Usina de Letras
Usina de Letras
18 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62285 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10388)

Erótico (13574)

Frases (50677)

Humor (20040)

Infantil (5458)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3310)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6209)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Erotico-->AS AVENTURAS DO PADRE DEODORO EM CAMPOS ETÉREOS — VI -- 22/07/2003 - 08:58 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
2. INSTANTES DE SOLIDÃO

Deodoro viu-se sozinho. Eufrásio como que desapareceu, sem palavra de despedida, sem boas-noites, sem um estímulo adicional sobre a florescente recuperação que demonstrara.

Terei sido... (Hesitava quanto ao adjetivo com que qualificaria a sua postura perante o amigo e preceptor.) Ao menos, fui sincero...

Não punha crédito nas palavras. Pareciam vazias de significado. Era como se os termos servissem apenas para vestir os sentimentos, dando-lhe uma forma definida, quando, na verdade, a complexidade das emoções revelava que se cruzavam os intentos de caracterizar os fatos pelo prisma de sua voluntariedade.

Estou adquirindo um senso crítico levado às últimas conseqüências. A perdurar esta manifestação de desagrado íntimo, como se minha alma se acusasse de maldades e malefícios que, absolutamente...

Novamente tropeçava na tradução dos conceitos e seus pensamentos se confundiam, de modo que acabou embaraçado em lembranças imprecisas, coisas da infância misturadas com a pregação sacerdotal, enquanto outros elementos mentais se infiltravam, como produzidos em desesperos de mau sonho, em pesadelo único, forte, a testemunhar toda a fragilidade de sua covardia.

O sentimento que resultava do conjunto tomou-lhe algum tempo:

Serei ou terei sido covarde? Por que essa impressão rústica, objetiva, direta, como se fosse uma martelada no dedo, tão concreta me parece? No entanto, não tenho medo de enfrentar o julgamento do Pai, tanto que menosprezei a idéia de estagiar no Purgatório, querendo desde logo adentrar o Paraíso.

Ia por aí nessa expectativa lúdica, mas a consciência não lhe permitia que divagasse sozinho, conduzindo a imaginação para onde desejasse. Havia de considerar o sonho de um momento antes, mesmo porque não se reconhecera adormecido. Apenas havia ficado confuso, tanto que não se fixava mais em nenhuma idéia claramente definida.

Tenho de me adaptar a esta nova situação. Eufrásio, dentro deste ambiente, deve ser poderoso, tanto que só ele é que teve acesso à minha personalidade. Se está mal intencionado, pelo menos não demonstrou. O demônio não destruiria o próprio império. Tenho de me determinar a recordar-me constantemente dos textos sagrados, para que não fuja dos objetivos da salvação, porque Jesus se sacrificou pela humanidade, tanto que lhe segui na esteira, esforçando-me por tornar-me um dos seus representantes humanos, para ajudar as almas a aceitarem...

Parou diante da repetição do termo sacrifício.

Como é que eu mesmo estou envolvendo-me na defesa da minha vida, quando nunca antes sequer duvidei de que tivesse traçado o justo caminho, em peregrinação segura para os campos de Deus? Não fui sagrado padre e monsenhor? Não comunguei dos ideais cristãos e não defendi a pureza da instituição religiosa?...

Não conseguiu prosseguir, recordando-se, em flashs de recordação, que algumas estrepolias morais havia patrocinado, já envergando a batina.

Se vou ficar a lamentar os meus pecados, não se justifica o fato de haver confessado todos eles e de ter recebido a competente absolvição, tanto que os atos de contrição e as penitências não foram tão rigorosos. Terei deixado mágoas nos corações? Certamente, mas não dei amparo a todas...

Hesitou em trazer ao consciente os episódios mais negros dos relacionamentos humanos. Sentia vergonha, porque supunha que poderiam ser evidenciados através do seu corpo espiritual. Se Eufrásio lia tão bem em sua aura, era de temer que...

Novamente interrompeu a seqüência das conclusões. Assaltou-lhe a perspectiva de que Deus teria muito maior (que digo eu?!) total possibilidade de saber quem fui (quem sou) e quais os resultados de minha passagem pela Terra.

