Usina de Letras
Usina de Letras
173 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62190 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10352)

Erótico (13567)

Frases (50594)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cartas-->LUTAR COM PALAVRAS: DA MINHA GRATIDÃO PARA COM OS USINEIROS -- 15/06/2001 - 17:59 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Lutar com palavras é luta vã"
(Carlos Drummond de Andrade)

Uilcon Pereira se gabava de ter inventado duas palavras. A primeira delas era um verbo: "vler". Para dizer do ato de ler uma pintura, uma fotografia, uma imagem, um cartaz, um cartoon, um design, um desígnio, um desenho, uma insígnia, um signo, um sinal gráfico, um poema visual.

Além da paixão pelos minicontos, que mencionei em carta a Bruno Freitas, e ele incluiu na entrevista concedida ao entrevistador do usina , Uilcon Pereira também se exercitou na criação de "poemas visuais".

Em "A educação pelo fragmento", há uma tira de jornal que ele incorpora ao texto, por exemplo. E os seus textos revelam essa proximidade com o mundo das imagens, um mundo fugaz, que tenazmente se nos escapa, das imagens em movimento, o cinema, das tiras dos jornais, dos quadrinhos, dos cartoons, que se traduzem, na escrita, em flashs, em histórias mínimas, em frases certeiras, golpes de caratê, como João Gilberto acha que deve ser a música.

Um verbo, portanto: "vler". Mas, é claro, para ser usado assim mesmo apenas, no infinitivo. Não sei se caberia conjugá-lo. O nome do verbo apenas. Há que pensar a palavra "verbo" com a força que ela tem, por exemplo, em "E o Verbo se fez carne". Em alemão, a Bíblia soa mais próxima do mundo material, mais concreta, mais humana: "Und das Wort wurde Fleisch..." foi para mim um espanto, ouvida pela primeira vez numa cerimônia religiosa na Alemanha, a primeira que freqüentei. Uma questão seria saber por que não dizemos da mesma forma: "E a palavra se fez carne..."

Vler um quadro, vler um poema.

Coisas de poeta, coisas de quem lida com a palavra. Coisas de quem faz a palavra se fazer carne.

A outra palavra foi título de duas de suas obras: RUIDURBANO.

Quando do lançamento de RUIDURBANO, tive a felicidade de produzir, no Teatro Municipal de Araraquara, um evento que criei com os meus (dele também) amigos de humanidade e de poesia: OXOUNOSSO. Ao criar o evento, criei essa palavra, esse que ficou sendo, para sempre, o nome de um evento universitário, o último talvez dentro da universidade pública tal qual nós a concebíamos e conhecemos.

É claro, sem a XUXA, o nome OXOUNOSSO não existiria. E, antes da XUXA existir, muito antes, houve Jorge Ben, que depois seria Benjor, que cantava "por causa de voxê bate o meu peito".

OXOUNOSSO também não existiria sem o "de cada dia nos dai hoje".

Eis o segredo, o procedimento, o fazer da poesia. Quando a gente vai fazer algo novo, e esse algo novo é tão novo que requer um nome, mais do que nunca participamos da criação do mundo, da criação do real. E o que criamos se incorpora à realidade na qual vamos seguir vivendo.

Há quem duvide da existência de Deus. Mas não duvidaria, se eu dissesse, que um Deus, se houver, só pode ser poeta. Chego a pensar que Deus, se existe, existe no plural, e assim é mais plausível, e assim é mais provável, e assim é mais crível também: Deus é poetas. Deus é criadores.

Digamos que Ele coordena essa central de criação que é a humanidade. A verdade é que não temos outra saída. Tomemos, por exemplo, o assim chamado "aparelho fonador". Foi um susto quando aprendi que ele não existe. Ou melhor, trata-se de uma adaptação. Pura gambiarra. Precisavamos falar, e havia a boca, a língua, os dentes, o céu da boca, a garganta. Ficou sendo. E falamos. Demos um jeito. Daí, as palavras. Daí, o mundo feito de palavras. Faladas ou impressas. Sem elas a internet, este nosso instrumento, não seria.

Vivemos mergulhados numa solução poética. Uma placenta de palavras. Até os bebês, está provado (cf. artigo "Como pensam os bebês"), participam dos sons que se propagam do lado de fora do seu primeiro espaço, o útero. À luz, eles de pronto reconhecem as melodias, as canções, as palavras, as vozes de antes. Reagem. Pouco tempo depois, alguns até com 5 ou 6 meses de idade, já passam a emitir sinais de que também estão prontos para essa nossa luta vã, sinais de que também são poetas, ou seja, irremediavelmente humanos.

Mas há também aqueles que, com o tempo, acabam se especializando em inventar palavras horríveis, sonoridades incômodas, reprováveis mesmo. Cada leitor faça a sua lista das 10 piores palavras da língua portuguesa. Na Alemanha, ao final de cada ano, existe o hábito de eleger as piores criações vocabulares. Da leitura de entrevistas de vários escritores alemães, depreendo ser quase um consenso pensar que a literatura tem esse dever, essa obrigação social, a resistência à linguagem vulgar dos jornais e da política, esse nosso mundo administrado. A poesia sendo, pois é, uma espécie de esforço, para impedir o avanço das palavras e formulações desumanas, e como tal nocivas. Pena que tantos intelectuais, e mesmo certos escritores, desconheçam a urgência e a seriedade dessa sua tarefa. Muitos dos textos escritos ou traduzidos se constituem em monumentos à total ausência de ética e de estética, ao descuido com o idioma, com a nossa capacidade de expressão e comunicação, com o maior de todos os inventos humanos que é a narrativa.

Pergunto: e um site literário como é este usina de letras ? Será que a nossa convivência dentro dele não deveria ser esse mesmo esforço?

Na expectativa das outras tantas respostas possíveis, adianto que a "consciência da linguagem" tem sido, na história do mundo e da literatura, a principal responsável pelos avanços experimentados pela humanidade.

Volto a Peter Bichsel, que acredita na necessidade de se substituir a "consciência histórica", que tão maus resultados propagou pelo século XX afora. Em lugar dela, entraria a "consciência narrativa". Em lugar da História, em sua desconfiança com relação às palavras que só se dizem no singular, o autor suíço propõe o cultivo das "histórias". Só vale ser vivida uma vida que também pode ser contada. O mundo como uma usina de contadores de suas próprias histórias. Ao diabo, por exemplo, com esse mundo dos best-sellers. O mal que propagam é parecer às pessoas que suas vidas não merecem ser contadas. Uma coletividade. Um site literário é, desse ponto de vista, um espaço para o cultivo de algumas das nossas faculdades perdidas, para a tomada de consciência do papel social da literatura, da poesia, da palavra. E acredito ser esse o impulso que nos move, para além de todos os percalços e desânimos, a prosseguir nessa luta que o poeta chamou vã.

Já disse que a tradução me ensinou, sobretudo, a humildade. A convivência no usina de letras me ensina a gratidão, a generosidade e o reconhecimento dos nossos esforços comuns. Aprendi também, o que é muito bom, a não ter medo de ser patético, a não ter medo de tentar ser verdadeiro, para além de todas as convenções sociais que insistem em nos inibir. Vocês vêm me dando a chance de me sentir, de me dizer, de me tornar cada vez mais um escritor. E um escritor é tanta gente junta! Valeu!
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui