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Erotico-->17. DESCONFIANÇAS -- 09/07/2003 - 07:37 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Raul me ligou pela manhã e marcou um encontro durante o almoço. Foi protocolar e conciso.

Entre um atendimento a um fornecedor e outro, enquanto não era procurado por nenhum cliente especial, em lugar de comandar a empresa, dei-me ao trabalho de aperfeiçoar a reprodução de meu sonho, acrescentando pormenores que me haviam escapado da primeira vez e uma lista dos nomes das pessoas que reconheci na multidão. Datilografei o texto e mandei tirar duas dúzias de cópias. Parecia a minha resposta inconsciente ao fato de não haver ainda recebido qualquer mensagem psicografada.

“Estarei invejando Joana e demais médiuns cujos escritos contêm comunicações inteligentes e oportunas?” — perguntava-me suspeitoso de mais um defeito de personalidade. Mas não dava resposta, no aguardo das apreciações que promoveria dos que lessem a descrição onírica.

Devo referir-me ao fato de estabelecer parâmetros a este narrado condizentes com as condições culturais da época cronológica em que me situava na qualidade de personagem. É que pretendo retratar-me de corpo inteiro, mas assimilando as teses espíritas e observando meu íntimo crescimento, de maneira que, conforme mencionei alhures, não posso colocar o carro adiante dos bois, muito embora alguns termos demonstrem a sua necessidade hoje, caso contrário a obra empobrecerá ainda mais. Deixe, caro amigo, portanto, passar esse “onírico”, que apenas recentemente incorporei ao meu vocabulário.

Fui, pois, almoçar com meu irmão, carregando comigo algumas cópias do sonho. A pretensão de que fosse lido e atendido na análise que iria pleitear ainda não se caracterizara como outro sonho ainda mais real e positivo do que aquele que ali inscrevera.

Veja, leitor atento, que a só recordação da rasteira que tomei de Ana me faz derivar para a formulação mais complexa dos pensamentos e sentimentos, para firmar em seu conceito que a fragilidade intelectual se encontra superada, porque pronto estou para considerações que não pretendo fúteis ou descabidas. De qualquer modo, sirva esta notícia atualizada para deslocar o seu interesse pelo desfecho dos sucessos a serem assinalados neste capítulo para a essência dos caracteres das personagens em seu aspecto evolutivo.

Se não me fiz inteiramente entender, continue a leitura linear do acontecimento a ser referido.

Raul estava numa das mesas do fundo do restaurante macrobiótico. Acenou-me assim que entrei e me fez sentir que estava verdadeiramente preocupado.

Estabelecido o contato de praxe entre irmãos, foi logo informando:

— Vamos ter problemas com o Luís.

Para mim, não poderia ocorrer nada mais dramático que a morte dele, mas fiz um gesto para que prosseguisse.

— Ontem fui visitado pelo advogado da diocese.

— Pensei que tudo estivesse resolvido.

— Quanto a Maria, sim. Eu falei que os problemas estão sendo causados pelo falecido.

— Baixou na igreja, durante a missa...

— Está baixando agora em você. Não brinque que a coisa parece muito séria.

— Por que você não vai logo ao ponto?

— Pois bem, o tal veio com cópia de petição de ressarcimento de danos materiais e morais impetrada por senhora que se diz mãe de uma criança de Luís.

Caiu-me o queixo. Diante da minha perplexidade, Raul investiu no tema:

— Se a mulher está tendo coragem de acionar a Igreja, logo vai querer penetrar no âmago da herança da família.

Lembrando-me do Oficial de Justiça, adiantei:

— Com certeza, ela já providenciou tudo.

Rapidamente, referi o acontecimento do dia anterior. Raul passava a mão na cabeça, demonstrando que recaíra quanto ao complexo de culpa que o tinha atormentado. À vista da agitação dele, precisei acordá-lo para a luta que se avizinhava:

— Quais serão os primeiros passos na defesa do patrimônio de Maria e dos filhos?

Contrariando a fleuma habitual, gaguejou uma resposta evasiva:

— O primeiro passo haverá de ser o de prevenir a viúva. Estou com medo de que algum disparate emocional possa desarranjar a harmonia que se instalava naquele lar, a partir da doutrina espírita.

— Se houver compreensão da falência humana...

— Que falência que nada. Você já está decretando que iremos dar de mão beijada qualquer direito àquela usurpadora?