Já não separava as reflexões pragmáticas e frias do calor das recordações pejadas de emoções. Pensou em orar mas logo obtemperou:

De que me valem as palavras, se todas vêm com carga de significação muito mais extensa do que desejaria empregar? Se fosse um pintor, não saberia como delinear o horizonte, porque as cores se misturam e há fogo no céu e nuvens no chão. De qualquer modo, devo reconhecer que estou confuso, sem domínio da vontade. Sendo assim, posso, ao menos, solicitar ao Pai que faça prevalecer a vontade dele sobre a minha e sobre a de Eufrásio, para que me reequilibre, em função do amor que tendes, Senhor, por todas as vossas criaturas.

Fechou os olhos, porque escureceu, e somente os reabriu muito tempo depois, quando entrava forte clarão solar pelas frestas da janela.

Terei dormido?

Aguardou que lhe respondessem, mas não obteve nenhum aviso externo. Examinou a mente e percebeu que a crise da noite havia deixado seqüelas quase imperceptíveis, como se a luz espantasse as sombras da consciência. Objetivamente, passou a examinar o recinto, detendo-se no dossel sobre o leito.

Não compreendo a necessidade desse cortinado. Será que há mosquitos? Ou estará enfeitando o ambiente como forma de me trazer tranqüilidade e segurança, apontando para o fato de haver quem esteja velando por mim? Deve ser isso mesmo, porque o que se guardaria nessa cômoda? Roupas de cama? E para que, se tudo o que vejo parece elaborado por comparação com o que estou desejando?

Parou para refletir sobre o que havia disposto em pensamento. Pareceu-lhe incoerente e sem sentido. Sobre o criado-mudo, o breviário e os óculos.

Será um mudo convite para a leitura? Mas se não estou mais sobre o orbe, se não tenho aqui o status de sacerdote, porque minha consagração não envolvia a vida de além-túmulo, por que iria volver o pensamento aos ensinos de Jesus, o qual, conforme sempre soube, pregou aos homens e não aos espíritos?

De novo colocou em dúvida as idéias que lhe brotavam. Sentiu-se inseguro. Recordou-se do retrato cinético em que se via caminhando apoiado num braço amigo.

Acho que foi uma clara indicação de que não conseguiria andar sozinho por aí. Será que Eufrásio vai demorar para me ajudar a pensar sobre as minhas questões?

Foi imaginar que o amigo pudesse comparecer e já se arrependia do atrevimento, porque não lhe parecia justo que ficasse a dever todos os esclarecimentos ao amigo.

Se ele foi capaz de chegar a entender muita coisa que tem vivido neste ambiente, eu também poderei fazê-lo. Tenho de caminhar um pouco pelo quarto, senão vai acontecer de me sentir aleijado e dependente. Afinal de contas, tenho o meu discernimento e desde que mamãe...

Foi a primeira recordação afetiva que o comoveu pelo lado das boas lembranças, despertando-lhe ternos sentimentos, os mesmos dos últimos tempos em que passou entrevado no leito do convento. Mas não demorou a refazer a imagem da querida pessoa, porque se deixava envolver pelos acontecimentos antigos relacionados ao profundo desprezo que dedicou àquela mesma figura. Desejou afastar de si o cálice das amarguras e arremessou as pernas para fora da cama. O movimento brusco despertou-o para as sensações do presente.

Pela facilidade com que me movimentei, é bem possível que minhas pernas me sustentem o corpo. Se tiver juízo, vou me lembrar dos tempos em que caminhava lépido pela praia ou pelo passeio público, para impulsionar a minha personalidade na direção da pujança física e não da degringolada da velhice doentia. Se bem entendi o que disse Eufrásio, aqui o pensamento se plasma e se transforma em ação. Sendo assim, vou considerar-me apto a restaurar o uso das pernas.

Pensava e ao mesmo tempo ia tocando o solo com os pés. Primeiro, o direito.; depois, o esquerdo, apoiado no colchão com ambas as mãos, como um bebê que está aprendendo a descer um degrau. Mas foi adquirindo confiança, até que se surpreendeu de pé, sem muleta.

Será que terei coragem para ir até a janela? Ou será melhor dar dois passos até a cômoda?

Decidiu-se pela cômoda. A deslocação dos membros inferiores foi penosa. Não sentiu dor alguma, no entanto, era como se as pernas estivessem adormecidas. A deslocação pareceu-lhe uma aventura. Mas, de repente, se viu ao lado do móvel, sem a impressão de que caminhara.

