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Erotico-->AS AVENTURAS DO PADRE DEODORO EM CAMPOS ETÉREOS — III -- 19/07/2003 - 08:05 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Eufrásio desejava que a mente do amigo se abrisse para suas palavras, mas não conseguia infiltrar-lhe nenhum conceito novo, segundo o prisma da realidade de além-túmulo. Achava, porém, que não devia desistir. Resolveu mudar de tática:

— Tudo bem, queridíssimo amigo. Que Jesus nos estenda o seu manto de benevolência e de misericórdia, para nos abençoar. Se você não acredita que estou ao seu lado na qualidade de benfeitor espiritual, de protetor, que tal experimentar as vibrações deletérias dos seres malfazejos, aquelas almas penadas dos sofredores impenitentes, para quem a religião, qualquer uma, nada representou, tanto que agora pairam errantes pelo espaço em que estamos situados. Você aceitaria conversar com um deles, a sua escolha?

— Se não bastasse ter ouvido em confissão inúmeros seres arrependidos e que se encontravam nas cadeias, onde eu ia reconfortá-los a seu próprio chamamento, também contemplei as ações desarvoradas dos que desafiavam o Pai, provocando a minha ira e apenas alcançando o meu perdão. Se esse ser é tão malévolo como você diz, vai receber as mesmas bênçãos que destinei àqueles outros no mundo.

Eufrásio balançou a cabeça em desaprovação. Mas ainda insistiu:

— Você se lembra quando lhe levaram uma jovenzinha, como você disse, possessa? Como foi que você fez para ajudá-la?

— Li as sagradas fórmulas do exorcismo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

— E o Demônio fugiu apavorado?

— Penso que sim, porque não mais encontrei a mocinha nem as pessoas da família. Naquele tempo, eu era novo na paróquia... Mas espere um pouco. Como é que você sabe a respeito desses fatos, se tudo se passou bem depois que você faleceu?

— Você não está...

Ia Eufrásio explicar como é que tivera conhecimento daqueles sucessos, mas Deodoro andava para trás na rememoração daquela época, repassando todos os episódios em minúcias. Até que, de repente, lançou-lhe uma pergunta, à queima-roupa:

— Diga-me, Eufrásio, como se chamava a jovem?

Eufrásio adivinhou aonde queria chegar Deodoro, mas não hesitou em responder:

— Eugênia de Castro Gonçalves, filha natural de Pedro e de D. Maria de Jesus Rodrigues, que se haviam amasiado porque era ele casado.

— Pois não estou admirado de que você saiba tanto a respeito, porque agora tenho a certeza de que não estou tratando com o meu verdadeiro amigo. Vade retro, Satanás! Eu não quero mais você a me tentar. Sei que era você que estava no corpo daquela infeliz, como ainda me lembro muito bem de que os pais dela freqüentavam o terreiro de macumba.

Por mais um bom tempo, Deodoro ficaria falando sem parar, enquanto ia repassando as contas de seu rosário, em ave-marias e pais-nossos que despejava assustado. Aos poucos, porém, foi compreendendo que era muito estranho aquele ser infernal, que se ajoelhara ao seu lado e que, munido do próprio rosário, recitava as mesmas orações, terminando por dividirem entre si as partes: “Ave, Maria, cheia de graça...” e o outro: “Santa Maria, mãe de Jesus...”.; “Pai nosso, que estais nos Céus...” e o outro: “O pão nosso de cada dia...”

Tendo rodado três vezes cada terço e tendo orado, sem resposta, a oração do Credo, estabelecia-se na cabeça de Deodoro a maior confusão. Pensava ele:

“Se esse sujeito se presta a tanta falsidade, será porque conhece de sobejo as palavras do Cristo: — Que belo diabo deve ser aquele que quer destruir o próprio império!”

Afagava o orgulho de poder citar os textos bíblicos com expressões próprias, pois se lhe azedavam os dizeres segundo o estilo dos evangelistas. Lembrava-se dos tempos em que procurava as qualidades literárias do Velho Testamento e fazia-se por repimpar em soluções mais prazerosas e elegantes, porque, concluía, a língua portuguesa tinha sua própria constituição, sua estrutura especial, suas influências de substrato e de superstrato específicos, sua própria literatura, não precisando, portanto, quedarem presos os tradutores na sintaxe arcaica de tantos séculos, segundo as traduções, para o grego e para o latim, do aramaico e do hebraico.

