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Contos-->Revisitando o Senhor das Luzes -- 26/12/2003 - 03:50 (Paulo Milhomens) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Revisitando o Sr. das Luzes
( Uma alegoria científica à etnia dos Ychuá, desaparecidos da costa nordestina na segunda metade do século XVII. )


Na infâmia ignorância do Marquês de Pombal: “Mais de mil e duzentos casas, todas contadas, destruídas e queimadas.

“ Eles possuem barbas, têm a cara pálida como algodão. Alguns possuem o cabelo preto, outros, amarelado. Falam uma língua rápida ( não, não era o futuro Nheengatu da costa brasileira ) e são enfurecidos por ouro”.

Montezuma ofereceu sua vida, mas eles queriam o ouro.

Arrancaram sua cabeça e fincaram uma cruz com o corpo de nosso senhor Jesus Cristo.

“Trazei a nossos filhos o bom Jesus, aquele que nos ajudou a expulsar árabes e mouros. Trazei sua ira àquele que renega o bom trabalho e perde-se em rituais macabros com carne humana”.

Onde esteve durante tantos séculos o Imperador dos Ychuá, Sago, o curandeiro e inimigo dos deuses da cruz ? Eram pouco mais de trinta nas terras do México. Na Mauritânia, queriam os castelos da África do Norte.

Ninguém entrega suas vidas assim...

Durante um sono do século XXI, estive numa terra desconhecida. Mas estava lá, perene, importante, como nunca deixou de ser. Era a terra prometida.

Não, não era o Eldorado do sertão goiano, outrora roubado dos homens dali. Bartolomeu Bueno cuspiu aguardente no rio e ameaçou destruir todo seu curso. Mas os índios não queriam o ouro.

Entregaram o ouro e receberam a espada nas mãos.

Tudo isso eu vi. Estavam todos lá: Carajás, Tupinambás, Tapuias, Javaés... não havia lusitano algum no meio, estavam nas praias se arrastando como caranguejos.

Sobrevoei a floresta e vi o lugar.

Vi o grande Solimões vindo do Peru, com toda sua exuberância e imponência.


A chegada...

Sago, o índio orientador.
O local: uma selva.
Os habitantes: Índios (aparentemente ).
Havia uma vila: não podíamos chegar lá ( era isolada demais ).
Onde ficamos: numa espécie de alojamento ou museu de visitas. Era algo próximo há isso.
A ponte: havia uma enorme ponte que acabava num grande rio. Parecia velha, e estávamos a mais ou menos uns trinta metros do chão. Em frente a ponte, passava um largo rio (parecido com o Amazonas), e era cercado, ou melhor, ficava no meio de grandes árvores.
A vila: na verdade, a tal “vila” parecia uma enorme favela no meio da mata. Era bem estranho...

Um descampado tinha sido construído provisoriamente para receber os visitantes em Khasy-Ake ( colônia espiritual dos antigos Ychuá ).

Sua área total suprimia um total de 1.200 m2, qualquer tipo de aeronave poderia descer ali. Mas nas esferas espirituais – dependendo do grau evolutivo – máquinas são pouco utilizadas para viagens. A mente parece desprender-se com uma eficiência mais significativa – coisas que os homens na Terra não prestam tanta atenção.

Sago era um homem de 40, mas parecia Ter menos idade. Faleceu em 1642, e de lá para cá, tratou de organizar seu povo no processo desencarnatório. Quem sabe dessa forma sua cultura resistiria ao tempo ? O grande povo Ychuá habitando para sempre uma esfera invisível, longe da esquizofrenia dos Iberos europeus.

Khasy-Ake tornou-se um grande império.

“O que fazes aqui, homem das terras perdidas?”
“Estou buscando um pouco de verdade, nossa história desapareceu”...

Como tenho traços da África e do Golfo Pérsico, achou que eu não era do Brasil.

“Graças a Deus eu não sou branco!”

Sago fez-me entender que minha afro-descendência é motivo de perda. Se os Bantu, os Yoruba e os Gegê ainda estivessem na forma original, não teria uma confusa identificação com o mundo ocidental.