Terei mudado os passos ou vim até aqui utilizando-me apenas do poder da mente?

A última hipótese parecia corroborada pelas explicações do amigo a respeito de como se dava a comunicação entre eles. Como não sofrera nada e como não se viu ameaçado de cair, imaginou-se indo até a janela. Mas não saiu do lugar.

Tenho é que dar um impulso aparentemente físico, intentando deslocar-me efetivamente.

Antes de unir a ação ao pensamento, perpassou-lhe pela mente que estava raciocinando em termos da natureza incorpórea do etéreo, para o que empregou o vocabulário preciso. Meditou sobre a facilidade com que aprendera esses primeiros embalos espirituais e chegou a criticar o fato de aplicar várias palavras com o mesmo significado.

Não seria bem melhor que a cada ação, objeto ou pensamento correspondesse uma única palavra ou expressão?

Quando duplicou palavra através de expressão, sorriu complacente consigo mesmo:

Tenho ainda muito que aprender, mas, se continuar extraindo de meu próprio arquivo intelectual...

Nesse momento, passou-lhe pela cabeça que poderia estar sendo imantado a distância pelo companheiro, conforme a experiência telepática que tinham tido.

Vou deixar essa prática... esse diálogo... essa conversação, para quando nos encontrarmos de novo. Se ele não apareceu, com certeza irá justificar a ausência com o mais rigoroso modelo lógico, como tudo o mais que procurou passar-me. Se tudo aqui for tão filosófico como a amostragem que recebi, tão cedo não vou me encontrar com o Senhor.

Balançou a cabeça desaprovando de novo a iniciativa da reflexão, dando demonstrações íntimas de que criava a suspeita de estar sendo injusto. Buscou caracterizar a natureza da injustiça mas, nesse ponto, se viu limitado na desenvoltura com que vinha alcançando entender o que se passava consigo mesmo.

Acho que está na hora de ir até a janela.

Disse e intentou dar um passo à frente. De pronto se encontrou exatamente no local em que desejara estar. Aí, foi uma festa. Quis voltar para junto da cama. E logo ali estava. Foi para perto da porta. Voltou para junto do móvel. Aproximou-se do criado-mudo. Apanhou o livro e os óculos. Abriu numa página qualquer mas não enxergou as letras que se embaralhavam. Levou aos olhos as lentes e observou que as frases ganhavam contextura em linhas, dentro das páginas.

Tenho a certeza de que, se me esforçar, vou ler muito cedo sem precisar do auxílio técnico.

Depositou o livro e os óculos de volta e se dirigiu até a janela. Queria observar o exterior. Mas não conseguiu decifrar o modo de abrir as folhas. Tentou enxergar através das frestas, mas a intensidade da luz impediu que visse qualquer coisa. Voltou meio desconsolado ao leito.

Será que deverei solicitar ajuda para abrir uma simples janela? Ou estou preso de propósito, para curtir as minhas memórias, sofrendo os horrores de uma consciência pejada de pecados?

Ocorreu-lhe, contudo, que não deveria abater-se:

Se estou preso, evidentemente é porque provoco algum tipo de perigo aos seres que se responsabilizaram pela minha estadia neste local. Eufrásio disse que estou internado num hospital. Ora, devo, portanto, estar doente. Só assim se compreende que me veja isolado da sociedade dos espíritos, a crer que seja essa a denominação mais corrente nestas paragens para os que demandam o céu. Tenho, então, de esforçar-me para entender como é que vou conseguir sair deste quarto, uma vez que não é possível imaginar que vá passar toda a eternidade nestas condições. Isto, sim, seria infernal.

Parou para levantar uma suspeita que lhe roçou o pensamento:

Por certo, não sofrendo nenhuma pressão externa, quer física, quer moral, os meus algozes são a minha própria consciência e o meu organismo debilitado. Se não me ministrarem remédios compatíveis com a necessidade orgânica, se é que a medicina esteja avançada nesta dimensão (admirava-se de empregar vocabulário assimilado há tão pouco tempo), talvez o tempo transcorra em sentido inverso daquele corpóreo, onde as pessoas envelhecem. Sendo assim, posso esperar rejuvenescer, o que me foi prometido por Eufrásio, em clara alusão que vou moldar o meu corpo espiritual, o meu perispírito, conforme a denominação que me ensinou. Por outro lado, no aspecto moral, as coisas vão desandar, se não me oferecerem nenhuma companhia com quem possa exercitar o meu poder de comunicação. Fazendo clara a alusão que captei do fundo da consciência (ou seria através de manifestação do inconsciente?)...

Buscou Deodoro caracterizar-se psiquicamente, segundo as raras noções hauridas nas leituras das ciências psicológicas. Mas viu-se desprovido de instrumental lingüístico apropriado para as definições. Sempre esteve às voltas com os preceitos religiosos, de modo que a palavra alma era a que mais efetivamente correspondia aos seu conceito de centelha imaterial e divina encapsulada em sua mente ou em seu coração, já que não conseguia fixar a sede em que residiria o seu espírito, justamente a sua própria pessoa, como três eram as pessoas que concebia para a Santíssima Trindade.

A acreditar em Eufrásio, existe uma dualidade imbricada em mim, porque tenho um corpo perispiritual e um espírito. Encarnado, ou seja, vivo, haveria uma terceira camada carnal, do mesmo modo que as frutas possuem várias seções: casca, polpa e sementes, por exemplo. Mas esse exemplo é muito rudimentar. Quem sabe os vegetais também tenham um corpo espiritual e um espírito?

Sentiu fortemente a ironia das reflexões. Não gostou de se ver alvo do próprio ridículo, uma vez que não iria alcançar ninguém com tal observação.

Não faz mal, concluiu, guardo para um momento oportuno.

Percebeu que a atitude revolvia um problema antigo, desde os tempos em que se iniciou nos estudos, quando preparava as respostas às questões que lhe eram propostas pelos concorrentes, nas aulas em que se discutiam as opiniões, para se firmarem as regras, normas e leis. Viu-se astuto e hipócrita.

Acho que estou sendo muito rigoroso com aspectos menores de minha personalidade. Se fizesse um armazenamento de idéias para ofender os que contra mim sempre litigaram em todos os campos dos relacionamentos humanos, teria desenvolvido muita maldade íntima, a ponto de me crucificar a mim mesmo, no exame perspicaz de minha natureza como ser criado por Deus mas educado nos termos de uma sociedade opressora, como...

Ia cair na esparrela de considerar a Igreja Católica como madrasta e não como santa mãe. Estranhou muito que tal crítica lhe brotasse tão espontânea e nítida. Contristou-se por não ter podido controlar os pensamentos e orou em voz alta um Credo, enfatizando o creio na Santa Madre Igreja e o creio na comunhão dos santos, para deixar claro ao padroeiro que estava sob a responsabilidade dele, fazendo, portanto, jus a ser agraciado pelos influxos da divina paz, porque se confessava pecador.

Iria resvalar para uma depressão mais profunda, se não desse com os olhos no breviário.

Vou ler algumas páginas, decidiu-se.

Pegou o pequeno volume, abriu-o ao acaso mas não logrou ler nada. Apanhou os óculos, equilibrou-os sobre o nariz e buscou decifrar algum trecho da doutrina de Jesus. Mal e mal, conseguiu ler:

“Não pensem que eu vim destruir a lei ou os profetas.; eu não vim em absoluto para destruí-los, mas para cumpri-los.; — pois eu lhes afirmo em verdade que o céu e a terra não passarão jamais, enquanto tudo o que se acha na lei não estiver cumprido integralmente, até mesmo um só jota e um só ponto.” (São Mateus, V: 17 e 18.)

Vibrou com a afirmação de que Jesus respeitava a lei de Moisés.

Sendo assim, tudo o que possa estar ocorrendo no cérebro de Eufrásio cai por terra, segundo o que o Cristo trouxe aos humanos.

Quis refazer a frase, porque Jesus não teria trazido mas levado, já que se situava noutro plano.

Não importa: o livro que tenho em mãos pertence a esta realidade e me foi trazido pelas pessoas desta dimensão. Não está escrito que o céu também não passará? E tudo vai cumprir-se integralmente, conforme foi predito pelos profetas. Que profetas?