Quanto tempo passou na apreciação desses antigos interesses não saberia precisar, mas, de repente, se viu totalmente alheio à presença daquele que se dizia seu amigo. O medo que sentira há bem pouco tinha passado completamente. Também já era capaz de enxergar a fisionomia do Padre Eufrásio, a qual, se não fosse a dele mesmo, tinha sido excelentemente copiada pelo farsante. Imaginou que o outro estivesse apenas aguardando uma oportunidade para voltar a entabular conversação e desejou restabelecer o contato, porque a memória era muito difícil para os tópicos que não se haviam fixado como prioritários.

“Será que eu poderia, pensou, fustigar o sujeito aí, pedindo-lhe para revelar-se tal qual é na verdade, já que ainda não me disse, definitivamente quem é?”

— Claro que pode, Deodoro.

— Santo Deus! Mas, então, você lê os meus pensamentos?

— Na verdade, você estava pensando em mim, aspirando por uma resposta, e esse é o meio que se tem no etéreo de aproximar os seres de mesmo quilate vibratório.

— Eis que finalmente você está colocando os pontos que disse que eu não iria aceitar. Esse negócio de “etéreo”, de “seres” e de “vibração” não tem qualquer repercussão na minha mente. Você está falando chinês. Se estivesse falando grego, quem sabe eu iria compreender alguma coisa, já que aprendi (ou aprendemos) um pouco no seminário maior.

— A sua preocupação lingüística é interessante. Já se lembrou do hebraico e do aramaico, da natureza específica de sua língua pátria...

— Calma lá! Essas coisas, eu estou bem atento, eu não pensei com a intenção de despertar o seu interesse. Aí fica comprovado que você está lendo diretamente no meu cérebro.

— É verdade. Quando o indivíduo está serenamente pensando a respeito de fatos que não lhe dizem diretamente respeito, tópicos culturais ou dados científicos, nada que envolva emoção, fica fácil de penetrar em sua intimidade para quem tem o traquejo da análise espectral das emanações mentais, que é como o povo na Terra designa a aura, a partir dos chacras situados...

— Não vamos confundir as coisas. De acordo com o que você está dizendo, as pessoas aqui têm o condão de perceber o que se passa com as outras, apenas observando o quê? Estou desconfiado que você está de propósito querendo me confundir. Vamos devagar porque todos esses termos eu conheço, que não sou tão ignorante a respeito do sentido das palavras.

— Aqui não se trata apenas do significado dicionarizado, o que você possui nos arquivos da memória, o que sei muito bem, sem precisar ler nenhuma informação que queira passar-me ou que esteja a preocupá-lo.

— Vá devagar que não quero me ver engodado nem encalacrado. Acho que as idéias estão se acumulando sem as devidas explicações, sem exemplos definidos. Acho que é para me pôr mais zonzo do que ainda estou, que não consigo raciocinar com clareza sobre as coisas mais comuns que estão à minha volta. Como é que, agora, você quer me fazer filosofar, por prismas que desconheço?

— Pois era mais ou menos isso que eu ia dizer, ou seja, que não basta prestar atenção no que está ao derredor, mas que se deve receber o influxo das vibrações que nos chegam de todo lado. Na Terra, a gente tinha o poder de se situar pela visão, quase sempre limitada por um horizonte próximo ou distante. E também pela audição, que os ruídos a que estávamos acostumados nos punham tranqüilos. Não é verdade que gritarias desusadas nos alertavam para ocorrências fora do padrão comum e nos faziam pesquisar a origem e as causas dos distúrbios, para que pudéssemos reequilibrar a nossa condição vital, percebendo-se inconscientemente a segurança do corpo pelo conhecimento intelectual das situações?

— Se você vai fazer referência aos outros sentidos, como o olfato, o tato e o paladar, eu mesmo posso estender-me a respeito de que todos participavam igualmente do domínio que as pessoas...

— ...encarnadas...

— ...vivas...

— ...porque as mortas...