O mito de Hans Staden quinhentista sugere uma aventura patética nas matas virgens, aliás, a Virgem mãe de Cristo é a redentora do desvirginamento da selva – falou da frescura do vento antes de assassinar as Américas.

Sago disse que estrangeiros não costumam ser bem vindos, e alertou-me quanto às investidas negativas com algum habitante da colônia. Concordei, e tão logo começamos a conversar mais amigavelmente.

“Vim em paz, sou sábio admirador de tua sapiência. És um mestre em teu reino”.

“Não precisa utilizar esses vocábulos medíocres aqui. Seja você! Os Ychuá possuem deuses que condenam a mentira. Ser sábio é antes de tudo, praticar o bem como ferramenta primeira de todas as coisas”.

- Você sabe o que aconteceu aqui ?
- Quando ?
- Quando os homens das águas chegaram.
- Não entendo, estive viajando tanto tempo, mas foi tudo tão rápido, estranho...
- Sua mente ainda está ligada ao corpo.

“É necessário não pensar na Terra agora, isso o faria voltar”.

- Como assim ?
- Você está agora entre os antigos Ychuá, expulsos de sua terra natal pelos homens do grande rio...
- Sim, o “grande rio”. Os homens de além-mar, portugueses e espanhóis. Sua tribo foi extinta quase que imediatamente ! Vieram até aqui fundar um sonho: estar longe dos iberos.

Sago olhou-me pensativo por um instante. Caminhávamos já pela saída de um parque arborizado, havia uma grande colina próxima ao grande rio. Não conseguia entender o que estava acontecendo direito. Aquilo tudo era familiar, mas ao mesmo tempo indiferente, é como se eu já houvesse andado por ali. Sago me lembrava alguém do passado, mas não sabia como dizer-lhe isso. Talvez alguma alegoria, sim, no final da História seria apenas isso. Um sonho simbólico, representativo, iconograficamente confuso sob aquelas paisagens. Mas lembrava perfeitamente que ao vir do Amazonas até o Pará, subindo o curso do Solimões, aquelas paragens soavam velhas conhecidas. Eu não entendia, estava ali. Em sonho não se explica, vive. A vida real – se é que um sonho seja irreal – nunca é levada a sério como os sonhos. Sago estava ao meu lado, conversava, seus longos cabelos negros e lisos, seu corpo médio e atarracado, seus descendentes eram quase todos assim... Mas durante cinco séculos de derramamento de sangue, seus genes enfraqueceram. Longe de dependermos do tempo, Sago explicava-me como procederam até levantar o império. Na Terra estavam numa situação limítrofe entre estrutura tribal de parentesco em condições razoáveis na natureza. O contato com os portugueses delineou algumas mudanças, até certo ponto consideradas relevantes para o progresso dos Ychuá. Alguns elementos foram absorvidos, porém, no tocante religioso, a experiência de troca fora desastrosa. Absorver destrutivamente alguma coisa para o “bem” de outro, marcou a ruína dos Ychuá.

Desde então, nas sucessivas mortes dos indígenas, os espíritos perdidos não encontravam o abrigo necessário para a continuidade evolutiva no além. Alguns percorriam sem destino as matas, as rochas, os lagos. Desesperavam-se ao encontrar um europeu, e mesmo estando invisíveis a faixa vibratória daqueles homens ( geralmente baixa ), entender o que estava se passando era doloroso demais. Lembrei-me dos soldados italianos na Segunda Grande Guerra: morriam, mas ainda acreditavam estar em combate. Isso ocorria com freqüência nos campos de batalha, e geralmente achavam estar interagindo com o inimigo, mas seu corpo já estava endurecido no chão. Algumas horas depois se davam conta do sangramento, do projétil que penetrou-lhe a carne. Com Sago não foi assim. Antes de ser assassinado por um bandeirante, seu último pedido para o deus Kerkuirê era vencer a morte, não ser tragado por ela, como acontecia com sua crença nos atos malignos, sendo levados ao estômago dos espíritos da floresta, entidades que devoravam almas desobedientes. Mas Sago também compreendeu que os deuses brancos não agiam dentro dos parâmetros disciplinares de sua cultura. Eram sempre maus, vingativos. Traziam de longe um ódio inexplicável, arrasador. Como vencê-los ? Era difícil pensar naquela conjectura. Suas armas eram voltadas para a subsistência, não guerreavam com outros povos, eram pacíficos, tinham o dom da amizade. A Paca, o Mutum, o Veado, tinha-se uma considerável admiração por estes animais. Tanto que Sago, poucas horas antes de morrer, implorou a Kerkuirê que não deixasse os homens de cara branca tocar em suas peles. Poderiam ser destruídos para sempre...