Aí embatucou. Os profetas, segundo se recordava muito bem, asseveravam que era Deus quem estava fornecendo-lhes as previsões. Quando Jesus falava em dar cumprimento às palavras dos profetas estava, na realidade, respeitando a vontade do Senhor, do seu Pai, dele mesmo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Nesse ponto da digressão, veio-lhe nítida na memória a figura de seu pai terreno, aquele senhor ponderado e sólido, cuja riqueza se desfez na caridade que praticou, inclusive fornecendo víveres e remédios aos paroquianos pobres de sua diocese. Concentrou-se na fase feliz das recordações e se pôs a rememorar a infância, segundo os principais pontos que se lhe fixaram durante a recente visão de conjunto de sua vida.

Meu pai era uma figura excêntrica, no mínimo. Dava preferência aos meus irmãos, até que me decidi a ingressar no seminário, para ser padre. Aí, voltou-se para mim com laivos de cachorrinho prestimoso, como se me visse apaniguado pelas virtudes mais sagradas. Enxergava através de mim o próprio Jesus e me santificou. Tudo fez para me ver contente até o dia em que o surpreendi... Por que não contei tudo logo pra mamãe? O malandro me chamou de lado e me disse que confessara ao padre e que fora perdoado por Deus. E eu acreditei...

Diante da fraqueza na convicção, Deodoro se pôs muito aflito. Quis ler outro trecho, mas não foi capaz. A vista estava embaciada da mesma forma que nos derradeiros tempos do cativeiro carnal. Deitou-se com esforço, percebendo que os membros inferiores se recolhiam. Quis esfregar os olhos, mas as mãos não obedeceram, porque não teve nenhuma sensação tátil, quer no rosto, quer na ponta dos dedos. Antes de desmaiar, teve a impressão de que sua figura humana havia desaparecido.

Muito tempo depois, segundo pôde perceber pela escuridão do quarto, acordou. Havia tido uma conversa consigo mesmo, daquelas que deixavam marcas profundas na personalidade e havia deliberado que sairia daquele lugar de qualquer maneira.

Verdadeiramente, o fato de me largarem sem assistência é de menosprezo pela pessoa que sou ou que fui, na ajuda aos desesperados, ao ouvir as confissões dos pecadores, ao levar o conforto da extrema-unção aos moribundos, ao estimular as virtudes e ao deblaterar os crimes e os criminosos. Nem na cadeia os presos ficam relegados a si mesmos, que o isolamento só se destina aos jurados de morte pelos detentos e, ainda assim, são visitados por parentes, amigos e sacerdotes de todos os credos, para se evitar que os pensamentos torpes os levem à loucura. Têm esperança, o que me está sendo negado neste instante de precisão. Por que Eufrásio não vem me ajudar neste transe? Ou o meu anjo da guarda? Repeti todas as minhas orações tantas vezes e de nada adiantaram para a comoção dos seres bons, dos espíritos iluminados, dos protetores espirituais, dos benfeitores da alma...

Nessa conclamação geral das forças do além iria ficar ainda por um bom tempo, até que, à vista da inutilidade dos rogos, passou a imaginar quanta ofensa seria capaz de atrair alguém para contestá-lo. Mas as palavras não se carregavam de poder destrutivo, não lhe passando sequer pela mente chamar ninguém de injusto, pois logo retemperava a observação com as razões que a consciência lhe passava, fazendo-o sentir que estava em situação precária, inferiorizado perante a existência, inútil e magoado, sem oferecer seu braço para o apoio aos trôpegos, nem seu ombro para as lágrimas dos sofredores, nem suas palavras para o conforto dos alucinados.

Estou dando vazão a sentimentos que absolutamente não tenho o poder de dominar. Se prosseguir nesta atitude, nada de bom vou poder oferecer ao meu protetor Eufrásio, pois, pelo menos, ele se dignou aparecer para conversar comigo. Pena que tenha sido muito rude com ele, pelas idéias que fiz questão de contestar, não tanto pelos argumentos mas muito mais pelo repúdio que devo ter deixado transparecer e que ele comentou claramente, para me fazer inteirado de que era capaz de saber como eu estava reagindo. Foi honestíssimo para comigo e eu o desafiei, mesmo assim, sem perceber que a minha ignorância era completa segundo a ciência desta realidade, sem notar que tudo o que eu sabia estava inscrito nos roteiros dos conhecimentos que arquivei durante a peregrinação terrena. Se você estiver ouvindo-me, querido amigo, perdoe-me e volte para me ajudar.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui