morder a fruta ali mesmo no galho, mas não logrou sequer marcar a macia capa protetora da casca aveludada.

Que estará acontecendo comigo? Que violência é esta? Que direitos tenho eu aqui? Se, ao menos, estivesse faminto, mas encontro-me como que saciado, apesar de não me lembrar de haver comido nada desde que atravessei o Estige trazido por Caronte.

A recordação mitológica levou Deodoro a desviar-se da preocupação do momento. Várias poesias árcades lhe perpassaram rapidamente pela memória, idílicas, bucólicas, em que a paz da paisagem se integrava à alma das personagens, numa felicidade plena, na comunhão do ser humano com a natureza dominada e convertida em paraíso. Imergiu nos tempos de abastada fartura, de sólida saúde, de total segurança, quando em vilegiatura pelas casas dos bispos e cardeais, imensas mansões que recebiam o pomposo nome de mosteiros, de conventos, de eremitérios, de igrejas...

A contradição da bem-aventurança dos poderosos senhores mandatários das ordens religiosas se opôs ferozmente aos campos de batalha que se retrataram nos filmes naturais da Segunda Grande Guerra e Deodoro sentiu-se, de repente, dentro da escuridão úmida de pestilenta masmorra, em que gritos de desespero e de revolta se misturavam atormentados. Apavorado com a reviravolta na condição de egresso do mundo físico, pôs-se a correr, procurando voltar pelo caminho que o levara para o inferno.

Depois de muito tropeçar nas pedras e de se chocar contra as paredes, suado e sujo, parou para tomar fôlego, porque foi formando-se em sua mente a idéia de que tudo não passava de mera representação mental, tanto as delícias quanto os horrores. Esse pensamento se fundamentava num aspecto da realidade circunstante: nem num lugar nem no outro se encontrou com alma, espírito, duende, gnomo, anjo, seja qualquer espécie de indivíduo dotado de vontade e poder para obstar a sua passagem ou de responder-lhe às questões. Havia indícios da existência de quem ajardinara, de quem construíra, de quem gritava e de quem imprecava contra a Divindade e contra supostos inimigos, porque as pessoas que colocara nas alamedas ou nas cenas absurdas da mortandade entre as criaturas pareciam refletir-se na paisagem. Mas a velocidade com que os quadros lhe perpassavam pelo cérebro propiciava certa segurança de que nada do que acontecia tinha o dom da realidade, mas se constituía numa formação de sonho ou de pesadelo. Concentrou-se para levar adiante a intenção de se afastar de região tão macabra, crendo que teria condições de rejeitar as sensações psíquicas que lhe oprimiam a capacidade de raciocinar, operando as idéias sistematicamente, como quando criava os roteiros dos sermões ou estabelecia os pontos que trataria com os alunos.

Dessa vez, contudo, não alcançou êxito, por mais que se esforçasse. Ao contrário, a perturbação angustiava-o já, pondo-lhe no coração o medo de que era aquela a paragem em que estacionaria por algum tempo. Quase desesperado, sentiu iluminar-lhe o cérebro uma idéia salvadora:

Imbecil que sou. Pus toda a minha fé em meu poder pessoal. Devo é obter a misericórdia de Deus, confiando-lhe a minha alma e a minha...

Não sabia como concluir o pensamento, quando ouviu alguém soprar-lhe ao ouvido:

— Diga: a minha condição existencial, porque só o Pai tem o condão de saciar a minha sede e a minha fome de justiça e de verdade. Desejou reconhecer a pessoa que lhe dera a preciosa informação mas permaneceu cego dentro da mais absoluta escuridão. Se, antes, os corredores lhe sugeriam aberturas distantes por onde se infiltrava tênue luminosidade, agora era como se estivesse no fundo de um poço.

Devo ser um tolo, porque, sendo padre, estou esquecendo-me do recurso da prece.

Tentou rememorar as orações, que lhe saltavam da memória com a facilidade dos grãos de milho aquecidos. A imagem se fixou em seu campo de visão mental e chegou a ver as pipocas branquinhas saltando para fora da panela, com seu odor característico, enchendo-lhe a boca de saliva. Eram as suas preces que ele desrespeitava, pisoteando cada milho estourado, desprezando o efeito para os seus sentidos aguçados, agora sim, pelo prazer que prenunciava a degustação do acepipe. Quem estivesse a contemplar as reações de Deodoro saberia definir-lhe o desequilíbrio e a loucura, bastando comparar os diferentes sentimentos, emoções e pensamentos, desde que se viu coberto pela mortalha.

Deodoro permaneceria nesse estágio durante algum tempo, vagando sem destino até encontrar uma abertura para o descampado. Falava sozinho, como se respondesse à misteriosa voz que ouvira tão nítida.

Não vou dizer que tenho vontade de saber a verdade nem posso considerar-me injustiçado. Se disse muitas mentiras, fui ingênuo e puro, porque me fizeram crer em que assim deveria ter sido. Se cometi injustiças, lamento muito.