Alguns foram habitar este reino para sempre. Sago partiu deixando um povo a mercê do medo. Não sabiam o que fazer. Como lutar? Poderia Kerkuirê ajudá-los? Mas este não aparecia mais nos rituais de sagração, de colheita, de fecundação dos ventres. Antes era motivo de orgulho tê-lo entre os Ychuá, mas uma estranha cruz encutira-lhes na mente o abandono de Kerkuirê. Ele se fora para sempre... não precisavam mais dele! No momento mais difícil daquela gente, seu grande deus protetor havia-lhes deixado, para sempre... o que seria dali para frente ? Seria o fim?

O chão da terra tornou-se tão quente, que os homens de cara branca e corpo coberto de panos grossos começaram a queimar as matas. O solo estava morrendo, gritava, mas nada podia ser feito. No lugar das cinzas, apareciam outros homens brancos vestidos em mantos pretos e marrons, não usavam armas como a carabina. Possuiam uma mais poderosa, no formato do que lhe chamaram de “cruz”. Era estranho para os Ychuá, a tal cruz era fincada no chão morto a cada cem metros. Sob fortes palavras desconhecidas ( sempre muito rápidas ), os homens de manto designavam-se enviados do tal Cristo do além-mar. “Viemos salvá-los, ó gente boa de feitio, mas rude no que lhe concerne a salvação !” Logo começaram a condenar-lhes para um estranho “lago de fogo”, que a cruz enviava para seu antro todo o ser bárbaro que se firmasse contra a “salvação”. Assim foi. Mulheres, crianças, velhos, todos foram lançados a fornalha da espada metálica. Sago contou-me que o escalpo e a banha das carnes eram utilizadas como remédio. Disse-me também, que suas genitálias eram cheias de feridas, que sua urina era vermelha como Urucum, e que seus modos de comer e pensar eram assustadores. Tinham os dentes – quando raro completos nas duas arcadas – pretos e a boca cheia de feridas. Iam ao rio com muita dificuldade, pois passaram a não usar as grandes vestes entre os Ychuá. Brigavam entre si, Sago contou-me que os brancos da cruz e os caçadores de prata e outro eram como a Onça Vermelha e a Jaguatirica: não se cruzavam, demarcavam seu território, um alimentava-se do outro.
Sago foi morto tentando fugir de uma emboscada. Foi aprisionado em seguida. Lembra apenas que foi forçado a dizer algo que não compreendia. Gritavam no seu ouvido, mas nada entendia, nada podia fazer. Num acesso de raiva, um dos brancos golpeou-lhe a garganta. Só lembra que os olhos escureceram, a respiração acabou e perdeu-se por seis dias numa total escuridão. Só voltou a si, quando no meio do grande vácuo, uma luz surgiu. Via-se perdido num túnel espiralado, mas a medida que era guiado pelo foco de luz, as lágrimas diminuíam-lhe no rosto. O coração batia forte, voltava a sentir o ar de alguma coisa, sentia-se um pouco aliviado. Sua grande surpresa parecia um grande sonho azul. Gente de sua tribo o esperava no final do grande túnel. Agora poderia ver a luz de perto: uma extensa área verde, parecida com sua casa o esperava. Seria um grande reino desconhecido dos grandes guerreiros Ychuá, que vitimados pela ira, ali foram habitar para germinal a luta da felicidade. Ou seria a terra dos vaga-lumes ( que juravam ser as estrelas ) transformados em cavaleiros celestiais ?