Estava agressivo para além da conta. Amenizei a observação:

— Se for verdade que Luís é pai da criança espúria, a falência é dele. Se for mentira, é de quem está pleiteando direitos que não tem. Depois que avisarmos Maria, quais os primeiros passos legais que o nobre advogado...

— Por que você insiste em não querer ver toda a extensão do problema?

— Estou aplicando os meus parcos conhecimentos espíritas, ou seja, quero crer que o tempo não pode refluir, que as pessoas, espiritualmente, não retrogradam e que a vida nos foi dada por Deus pra que possamos resgatar os males que cometemos contra os semelhantes. Quanto mais sadiamente agirmos, em consonância com as leis cósmicas ou universais, sem ferir nenhum preceito da bondade e do amor, do perdão e da resignação...

Raul me interrompeu:

— O prisma sob o qual você quer enxergar os fatos pendentes de nossas deliberações roça a eqüidistância dos sábios. E o sangue que nos corre nas veias? Havemos de aceitar passivos o esbulho de nosso equilíbrio familiar? Você não é capaz de imaginar as crises que vão ocorrer no seio dos relacionamentos, principalmente entre nós dois e a parentela de Maria?

Eu não queria precipitar conclusões, como sempre foi de meu hábito. Simplesmente me limitei a concordar, reiterando a inquirição que havia feito:

— Como o “senhor advogado” irá instruir o processo?

— Vamos tomar conhecimento dos termos e negar qualquer alegação de direitos. Vou esmiuçar a legislação, citar os códigos e as leis, solicitar exames comprobatórios de paternidade e requerer nula qualquer pretensão de partilha dos bens do “de cujus”.

Dando uma de entendido, obtemperei:

— Em termos, as providências me parecem absolutamente competentes, contudo, o pressuposto é lídimo, conforme tenho ouvido você repetir constantemente.

Analisando o que disse, garanto que apenas demonstrei completa ignorância. Registre-se para efeito da veracidade do diálogo.

Raul ia imerso em seus pensamentos e se desligara de qualquer opinião que eu lhe pudesse passar. Por isso, não me fez nenhuma crítica ao desacerto das palavras.

Vendo que o tema fenecera, avancei pelo caminho que pretendia menos áspero mas muito mais proveitoso para mim:

— Estou passando-lhe uma cópia da descrição de um sonho que tive. Quero que você me ajude a decifrar as motivações psicológicas que me levaram a essa configuração mental.

Raul ergueu os olhos, fitando-me longamente, com certeza a escolher os termos com que iria atingir o cerne de minha inconseqüente atitude. No entanto, deve ter-me visto sério, compenetrado na importância da descoberta dos liames íntimos que se estabeleciam entre a vida que se transformava e a necessidade de adequação psíquica para harmonizar a personalidade, com o fito de superar problemas e transes. Saiu-se com esta:

— Jogue no gato!

Foi uma ducha de água fria no meu entusiasmo de aprendiz de Espiritismo.

Voltei ao escritório cabisbaixo, não sem antes ouvir de Raul que iria ler e decifrar o significado do sonho, “como qualquer adivinho que atende por tanto à consulta”...

Mas Raimundo, que tinha sido quem providenciara as cópias de meu relato e que tinha recebido uma delas para opinar, despertou-me para as especulações sobre as fugidas de Luís, porque era o funcionário mais velho, tendo convivido com ele ao tempo em que eu estava estudando.

Como sempre, estava por perto.

— Raimundo, por favor!

— Pois não, patrãozinho!

— Acho que vamos ter uma conversa muito séria, porque preciso saber certas coisas que você deve estar a par.

O homem me olhava muito curioso e calado. Prossegui:

— Você deve conhecer alguma particularidade especial de cada membro de nossa família, uma vez que está conosco desde o tempo de meu pai.

Interrompeu-me:

— Desde tempo do seu avô...

— Isso mesmo. Você, a toda hora, está vendo os caminhões saindo pra um lado e pro outro e toma nota de cada partida, destino, carga etc.

— Isso eu comecei a fazer com o senhor seu pai.

— Muito bem! Existem carregamentos que fazemos com faturas muito favoráveis, seja pra igreja, seja pro centro espírita.

— Existem caminhões que saem com material com notas fiscais apenas pra constar, como no caso das construções de sua residência, de seus irmãos e algumas outras.

Olhei com muita atenção dentro dos olhos do bom homem. Queria ler-lhe nas profundezas da alma. Não fui, porém, direto ao assunto:

— Vamos deixar a realidade de lado. Você leu o relato do meu sonho?

— Li e achei muita coisa maravilhosa. Eu é que não tenho essas lembranças. Quando eu me lembro do que sonhei, sempre tem alguma coisa a ver com minha mulher e meus filhos. Acho que gente estranha jamais encontrei ninguém. Pelo menos que me lembre.

— O que você achou dos caminhões carregados? Será que você pensa como eu que se trata da minha ajuda aos padres e aos diretores do centro?

— Posso falar abertamente o que eu penso?

— Não me mandando jogar no gato...

Olhou-me com ar de extrema curiosidade mas deixei as explicações no ar. Então me disse:

— Eu acho muito bonito ajudar essas instituições, mas não vejo nenhuma caridade nisso.

Já ia protestar mas tive o bom senso de ouvir mais um pouco.

— Quando a gente dá pra igreja, tem de dar pras obras de assistência. Se é pra construir templos, escolas, hospitais e outras obras que servem pros padres arrecadarem dinheiro, é melhor cobrar o preço justo, porque, o senhor vai concordar comigo, a Igreja Católica é muito rica.

Senti um apertozinho no coração, com certeza por ter encontrado naquelas palavras alguma coisa muito próxima do que Ana me havia falado. Meio sem jeito, perguntei:

— E pro centro espírita? Não se trata de uma casa de benfeitorias pro povo? Lá ninguém é rico.

— Nem é rico, nem é pobre. Se é rico, a consciência é que vai dirigir as suas atitudes quanto a dar um pouco do que tem. Se é pobre, nem adianta falar, porque vai pedir mesmo, que a fome sempre dói, principalmente quando são os filhos que choram em casa.

Devia eu ter ficado quieto mas adiantei-me:

— A construção das salas nos fundos pro estudo também vai trazer muito proveito pra todos. Ou não?

— Eu acho que o senhor está certo. A gente tem de ver o que vem em primeiro lugar. No seu sonho, quem é que entrava no salão do centro?

— Todo mundo.

— Todo mundo que o senhor conhece. Mas eu não achei na relação dos nomes ninguém que fosse da turma dos assistidos, dos que recebem comida e remédios. As pessoas da lista são todas ricas ou remediadas.; todas têm emprego ou já partiram pro além.

— Que você quer dizer com isso?

— Quero dizer que, se o “Seu” Cláudio trabalhasse no setor da sopa ou da farmácia, ia pôr no sonho pessoas que não têm sequer roupa pra entrar no salão, nos dias de conferência.

— Qual a conseqüência disso?

— Posso falar?

— Desembucha, homem de Deus!

— Aí os caminhões, que o senhor não viu, iam descarregar material pra construção dos barracos dos favelados.

Se Raimundo estivesse agora na minha frente dizendo tais palavras, eu ia abraçar o velho com lágrimas nos olhos. Naquele momento, senti um frio percorrendo a medula, como se o meu sonho devesse ser visto pelo avesso, isto é, pelo que não passou pelos meus olhos, mas ficou submerso nas impressões da realidade. Dei, contudo, mais importância às limitações de minha primeira interpretação do que à lição que Raimundo me passou.

Depois de um longo minuto de reflexão, voltei ao tópico anterior:

— Você disse que muitos caminhões carregam mercadorias pras construções da família. Não entendi o que você quis dizer com “algumas outras”. Pode me explicar?

— Isso faz tempo que não acontece, desde que seu pai morreu, pra falar a verdade. Mas não paga a pena...

Era o ponto em que eu pretendia chegar. Carreguei sobre ele:

— Você se lembra se o Luís forneceu material pra alguma construção clandestina?

Foi a vez dele me olhar atentamente, como a querer decifrar a intenção da pergunta. De qualquer modo, respondeu firme:

— O seu mano Luís jamais autorizou qualquer saída sem nota fiscal, como jamais deu desconto especial pra ninguém. Quando os padres queriam facilidades, tinham de pedir pro seu pai, quando vivo, e, depois, pro Doutor Raul. E eles tinham de assinar a via da nota que ficava arquivada.

Notei que ele falava com certa rispidez ou mágoa. Insisti:

— Nem mesmo quando os empregados pediam pra si mesmos...

— Ele dava um telefonema e a gente retirava o que precisasse diretamente dos fornecedores, sem que nada entrasse no depósito.

— Então, era a mesma coisa...

— Não era, porque ele não permitia que a gente usasse os caminhões do depósito.

— Foi o que eu fiz com o centro. Não foi o Frederico...

— Mas o senhor não lavou as mãos.

— Vamos ao que interessa. Cedo ou tarde, você vai ficar sabendo mesmo. Estou perguntando essas coisas porque quero saber se Luís teve um filho com alguma amante, antes do casamento. O que você pode me dizer?

Raimundo não hesitou:

— “Seu” Cláudio, mesmo se eu soubesse, não contaria.

— Se você souber ou, mesmo, se não souber, vai ser chamado no tribunal, porque estão querendo entrar na herança do meu irmão.

Vi, eu juro, uma lágrima nas esquinas dos olhos do negro. Mas ele foi hábil para disfarçar. Fez menção de se retirar mas ainda me asseverou:

— Toda a verdade do mundo vai ser revelada um dia, porque está nos corações das pessoas. Não foi essa a lição que o senhor leu nos livros de Kardec?

Percebendo que, naquele mato, não ia levantar faisão nenhum, deixei o cão ir guardar o rebanho miúdo dos balconistas e carregadores. Reproduzo a imagem meio absurda que me veio à mente e que fiz questão de anotar, como se tivesse sido o pensamento mais profundo daquela tarde. Talvez não quisesse volver ao tema dos miseráveis moradores dos cortiços e favelas.

Ia desenvolvendo algumas hipóteses de como Luís burlara todos os membros da família, quando soou o telefone:

— Pronto!

— Alô, querido, sou eu.

— Tudo bem, Aninha?

— Tudo bem. Estamos, Odete e eu, com Maria...

— Ela está relaxando. Devia estar no trabalho.

— Raul se propôs a tomar conta dos negócios, porque foi dele a idéia de fazermos uma reunião pra aquilo que você já sabe.

— Sei que você não está podendo falar diretamente. Mas a idéia será revelar que Luís está sendo acusado?

— É o seu sonho, sim. Então, venha diretamente pra cá.

— Que tal se o Raspace fosse convidado? Ele traria algum consolo espírita de maior autoridade.

— Rodolfo foi convidado a opinar sobre os aspectos mediúnicos e confirmou que virá.

— Ótimo! Então, até mais...

— Vê se chega cedo. “Tchau!”

Imediatamente, disquei para o Raul. Não estava. Imaginei que estivesse no escritório de Maria. Também não estava.

“Esse cara está querendo ir com muita sede ao pote” — meditava eu, apreensivo. — “Será que ele se esquece de que Maria está grávida e que uma notícia dessas pode causar um sério problema?”

A partir daí, todos os meus pensamentos se deram no sentido de me preparar para tornar o ambiente o mais sadio possível, em termos espirituais. Foi assim que elevei algumas preces em favor de meu falecido irmão e aos protetores, para que intercedessem no esclarecimento da situação, impedindo que Maria sofresse qualquer distúrbio prejudicial ao bebê.

Assim que entrei na sala, atrasado, porque passara pela minha casa para um banho e para me trocar, fui recebido com efusivas manifestações de censura.

Maria puxou a ladainha:

— Quer dizer que eu vou me casar no dia do nascimento do meu Luisinho? Que excesso de imaginação!

Notei que ninguém se atrevera ainda a contar o principal.

O seguinte foi Raul:

— Devo dizer que a narrativa me impressionou deveras, tanto que fiquei pensando se você não teria inventado tudo para chamar a atenção sobre os eventos que estão ocorrendo em nossa família.

Eu ia jurar por Deus que ele não estava certo mas me impediu, desejoso de terminar o discurso que havia preparado:

— No entanto, eu sei que você não seria indecoroso, dispensando Aninha para agarrar minha mulher.

Foi a vez de Odete interpelar-me:

— Com que, então, o meu cunhadinho me põe em situação de ter de me entender com meu marido?! Você não sabe que ele me obrigou a jurar que eu não tive nada com isso?

Ia ficando muito claro que o teatrinho estava preparado e que fizera eu muito bem em chegar por último.

Aninha também desejou participar da minha lapidação moral:

— Quer dizer que eu me transformei em parteira?! Mais ainda, em coadjuvante, numa cena patética de casamento?!

Aí se revelou inteiramente que a turma queria “badernar o meu coreto”. Entrei no jogo, esforçando-me por contra-atacar:

— E o nosso amigo Rodolfo, não vai colocar mais lenha na fogueira?

O homem pigarreou e, sem estar muito à vontade, gracejou:

— Pois eu não tenho de reclamar do meu papel, pois foi nenhum, já que não estou nem na lista dos figurantes.

Tive um lampejo atrevido e me precipitei, sem medir as conseqüências do que dizia:

— Você está lá também, vestindo o capuz de farricoco...

Silêncio geral. O fora tinha sido muito grande. Estava declarando Rodolfo e Maria, marido e mulher. Até hoje sinto o meu sorriso parvo no rosto, a contemplar as fisionomias, Maria, rubra, Rodolfo, esbranquiçado, Ana, amarelada, Odete, lívida, Raul, pasmo.

Este foi o primeiro a recobrar o sangue-frio:

— Segundo o meu entendimento, Rodolfo está lá, sim, mas sem capuz. Eu acho que, pelo papel de orientador do centro, é ele quem toca no seu ombro, querido e abusado mano, no momento final, quando você se volta e tudo se desfaz.

Precisei formalizar o meu pedido de desculpas mas emendei com uma suposição que daria margem a discussões mais sérias:

— Perdão, meus queridos, pela minha falta de jeito. Podem acreditar que não tive nenhuma intenção casamenteira. Mas vou aproveitar a oportunidade, sabendo que todos tiveram o subido prazer de ler a minha obra-prima, pra perguntar ao nosso mentor espiritual, ao nosso guia encarnado, se esse meu sonho não pode ter alguma coisa de mediúnico, conforme tenho lido que os espíritos se libertam do corpo denso, durante o sono, pra freqüentarem as regiões mais adequadas ao seu desenvolvimento moral.

A minha longa exposição deu tempo para que todos se recuperassem das emoções de um momento antes. Incentivado, Rodolfo ponderou:

— Falando sério, acho que os seus problemas de transferência para o Espiritismo estão todos simbolicamente representados no sonho. Penso que será preciso, primeiro, analisar os aspectos materiais, como o templo religioso, o lar espírita, a sala de estar de sua residência. São lugares em que você tem posto as suas expectativas de progresso espiritual. A partir daí, você, imageticamente, situou as pessoas, dando ênfase aos problemas por que estão passando atualmente. As figuras de desencarnados presentes são devidas aos seus anseios de desenvolvimento mediúnico, como agorinha mesmo você demonstrou. Quando você pega Odete pelo braço, é porque é ela que ficou no seu grupo de estudos. Ana e Raul se distanciam porque estão na minha turma. Como você acha que Raul está se dando melhor, deu a ele, inconscientemente, a oportunidade de conversar com o espírito do seu pai. Agradeço a lembrança do Doutor Raul de me situar numa posição de destaque, sem desprezar o privilégio que me foi dado pelo amigo Cláudio de me consorciar com Maria.

Eu ia levar a brincadeira adiante, porém, Odete foi mais rápida:

— É um pedido de casamento?

Não estava a par da condição civil de Rodolfo, contudo, não foi difícil de perceber que as mulheres já haviam pesquisado a respeito.

Rodolfo não se apertou:

— Se ela quiser aceitar...

Maria, porém, não estava satisfeita com os rumos da conversação e logo trouxe Luís à baila:

— O que é que vocês acham da figura do Luís, iluminado, sendo levado para regiões superiores?

Ana foi quem buscou esclarecer:

— Eu já disse pro Cláudio que o coitado não deve ter tido tempo ainda pra se reconciliar com todos os desafetos encarnados e desencarnados, porque nem saberia sequer onde se situa o Umbral ou qualquer outra morada do plano etéreo.

Maria refugou a hipótese:

— Luís era um homem muito bom, cumpridor de suas obrigações. Se não ia à igreja, vocês não se esqueçam que foi colhido, comigo junto, quando íamos ao centro. Nestes dois meses e tanto, teve tempo pra se inteirar de sua situação e já deve ter sido orientado pra se matricular em alguma escola da espiritualidade.

Não havia melhor oportunidade para passarmos ao esclarecimento do primordial, justamente o que nos levara para junto de Maria. Raul, na qualidade de testemunha oficial das preliminares, não titubeou:

— Querida irmãzinha, acho que estamos em falta para com você. Na verdade, convoquei esta reunião, inclusive com a presença do nosso amigo Rodolfo, para lhe fornecer algumas informações a respeito do seu marido.

Estrategicamente, Odete e Ana estavam uma de cada lado da viúva, na expectativa de possíveis reações negativas, à vista do impacto do noticiário.

Raul pigarreou e prosseguiu, narrando pormenorizadamente a conversa que tivera com o representante do clero, solicitando-me que declarasse o que sabia sobre a notificação judicial.

Maria, não obstante, permaneceu absolutamente no domínio de suas emoções. Parecia estar a par de tudo, tal a serenidade com que enfrentou as revelações.

Foi Rodolfo quem propôs uma tese que Raul e eu não havíamos configurado:

— Quer dizer que o Oficial de Justiça, no mesmo dia ou em dias subseqüentes, apresentou duas intimações conflitantes? Sim, porque, para os padres, havia a expressa condição do desencarne de Luís.; para a família, a requisição foi feita como se ele ainda estivesse vivo. Vejo que existe aí um rabo à mostra. Com a palavra o senhor advogado.

Raul se deu conta do problema e argumentou:

— Conforme disse ao Cláudio, temos de nos cercar de todos os cuidados, porque está parecendo-me existir um esquema fraudulento, alguém com ganância exacerbada, a pleitear vantagens e direitos inexistentes. Vim para prevenir Maria, porque é obrigação de representante legal da família. Exigi que comparecessem os mais chegados, aqueles que a amam verdadeiramente, para dar-lhe força e consolação e para mostrar que estamos unidos na defesa da honra e da dignidade do nosso nome. Ninguém irá conspurcar a integridade com que vimos amealhando as nossas virtudes, em nome de Jesus, segundo as diretrizes de Kardec e dos espíritos de luz que nos trouxeram a codificação da doutrina espírita. Este discurso eu havia reservado para o Professor e Amigo Rodolfo, mas, tendo em conta a calma e a tranqüilidade de nossa irmãzinha, atrevo-me a dizer tudo o que penso, sem véus a esconder o que quer que seja. Se me permitirem, acho que seria oportuno elevar os pensamentos em prece ao Senhor, para que nos ilumine e proteja de todos os impulsos de vingança ou de retaliação. Será que Rodolfo nos dará o prazer e o estímulo para prosseguirmos a nossa vida normalmente, requerendo aos benfeitores espirituais que intervenham por nós junto ao Senhor?

Rodolfo, entretanto, ressaltou o que estava evidente:

— A sua exposição, doutor, dita com tanto sentimento, é a própria prece que me solicita. Que todos se concentrem nesse desejo de harmonia e paz e recitem, no íntimo, um pai-nosso. Nós nos veremos imersos num clima de superior felicidade, como quando, há pouco, brincávamos com o sonho de Cláudio. Deus abençoe este lar!

A reunião terminou com um jantar formal, elaborado pelas três mulheres, ao qual não faltaram os chistes mais finos, regados pelos sorrisos mais deliciosos.

Com Ana Paula, já no leito, tratamos de um tema que me trazia intrigado:

— Não lhe parece que Rodolfo e Maria estão se entendendo muito bem?

Ana caçoou de minha ingenuidade:

— Você se lembra quando Maria veio falar que iria abandonar o Espiritismo? Pois bem, voltou atrás porque Rodolfo foi dissuadi-la, passando-lhe todos os argumentos pra ficar. Foi ela mesma quem nos contou esta tarde.

— Então, o gajo é um aproveitador...

Novamente, mostrou-me minha esposa que eu estava “por fora”:

— O “gajo”, como você diz, é mais rico que toda a nossa família junta.

— Não parece, pelo menos estava procurando um sobradinho...

— Pra dar de presente a um empregado que ia se casar. Raspace contou pro Raul.; Raul, pra Odete.; ela, pra mim. O seu irmão não disse nada?

— É estranho que um sujeito com tanto dinheiro venha perder tempo num centro espírita de subúrbio. Por que não vai direto à Federação?

— Não adianta perguntar pra mim. Se quer a minha opinião, eu acho que um bom espírita vai aonde pode ser mais útil. Parece que é ele quem está dando o dinheiro pra construção das salas no centro. Mas disto eu não tenho certeza.

— Você acha que ele está arrastando uma asa pra viúva do Luís?

— Por que você está fazendo questão de citar o nome de seu irmão? Está enciumado? Gostaria que Maria fosse fiel à sombra do defunto?

— Você me pegou. Eu ainda penso nas pessoas como feitas umas pras outras. Isto quer dizer que, se eu morrer, você sai correndo procurar outro?

— E quem disse que eu já não encontrei?

— Ana Paula! Ana Paula!

Descobrimos, naquele instante, que a noite era ainda uma criança.

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