Deodoro parou para avaliar a extensão das sutis provocações. Queria colaborar com exemplos de como o olfato participava da orientação mental para a fixação dos indivíduos em sua paisagem para determinar o “status” pacífico ou irrequieto, como resposta aos estímulos, mas Eufrásio interveio de forma pouco sistemática, como se estivesse se divertindo com as noções que não encontravam apoio no sistema intelectual de que era capaz o recém-desencarnado. Resolveu entrar na brincadeira:

— Você quer que eu utilize o termo “encarnadas” para as almas que estão ocupando um corpo terreno. Muito bem. Então, devo criticar a sua maneira de se referir aos espíritos, quer dizer, você chamou de seres aos indivíduos que estão ao nosso derredor, nesta dimensão. Não se encontra aí uma falha muito grosseira de conceituação, já que os homens são formados de corpo e alma? Sem o corpo, sobra a alma. Os seres deveriam corresponder ao conjunto, ou seja, às pessoas que vivem na Terra. As almas têm somente a estrutura do sopro de vida que Deus depositou no barro. Não foi assim que fez o primeiro homem? Ora, o que é puro espírito não deve ser tido como algo concreto, mas relativo ao Criador de onde promanou, pois Deus é espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra.

— Você está, evidentemente, querendo construir uma tese neste exato momento. Não vou discutir a sua capacidade de imaginar e de expor os pensamentos, segundo o seu ponto de vista fundamentado na idéia de que a discussão deve valer por si mesma. Reconheço que passei por uma fase semelhante, em diversas épocas de minha vida terrena. Lembra-se de nossas discussões, após as aulas de filosofia, quando falávamos de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino? Aqui, este tipo de postura (você aos poucos irá entender) representa apenas divagações sem sentido pragmático, uma vez que tudo, neste campo da realidade sobrenatural (considerando o seu ponto de vista ainda muito preso à densidade da matéria), a gente pode verificar pela experimentação, como, por exemplo, a natureza do invólucro que nos envolve a chama divinatória a que você deu o nome de alma. Eis que a centelha espiritual despontou em sua mente como uma provocação, mas você acertou na mosca. Apenas falhou por não haver considerado a existência desta capa fluídica que nos veste e que, se você tivesse estudado Espiritismo pela cartilha de Allan Kardec, iria chamar de perispírito.

— Até parece que você era versado nas práticas do ocultismo da mesa branca. Eu me recordo muito bem de um sermãozinho que você cascou nos colegas durante a refeição, quando alguém...

— Foi você!

— Posso até ter sido, mas eu não me lembro do santo senão do milagre. Então, como dizia, quando alguém insinuou que se podia conversar com os mortos.

— Ainda bem que mudei de opinião, senão, como é que iria explicar a mim mesmo estarmos conversando os dois, que ambos morremos mas (apontando para a batina) não mudamos o hábito de trocar idéias?!

Deodoro desejou abraçar o amigo, que reconhecia agora pelos inúmeros indícios da convivência íntima.

Nesse momento, a visão como que se esclareceu e ele pôde enxergar ao derredor de si com bastante felicidade. O amigo estava igualzinho à época em que o despachou para o cemitério, menos magro e menos pálido, como se houvesse mantido a idade e refeito a saúde. Curara-se, eis tudo.

Eufrásio puxou o antigo colega para junto de seu coração e assim permaneceram durante vasto tempo, enquanto Deodoro ia reanimando as forças. Mas não percebeu que estava sob amparo energético do protetor e, de repente, em lágrimas, soluçando, fez um longo discurso de agradecimento ao Pai por lhe haver enviado mensageiro tão querido.

Eufrásio ficou a ouvir a pregação do prelado, admirado ainda, como em vida, da faculdade de generoso desempenho lingüístico, modelo para todos os seminaristas, quando em alocução sobre as virtudes dos santos e sobre as qualidades das pessoas de bem.

Deodoro iria terminar com uma prece mas os engulhos da nova condição, tão repentinamente quanto iniciou, fizeram-no calar-se.

Eufrásio rejubilava-se:

— Graças a Deus! Vejo que está recuperando-se muito rapidamente. Isto é ótimo. Vamos esquecer as questões iniciais e dedicar-nos ao que devemos fazer, para que você se inteire das premissas existenciais do local onde estamos.

— Eufrásio, eu não vou mexer-me daqui. Sinto-me completamente bem e só espero que o Senhor se lembre de mandar quem me libere desta condição de inferioridade, para me destinar um lugarzinho nos Campos da Eterna Prosperidade.

— Deodoro, veja que eu passei pelo mesmo transe que você, caro amigo. Eu mesmo fui recebido pelo Padre Antônio, meu confessor de tantos anos...

— E onde você está residindo? Haverá algum monastério que recolha as almas dos sacerdotes devotados à causa do Cristo, gente especial que se sacrificou na carne, pelo bem do semelhante?

— Nada de especial. Vivo com uma confraria de religiosos devotados às idéias cristãs, mas o instituto que freqüentamos exige de nós certa dedicação junto aos encarnados, para que eles desempenhem os seus roteiros de vida...

— Que roteiros de vida? Eu não creio em nada do que você está falando. A dar-lhe ouvidos, é como se cada um de nós já existisse antes de nascer, o que é impossível.

— Por que seria impossível?

— Ora, como é que iríamos nascer totalmente ignorantes, se já conhecêssemos a existência? Essas são teses que destruí um dia, quando me levaram a tomar contato com uma obra que me disseram ditada pelos espíritos e que eu soube caracterizar como de clara influência demoníaca.

— Você diz que, do jeito que eu falo, as coisas não são compreensíveis. É isso?

— Justamente.

— Então, como você explica que eu venha pregar-lhe outra teoria, sem nada para ganhar com isso, dado o seu ponto de vista?

— Você está tentando amenizar a minha estadia no Purgatório, simplesmente.

— Diga Umbral, que purgatório, na verdade, é a crosta terrestre de onde você está chegando.

— Que mérito haverá em denominar deste ou daquele modo?

— É que a terminologia, como você bem sabe, contém conotações diversas: uma palavra lembra os pensamentos e a filosofia católica.; outra busca a realidade de além-túmulo.

— Umbral, pelo que eu posso concluir, é um local escuro, cheio de sombras. O purgatório é onde as pessoas curtem o seu sofrimento moral, porque pecaram, segundo o critério dos pecados veniais. Se tivessem pecado mortalmente, ofendendo a vida sua ou de outrem, não teriam nenhuma oportunidade de viverem na Terra, que você chama de Purgatório. Acho que a sua denominação é um contra-senso.

— Não é, não. Se na Terra há luz e trevas, segundo seja dia ou noite, a alma humana passa por traumas muito fortes, uma vez que estão coagidas a permanecer encarceradas num corpo material, através do qual têm de aprender os preceitos elementares da convivência harmoniosa com a sociedade, sofreando seus impulsos instintivos, justamente aqueles que lhe caracterizavam o procedimento anterior ao nascimento, ou seja, a programação a que me referia.

— Pois não vou aceitar pacificamente tudo o que você está dizendo. Com todo o respeito aos seus conhecimentos, vejo que o irmão sofreu a desdita de receber informações destorcidas da realidade. Eufrásio, por quem você é, ponha a cabeça no lugar. Não me venha com aflições tão dramáticas. A entender o que você está dizendo, todo o meu viver acabou sendo uma grande mentira, uma falsidade...

— Mas eu posso garantir-lhe que você não se perdeu por hipocrisia, o que teria acontecido por falar de um modo e agir de outro. Tudo que você fez na vida (ou quase tudo) estava rigorosamente dentro dos padrões estabelecidos pelo roteiro que conscientemente desejou seguir. Talvez (e isto será o mistério a ser decifrado) nem tudo tenha correspondido aos projetos anteriores.

— Você insiste nesse ponto. Não seria lógico que eu devesse recordar-me do que aconteceu comigo antes de viver? Como é que você explica isso? Vamos ver. Tente ser bastante claro.

— Caríssimo Deodoro, agradeço esta oportunidade, porque estou ciente de que você está prestando atenção, certamente com o intuito de me refutar mas pronto para raciocinar nos termos que lhe vou propor. Antes de lhe dar uma resposta cabal...

— Vai começar de novo a ir à matroca por estas águas túrgidas.

— Não apele para as imagens literárias, que você nunca viajou de navio à vela nem sabe o que são as vagas enormes que crescem em alto mar. No máximo, você passeou de vapor pela costa brasileira, em alguma excursão de férias, isso nos tempos da juventude, quando se interessava pela natureza e não se dedicara ainda aos estudos da santidade humana, em nome de Jesus e de Maria.

— Sem nenhuma figura: você quer ir direto ao ponto, por favor? Estou começando a ficar inquieto, de novo, quando já se amainaram as ânsias, pelo temor de estar sob o domínio do demo. Agora que estou enxergando melhor, posso persignar-me, “in nomine Patris et Fili et Spiritus Sancti”, fazendo o sinal-da-cruz para espantar quem venha com a intenção de me perder.

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