Sago entendeu depois, que aquele lugar era um campo de trabalho a ser feito pela sua gente, mas estavam a sua espera para começar. Que trabalho? Manter a beleza de seu povo. A coletividade do festejo da caça e dos frutos – sim, ali havia muitos ! – para a vida que tanto pregaram. Seus curumins eram livres, tratados como relíquias, pois eram o futuro de sua cultura. Mas a árdua tarefa estava apenas por começar...

Setenta anos após a extinção completa de seu povo, uma colônia fora estabilizada para receber os que ainda estavam na Terra. Os mestiços que haviam formado o primeiro tronco da civilização brasileira eram mais ligados aos espíritos dos brancos portugueses, mas não denominavam-se seus parentes. Primeiro que a prática do cunhadismo ( casamento de um europeu com índias de diferentes etnias, para assegurar a confiabilidade dos chefes pátrios e alianças políticas ) não permitiu essa aproximação moral. Os descendentes que falavam uma outra língua eram mais rebeldes. Khasy-Ake obteve pouco êxito em tentar levar alguns daqueles espíritos rebeldes para sua nova morada. A grande maioria preferia migrar para as colônias dos grandes pântanos mais ao sul. Eram morada de agressores, antigos homens das cruzes e caçadores de ouro. Sago explicou-me que este lugar ainda existe, e que outros povos também completam seu alicerce. Os seres de coração perverso preferem sofrer na sua lama, sempre muito espessa e com fortes tormentas de ácido que lembram os dentes de Shiva, o deus fecundador da Índia Oriental. Embora não esteja ligado à maldade, Shiva também é capaz de castigar os intrusos do verdadeiro caminho do bem.

Sago dedicou-se nos anos subseqüentes a criar um mecanismo que facilitasse a entrada dos antigos espíritos Ychuá que ainda podiam ser levados para Khasy-Ake. Poderiam ser readaptados e educados dentro dos antigos princípios de solidariedade tribal para fortalecer a colônia. E assim foi, Sago, sempre acompanhado de outros grandes guerreiros empenharam-se exaustivamente nessa têmpora da salvação. Na colônia espiritual, a cultura Ychuá foi restituída ao cabo de 150 anos de trabalhos duros e resgates quase impossíveis de espíritos endurecidos. Enquanto isso, na sua antiga morada, os portugueses instalavam um novo método de destruição, só que agora escravizavam um outro povo, vindo da África. Eram vários, tão belos quanto os Ychuá, mas tecnologicamente inferiores como estes nas técnicas da guerra. Tiveram sua liberdade aprisionada em grandes embarcações que atravessaram o mar oceânico por mais de trezentos anos. Eram obrigados a trabalhar nas grandes plantações de cana de açúcar controladas pelos novos homens da cruz e espadeiros ferozes.

Futuramente alguns desses povos abririam caminho para novas colônias de resistência espiritual em processos desencarnatórios. Mas o problema é que em sua maioria, assim como outros indígenas, sua ligação com elementos europeus foram muito mais intensas, o que provocou uma abstração de suas antigas tradições, facilitando uma desaculturação mais violenta nestes espíritos, e ao desencarnar, eram vítimas das mesmas paixões que havia aprisionado seus avós europeus. Muitas gerações carregaram o ópio da ganância por longos períodos espirituais, causando inclusive, a extinção de algumas colônias de readaptação, semelhantes as de Khasy-Ake.

As evidências e o distúrbio antropológico que estes homens de além-mar haviam transportado para estas terras deixaram marcas profundas em outras civilizações. Dentre os grupos tribais, menos complexos em sua organização e manutenção, as ações de catequização e predação moral foram mais eficientes. Sago tinha um vasto conhecimento sobre os ocidentais que adquiriu com os anos de luta na esfera invisível. Nos povos pré-colombianos e nos poderosos Incas, trataram de eliminar quase que imediatamente sua cultura, dado seu grau de organicidade social, que superava o modelo feudal europeu, sendo contemporâneos em dada faixa da História da humanidade, como na Alta Idade Média. O que Sago fez entender em dado momento naquele lugar, é que os ocidentais brancos tinham uma ideologia voltada para a salvação expansionista e assimilacionista, confrontando o modo de vida daqueles povos, altamente organizados em seu contexto.