Ouviu vozes por perto mas nem sequer se apresentaram vultos. Apanhou pedras pelo chão e arremessou-as no vazio.

Ao menos, se atingir um qualquer, terei alguém para quem pedir desculpas, para que me perdoe.

E ia cada vez mais longe, pensando que não tinha nenhum ponto de referência.

Aquela voz me pareceu muito familiar. Não era do Eufrásio, certamente. Já sei: é a voz que costumava ouvir às vezes, meio sonolento, como a me chamar a atenção. Quase sempre era um simples Deodoro!, como se uma voz antiga, lá da minha infância, me lembrasse de que deveria prestar atenção a algum tópico importante.

Mas não punha fé nas próprias palavras.

Se, algum dia, escrever a história de minhas desventuras...

Surpreendeu-se com a conjectura.

Que importância haverá para alguém saber o que se passa comigo nesta escuridão mal-assombrada? Que dramas carrego comigo que possam vir a ser o farol a iluminar a estrada de alguém iludido? Se os mortos viessem, ou melhor, fossem alertar os vivos, seria como na história do rico e do mendigo.

Esforçou-se por recordar a passagem bíblica. Como por encanto, como se estivesse com o Evangelho de São Lucas na mão, seguiu a leitura que perpassou claramente pela memória, inclusive os elementos de localização: XVI: 19-31. “Era uma vez um homem rico que se vestia de púrpura e de linho, e que se tratava magnificamente todos os dias. — Era uma vez também um pobre, chamado Lázaro, estendido à sua porta, todo coberto de úlceras, — que se satisfaria com as migalhas que caíam da mesa do rico, mas ninguém as oferecia a ele, e os cães vinham lamber-lhe as chagas. — Ora, ocorreu que esse pobre morreu, e foi arrebatado pelos anjos ao seio de Abraão. O rico morreu também, e teve o inferno por sepulcro. — Quando ele se achava nos tormentos, levantou os olhos para cima, e viu de longe Abraão, e Lázaro em seu seio.; — e gritando, ele disse estas palavras: Pai Abraão, tenha piedade de mim e envie-me Lázaro, a fim de que ele molhe a ponta de seu dedo na água, para me refrescar a língua, porque estou sofrendo extraordinários tormentos nesta chama. — Mas Abraão lhe respondeu: Meu filho, lembre-se de que você recebeu seus bens em sua vida e de que Lázaro teve apenas males.; eis porque ele agora se consola e você se atormenta. — Ademais, existe para sempre um grande abismo entre nós e você.; de sorte que os que desejam passar daqui até você não conseguem, como não se tem como passar para cá do lugar onde você está. — O rico lhe disse: Eu lhe suplico, então, Pai Abraão, que o envie à casa de meu pai, — onde eu tenho cinco irmãos, a fim de que ele lhes ateste estas coisas , no receio de que eles mesmos venham também a este lugar de tormentos. — Abraão lhe retorquiu: Eles têm Moisés e os profetas.; que eles os escutem. — Não, Pai Abraão, disse ele.; mas se algum dos mortos for encontrá-los, eles se penitenciarão. — Abraão lhe respondeu: Se eles não escutam nem Moisés nem os profetas, eles não se convencerão tampouco, mesmo quando algum dos mortos ressuscitar.”

Pareceu claríssimo ao sacerdote que havia alguém a ampará-lo, mesmo que sem aparecer. Antes de meditar sobre o texto revivido, orou por Jesus, pela ajuda evangélica que recebia, e agradeceu ao Pai a existência daquele poder revitalizador, tanto que algo tão importante estava acontecendo em sua mente.
Devo transferir para o coração este discernimento, para sentir mais palpavelmente que tenho algum mérito, de empréstimo, é verdade, mas muito útil para me tranqüilizar.

Pensou a respeito do tema que o conduzira à parábola do mau rico e viu claramente que a sua história, por melhor contada que fosse, não iria surtir nenhum efeito junto, justamente, às almas das pessoas que, como a dele, estivessem necessitadas dos esclarecimentos que se punha apto a ministrar. E repetia quase inconscientemente:

“Se eles não escutam nem Moisés nem os profetas, eles não se convencerão tampouco, mesmo quando algum dos mortos ressuscitar.” “Se eles não escutam nem Moisés nem os profetas, eles não se convencerão tampouco, mesmo quando algum dos mortos ressuscitar.” “Se eles não escutam nem Moisés nem os profetas, eles não se convencerão tampouco, mesmo quando algum dos mortos ressuscitar...”

Enquanto se alienava do consciente, formava-se nos recônditos de seu pensamento a suspeita de que pudessem estar com a razão aqueles que afirmavam receber notícias dos familiares e de pessoas falecidas, conforme tinha conhecimento, desde que criticara o livro de Allan Kardec.

Realmente, acho que se me deparasse com Moisés ou com qualquer profeta, na qualidade de membro integrante da minha religião, não admitiria que a sua personalidade fosse a mesma que tomou tantas páginas sagradas das Escrituras. Jesus, como sempre, tinha razão. Então, que significado poderei inscrever na minha narrativa que possa mover os descrentes do espiritualismo...
Refletiu a respeito do termo espiritualismo. Sabia que deveria dizer espiritismo, conforme o neologismo de Kardec, porque se lembrava das explicações contidas em “O Livro dos Espíritos”, mas ainda sentia calafrios ao pensar na simples possibilidade de aceitar algo que contrariasse efetivamente os dogmas a que jurara fidelidade.

Devo estar ficando louco, porque não consigo pensar com clareza sobre os assuntos. Tendo em vista o fato de estar em estado de erraticidade, deveria submeter-me às condições ambientais e suspender qualquer ligação com o passado, principalmente no sentido das parlengas que mantive de púlpito e de cátedra, para que não se cristalizasse nas, mentes dos paroquianos e dos alunos, a tentação do demo, para desviá-los do reto proceder relativamente aos mortos. Quantas vezes, sugeri que se encomendassem missas em ação de graças e em intenção das almas que suspeitávamos umas no seio do Senhor, outras nas regiões purgatórias. A crer em que estivesse errado, conforme tenho comprovado, deveria rogar ao Pai que me atendesse aos reclamos de assistência...

Lembrou-se de Eufrásio e de suas palavras de advertência.

Evidentemente, o culpado de ter perdido a oportunidade de permanecer naquele quarto tranqüilo sou eu mesmo, que resolvi tornar claro que não admitia as razões de um morto, exatamente como na fala de Jesus reproduzida por São Lucas. E eu nem estava mais entre os vivos!...

Novamente imergiu em cismas, permitindo que muitas idéias cruzassem sem configurar associações lógicas, para exprimir-se em pensamento que pudesse apreciar criticamente. Deixava-se levar pelos impulsos de toda sorte, misturando as verdades incontestadas e as sugestões refutadas, os acontecimentos vivenciados e as narrativas fabulosas, a peste da literatura e a guerra do cinema, a fome de que ouvira falar e a morte dos suicidas cujas famílias corria a consolar, as lágrimas das mães e o sofrimento de Maria Se.

Maria, a doce mãe de Deus (ou de Jesus, como quer Eufrásio) não pode vir buscar-me, por que a minha mãe se ausenta? Ou mesmo o meu pai? Terei destratado tanto os dois, quando pus sem mistérios as suas vidas ocultas? Terei rezado sem piedade, apenas por desforço sacerdotal, para o cumprimento de minhas obrigações eclesiásticas? Será que meus sentimentos em relação a eles se cristalizaram pela falência do primeiro instante, na decepção profunda que me causaram?
Aquela mesma voz soou, categórica:

— Meu caro, os seus pais estão carregando, de novo, corpos terrenos. Esqueça-se deles, por enquanto.

Desta vez, sabia que não tinha sonhado. Mas não insistiu em que o dono da manifestação aparecesse. Simplesmente, agradeceu-lhe a atenção: — Muito obrigado, amigo, seja você quem for. Diga-me, então, a quem devo invocar para que me ajude nesta circunstância? Mas a pergunta não obteve resposta.

Então Deodoro desabafou:

Como é que estou tentando o contato com gente mais importante, sem revelar tudo o que verdadeiramente penso e sinto? Tenho hesitado em referir-me à impressão de que tenho sido relegado...

Mas não prosseguiu. Não queria pôr à mostra todas as sensações íntimas de rebeldia, de revolta.
Se não tivesse vivido noventa e tantos anos, se tivesse morrido aos sessenta e poucos, com certeza teria mais definida a vontade de acoimar as pessoas, conforme o ajuizamento que delas fazia. Agora, acostumado com as restrições dos anciãos, ponho a responsabilidade nos outros, inclusive quanto às advertências, seguro de que cada qual carrega o fardo que ajudou a montar. Se estou sozinho, desejando a companhia de quem esteja livre para me atender, deveria imaginar que essas pessoas não estão carregadas de pesos conscienciais, caso contrário, que recursos possuiriam para me aliviarem a minha carga? E se quem aparecer vier tão carente de auxílio quanto eu, de que me adiantará a sua presença? Se for para chorarmos juntos, prefiro, então, encontrar quem esteja em pior situação, porque, assim, terei alguma utilidade.

A reflexão levou Deodoro a meditar a respeito do braço de apoio que viu retratado no espelho. Instintivamente, levou o braço à frente, como para sustentar a debilidade triste de algum sofredor maior que ele. Ninguém, todavia, se aproveitou do oferecimento. Ao contrário, ouviu distintamente que xingavam ao longe uma personagem cujo nome pareceu repercutir nos refolhos de sua memória.

Antenor. Onde será que ouvi esse nome? E, no entanto, não me parece absolutamente estranho.

Fez um esforço mental mas lhe foi impossível configurar alguém de suas relações. O braço estendido começou a pesar-lhe e desviou-lhe o interesse para as atividades de assistência aos necessitados que exercera durante quase a vida inteira.

— Não haverá um único paroquiano que se condoa do antigo preceptor espiritual? — insistia ainda, não percebendo que chamava por alguém mais evoluído.

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