A mesma pedra colossal das monarquias européias sobre as inóspitas regiões das Américas “acalentou” uma civilização abortada no Novo Mundo. Os princípios éticos-religiosos idealizados pelo Santo Ofício Católico para Fernando de Aragão e Isabel de Castela, marcam o início das monarquias absolutistas na Europa. Sua preocupação inicial está basicamente voltada para as despesas com as investidas comerciais em Madri, Gênova e Lisboa, embora as dinastias burguesas ascendentes do século XVI ( Habsburgos, Médici ) eram o resultado enérgico de toda a produção medíocre-religiosa instalada com a guerra santa de caráter econômico. Naquele contexto, pude imaginar o homicídio praticado com os latino-americanos por séculos como uma herança maldita. A inteligência de Sago faria com que eu entendesse melhor minhas aptidões culturais estabelecidas, uma vez que havia me transportado até aquele mundo exótico. Uma exoticidade admirável, na concepção do povo Ychuá, os preceitos mercantis da América Portuguesa serviram como motivo de luta constante para preservar sua identidade étnica, sendo recuperada tardiamente na Colônia redentora.

- Sago, é notável essa transfiguração do método teórico da História Moderna à partir de seus estudos. É fantástico! Sua visão não linear é algo que sociólogos na Terra deveriam utilizar como um modelo.
- Esse não é nosso objetivo, meu caro. Os homens são a reprodução viva das suas ancestralidades. O mundo mudou, admito. Só que o comportamento espiritual de vossa espécie é bestial. Infelizmente tive de abdicar dos trabalhos pacíficos e regozijadores em Khasy-Ake e investir nos estudos do que chamam “Ocidente”. É um processo doloroso...
- Mas não são todas as pessoas que possuem essa coragem! Você é uma entidade fenomenal. Quando morrer, quero passar umas férias por aqui.
- Talvez não ache necessário.
- Porquê ?
- O olhar de dois minutos atrás não é o mesmo de dois minutos à frente.
- Como assim ?
- Cada etapa a seu tempo. Quando chegar o momento, entenderá melhor. Continuemos o nosso caminho.

Finalmente chegamos a Khasy-Ake, a colônia espiritual dos lendários aborígenes da costa litorânea do Brasil. As moradas ( feitas de palha, barro e pequenos talos e cipós ) tradicionais estavam bem conservados. A floresta que servia de aliada fora reconstruída dentro de uma engenhosa recodificação fluídica – não necessariamente a base de ectoplasma – compartilhada por seres de outras “esferas”. Achei que minha cabeça ia fundir.

- Sago, do que se trata ? Ectoplasma ? Isso é matéria?
- Sim, mas em condições materiais condensadas com bases em outras composições físicas. Como deve saber, os gases, a energia elétrica e o vento são casos peculiares na natureza. Sua organização material atende estados biofísicos ainda pouco estudados. Dada a dificuldade que a ciência na Terra perpassa, algumas experiências técnicas e orgânicas são razoáveis, mas muito limitadas. Não penses que a sabedoria Ychuá construiu sua colônia sozinha. Ser sábio e aliar-se ao que convém na sua evolução. E isso aprendemos nos primeiros 150 anos de trabalho aqui. Devo dizer-lhe de antemão, que as recombinações fisiológicas do globo terrestre predominam sobre o princípio vital, que não é matéria. Isso também está aliado ao progresso moral ! Quando percebemos a necessidade de reconquistar nossas matas e animais, estudamos formas afins de reprodução orgânica animal e vegetal. Não poderíamos ser o ser supremo da criação. Muito menos o Deus que vocês acreditam, mau para nós em todos os momentos... Chego a pensar que ele não seja realmente assim, houve problemas na interpretação. Foi quando percebi que nosso povo tinha resposta às suas curiosidades: ela estava em nossas corações ! Sempre esteve lá. Poderíamos mudar o mundo desconhecido. Essa foi a primeira etapa, depois viria a questão dos recursos. Descobrimos que a humildade seria nossa âncora, sem ela jamais chegaríamos até Khasy-Ake. Para executar uma grande tarefa científica, as intenções morais devem estar povoadas pelos bons pensamentos. Nossa busca é pertinente, disso temos consciência. Como disse anteriormente, a adaptabilidade física completa auxilia a espiritual, mas a última é eterna, invariavelmente nada impede que a matéria predomine sob o espírito. Neste caso, nosso trabalho é mais árduo, pois o planeta ainda passa Por condições morais delicadas, dificultando o processo de energia benéfica e restauradora das coisas. A faixa vibratória da Terra em algumas regiões e caótica. Isso significa um agravante nos projetos de redenção voluntária, ou seja, cometer atos de violência e sensualidade são as maiores opções. A grande maioria das pessoas não estão preparadas para chegar até a morte. Sem ela não há vida. Nossas vidas só começam depois da morte, pois tudo pode parecer mais lúcido. Mas a lucidez também carrega vertigens horríveis. Dependendo do histórico de nossas vidas, podemos ir do Éden ao inferno de Dante.

- Mas baseado em tudo que falou ( já estava perplexo ), como surgiu a colônia após essa conclusão?

- Não dispúnhamos de conhecimento avançado. Descobri, através de um guia espiritual, que outros povos de origem desconhecida sabiam como fazer isso. Minha surpresa foi saber que não eram deste mundo. Também eram humanos, um pouco diferentes, mas sensíveis e inteligentes.

- De onde eram então ?

- Depois falaremos sobre isso, primeiramente vamos completar nossa jornada, afinal, já é tempo.

Ao cabo de meia hora, chegamos ao centro de Khasy-Ake. A estrutura interna e arquitetônica mantinha-se esplendorosa. As habitações seguiam um modelo linear, ms em alguns pontos da colônia eram diferentes. Os moradores circulavam tranqüilamente pelas ruas – se é que posso chamá-las assim – e tudo estava bem harmonizado. Crianças brincavam dispersamente em alguns pontos, mulheres passavam apressadamente rumo as plantações de trigo e milho. O hábito de conservar a alimentação entre os espíritos era inevitável. Sago explicava-me que algumas entidades, geralmente os mais velhos, não necessitavam disso. Havia um relativismo interessante naquilo: a ideologia da vivência e o trabalho eram coisas muito contextuais, que inclusive, os Ychuá continuavam mantendo. Como outras culturas indígenas foram empurradas para a escravidão e “incluíram” o trabalho forçado em seu sistema organizacional, os meios naturais de trabalho anterior ( os canais de irrigação dos Incas no Peru ) desses povos ao meio extingüiram-se tão logo a sede pelo ouro dos espanhóis aumentava sob as pressões de capital externo da Inglaterra. Surgia assim, mitológico subdesenvolvimento da América Latina, história que se repetiria onde o invasor aportasse suas naus, tão medíocres quanto eles. Essa era a carga viceral que Khasy-Ake esqueceu. Não são todos que possuem sorte semelhante.

A colônia estava dividida em três grandes áreas geográficas. A região das Aves, do Fogo e do Homem. Eram como reservas distintas formando toda sua dimensão, representativas, pois significavam na tradição antiga, os ciclos da caça, da guerra e da colheita de cereais. Com uma alimentação baseada na caça e na pequena agricultura, sobrava-lhes tempo para experimentar outras formas de sobrevivência. Remédios naturais eram preparados das cascas e plantas das árvores sagradas, que curavam a sangria e a dor de cabeça.

- Não seria mais interessante furtarem-se dos costumes materiais ? Ou seja, comer não é necessário. Então porque não exploram condições de eliminação alimentar, se são espíritos não podem viver como carne ?
- Exato, mas falta algo mais esclarecedor nesse discurso vago que você propõe. A relação como o mundo que ajudou a constituir deve ser respeitada. Não podemos, nem faremos, em hipótese alguma, a imposição. Éramos felizes sem o seu Deus. Se tivésseis conhecido a história deste povo no início do grande vale, saberia entender melhor o que falo. Antes de mais nada, o coração rege nossas vidas, depois racionalizamos. É fantástico ver essa composição fluir em nossas vidas, nosso povo. Se não fosse este o caminho não conseguiríamos.
- A harmonia do ser na essência das coisas...
- A vida aqui levantou-se de acordo com os princípios da verdade. Essa sempre será a base da nossa sociedade. Fora permitido a nós levantar uma escolha para seguir a trilha do respeito. Não queremos introduzir o sal amargo da intriga, causada pela guerra, estratégias de sua gente.
- Suas colocações parecem um tanto racistas, não acha ?
- Sim, as suas também contêm resquícios dessa futilidade, talvez a verdade seja dura demais com a mentira. É compreensível nossa atitude.
- Caprichos, nada mais...

Fiquei em silêncio por longos minutos. Estava confuso, perdido. Afinal, estava sonhando? Não entendia, eu naquele lugar? O quê era Sago? Aquele homem de esplêndida austeridade e benevolência seria a encarnação de Tupac Amaru, o imperador fantástico dos lendários Incas ? Não conseguia encontrar respostas para o que estava acontecendo. Seria mais inteligente não procurar respostas. Não sou um romancista e nem pretendo salvar o mundo. O que eram os homens até ali ? Meros esboços do “sucesso” de suas histórias individuais. Lembrei-me de Francis Bacon: “ A França está de cabeça para baixo... Portugal, usurpado... Os Países Baixos, devastados pela guerra... O mesmo se tenta agora com Aragão... Os pobres índios perdem a condição de homens livres e são trazidos com escravos”. Seu raciocínio era um lembrete para a ignorância vindoura. Assustava-me Ter que pensar em tudo o que Sago me falou. Não compreendia Khasy-Ake como um acontecimento óbvio, quantos impérios aborígenes conseguiram Ter a mesma resistência espiritual em esferas tão longínquas como ela? Coisas que os pobres imortais – sem ter noção de sua eternidade – humanos fingem não saber. Acredito que saber pressupõe consciência, e não uma mera intuição ‘fatídica’ dos fatos. Eu jamais conseguirei explicar com exatidão o que se passara comigo. Nas poucas memórias que escrevo nestas linhas – duvidosas e enfandonhas – , minha face sobre o homem nunca foi tão esclarecedora. Sinto-me feliz, pois acredito ter encontrado uma “parte” da verdade na qual mencionei. Isso é louvável, um pouco medíocre até, mas nada que seja oculto pelo resto da eternidade. Na busca do todo, encontramos a solução para a mesquinhez da literatura, esvoaçando o universo nas suas palavras simples. Se eu pudesse esconder todas as preocupações inadequadas em uma existência inteira, significaria livrar-me da crítica no futuro. Uma crítica indolente e superficial, de meio homens que julgam-se seres indestrutíveis.

Demoramos quinze minutos para alcançar uma enorme praça, de aproximadamente 500 metros quadrados. Em algumas localidades tinha-se uma forte influência tecnológica ocidental e mesopotâmica. Não sei exatamente se era isso, mas era o máximo que eu poderia entender. Talvez no alvorecer da civilização Maia poderia encontrar imagens tão belas. Não via ouro, Sago entendia a magnifitude da construção e criatividade dos índios, mas nas matas da costa litorânea (desaparecida) as etnias não conheciam o metal. Os Ychuá não o encontraram, pois a cerâmica substituiu em dados momentos, com levantamento de ídolos em barro – na construção da colônia – , sendo uma empreitada de sucesso. O ouro e a prata que eliminaram a população aborígene em todos os aspectos, não poderia ser lembrado de forma nenhuma, era preciso abolir os vestígios da intolerância física – no caso, os metais reluzentes da ignomia européia. O único brilho que encontraram foi o das sociedades amigas, interessantes povos que compartilhavam o progresso técnico com os Ychuá.

Ao norte da constelação de Capricórnio, um planeta de média evolução ( estado de regeneração ) enviava freqüentemente ao globo, espíritos que precisavam restituir perdas voluntárias daquele mundo. Grande parte dos habitantes do planeta já tinham superado o estágio de provas e expiações ( concernente à Terra ) e administravam os espíritos mais atrasados, felizmente minoritários, beneficiando o processo planetário para um mundo justo. Segundo Sago, chama-se “Morvus”. Hoje, passa por uma ótima fase de pacifismo e comunhão entre seus diferentes países, lá chamados de “Bissais”. Morvus é mais antigo que a Terra, tendo sido povoado há aproximadamente 89,5 milhões de anos por grandes animais exóticos, tal qual a Terra. É claro que isso representa milhões de anos à frente dos nossos dinossauros. Há pelo menos alguns milhares de anos separando a idade dos dois planetas. Isso não significa que são iguais. A atmosfera, os biomas, a variação climática e os organismos variados são bem díspares à Terra. Esses “humanóides”( devido a sua semelhança conosco ) possuem uma formação orgânica relativa ao seu mundo. Por volta de 1785, uma caravana de Morvuanos visitou Khasy-Ake. Não consigo descrever aqui, os “grandes objetos estranhos” que pousaram na praça central, na região das Aves. De lá para cá, o intercâmbio nunca cessou. É daí que vai surgir a técnica de construção “endoplásmica” da colônia indígena. Não poderia descrever mesmo, já que não estive lá.

Os índios mesclaram seu conhecimento moral com o vasto mundo científico de Morvus. Durante oitenta anos seguidos, a troca de mecanismos “estabilizadores progressivos” foram utilizados. Os Morvuanos dominavam com auxílio de máquinas não conhecidas na Terra ( seu material não é descritível nem encontrável ) várias formas de gases e materiais radioativos perenes nos mais diversos estados de conservação. Alguns poderiam ser adaptados em outras funções, desde que as devidas combinações químicas fossem utilizadas. No caso da esfera espiritual dos Ychuá, rica em fluídos edificantes, devido o alto grau de sua elevação moral, tornou mais simples a introdução de outros fios energéticos na atmosfera da Terra. O espaço físico da colônia foi todo mapeado e preparado para “segmentação edoplasmática.”

O que Morvus e a Terra estavam promovendo era um convênio de construção e troca de cultura. Os morvuanos encantaram-se com a beleza das florestas naturais de Khasy-Ake. Fizeram das árvores, um excelente pulmão para seus corpos estranhos aos espíritos indígenas. Como vinham de um planeta menos condensado pela matéria, seu estado semi-orgânico permitia uma variação vibratória perfeita aos espíritos Ychuá. Nessa relação também descobriram o funcionamento plasmático da mente. Ora, se estavam desencarnados, poderiam exercer uma alteração nos fluídos cósmicos e modelá-los dentro das suas circunstâncias semi-materiais. Sendo guiados pelo princípio da moral e do valor ao próximo, processaram a endoplasmia: A engenharia psico-perispiritual.

Aliavam todos os elementos químicos e físicos de existência orgânica e os reproduziram na colônia. É aí que vai surgir as regiões do Fogo e do Homem – o complemento ritual e tradicional dos índios aliado na experimentação intelectual dos dois povos: nativos terrestres e morvuanos. Essa foi a grande empreitada interplanetária do intercâmbio de culturas. Conseguiram finalmente plasmar, ou seja, reproduzir e criar ambientes vivos de origem material numa colônia de espíritos. E tudo era processado pela mente, e não por dispendiosos métodos força e técnicas humanas e terrenas. Seria a aurora de uma nova civilização ? Mais justa ? Que negando motivos de diferença planetária resolveram se ajudar, para o bem universal !? Sim estávamos chegando neste ponto... A dita paz entre a humanidade ! Agora minha mente clareava, vigorava com as magníficas palavras de Sago, pois contava-me tudo isso com uma simplicidade indescrítivel.

- Meu jovem, é hora de voltar.
- Mas Sago, eu...
- Silêncio. É o momento de voltar e contar suas novidades para os que precisam ouvir !
- E quando irei retornar ? E você ?
- Não se preocupe, um dia voltaremos a nos encontrar...

“ Encontrar...”

Confusão... Perda? Espere, onde estou ? Mas o quê..? Acordo. São 09:15 da manhã, eu realmente estava dormindo. Meu Deus ! Que loucura. Nossa, esse foi um dos sonhos mais loucos que já tive. Preciso beber um pouco de água. Droga ! Estou atrasado...

Palmas, 18 de dezembro de 2003.








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