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Erotico-->14. DECISÕES IMPORTANTES -- 06/07/2003 - 07:49 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

No sábado, não tivemos a planejada reunião. Maria não pôde comparecer, por compromisso anterior com os pais e as irmãs. Então, passamos a manhã nos preparativos para o almoço, conversando sobre amenidades. Destaco que Raul esclareceu o problema da indenização pelo acidente:

— Não se trata de ressarcir os prejuízos materiais, porque o seguro colocou o carro em ordem, como vocês sabem. Acontece que Maria não tem as condições profissionais de Luís. A empresa está sendo tocada na medida do possível e os negócios não hão de faltar. A equipe é boa e as moças da área de arquitetura estão esforçando-se para cumprir satisfatoriamente as suas funções. O que releva assinalar é que a família está sem o pai e isso nenhum dinheiro do mundo paga. Então, vou requerer — sobre isso conversei longamente com Maria — que a Igreja dê amparo aos estudos das crianças, oferecendo bolsas, até que concluam o curso superior. Penso que os advogados dos padres vão querer colocar uma cláusula específica, quanto aos jovens estudarem em escolas confessionais. Se isso acontecer, vou empenhar-me para que o juiz estipule uma quantia a tanto por pessoa e mais exigências relativas à pontualidade dos pagamentos. Não vejo como não se aceitar a proposta, pois é o mínimo que se pode pedir, quando se sabe que o único culpado pelo desastre foi Aristides.

Odete e Ana Paula estavam na cozinha e Raul e eu na sala, de modo que elas podiam ouvir de longe o que dizíamos. Raul abaixou o tom da voz e confidenciou-me:

— O que deveríamos investigar é o que fazia o padreco ir tão depressa e aonde.

No mesmo tom, perguntei:

— De que suspeita você?

— Eu acho que algo misterioso está por detrás da atitude dele, caso contrário, o bispo não se esforçaria tanto por abafar o possível escândalo de alguma revelação bombástica.

— Que acrescentaria saber, por exemplo, que ele estava indo visitar a amante?

— Para o nosso objetivo, nada. Nem seria moral que levantássemos suspeitas. Afinal, antes de sacerdote, Aristides era uma pessoa humana, ou seja, uma criatura tão necessitada de afetos como qualquer adulto saudável. Mas, se descobríssemos que estava indo a alguma reunião mediúnica, o caso poderia tomar vulto.

Fui eu quem levantou a lebre da imoralidade da segunda hipótese:

— Também não teríamos nada com o peixe. Da mesma forma, os sacerdotes estariam interessados em esconder a verdade. E nós não poríamos empenho em aumentar a indenização.

— É exatamente assim que pensa Maria. Mas eu não estou exatamente de acordo. Para você entender o meu ponto de vista, vou ter de me explicar devidamente, caso contrário, vou dar a impressão de mera desfeita provocada pelo espírito de vingança, de desforra ou de aproveitamento da oportunidade forçada pela tragédia.

— Eu acho que vai ser difícil convencer-me de que devemos tirar vantagem da situação.

Raul atenuou ainda mais o som da voz:

— É esse o ponto. Não há que se tirar vantagem nenhuma. Mas não podemos deixar prevalecer quem não cumpre as leis, ainda que sejam as simples regras do trânsito, para o qual existe um código nacional.

— Então, são questões de direito civil!...

— São questões de “direito humanitário”. Não se pode desculpar quem sai em desabalada carreira...

— Raul, você está exagerando.

— Não estou, não!

— Claro que está! Fui eu que fiquei com Luís até que se manifestasse o problema do coágulo. Ele não sofreu um choque tão terrível. Teve a infelicidade de bater com a cabeça, mesmo com o cinto de segurança. Veja que Maria sofreu apenas um corte no rosto.

— Nada mais justo que alguém cubra as despesas médicas.

— Pra isso, foi suficiente o plano de saúde. Agora, acusar o padre de haver provocado a colisão por imperícia e imprudência vai ser mais difícil, porque os fatos não estão muito bem definidos.

Raul começava a dar mostras de impaciência, tanto que a voz ia readquirindo a tonalidade primitiva:

— Também não quero dizer que ele estava querendo se suicidar. Longe de mim levantar falso testemunho. O que pretendo demonstrar é que a direção dele foi perigosa e causou um acidente duplamente mortal.

Foi quando entornei o caldo:

— Você não vai gostar do que tenho pra dizer, mas acredito que você está elaborando uma tese pra apresentar no tribunal e se sente frustrado porque tudo caminha pra um acordo entre as partes.

O causídico foi em busca de apoio na cozinha:

— Quero ouvir a opinião de vocês duas a respeito da indenização que a denunciada nos deve.

Odete, sabedora das convicções do marido, apenas observou:

— Desde que não façamos nada que tenhamos de resgatar mais tarde, acho que é de direito da família conseguir o amparo da diocese, que é rica e poderosa.

Raul bateu palmas e solicitou que Ana se manifestasse:

— E a minha queridíssima cunhada tem algo para acrescentar?

Ana Paula foi sincera:

— Meu queridíssimo cunhado deve saber o que faz. Só está a inquirir a nossa modestíssima opinião pra reformá-la, caso não coincida com o seu parecer técnico. Quanto a mim, não me furto a expressar o que penso, ou seja, que deveríamos entregar os mortos aos mortos e cuidar dos espíritos, como nos ensinou Jesus.

Evidentemente, Raul não iria conseguir tirar coelho algum da nossa cartola e se pôs meditabundo, caminhando pelo quintal até a hora em que foi requisitado para o almoço. Voltou transformado, como se algo novo tivesse sido introduzido em seu centro de interesse. Mas não nos comunicou nada, preferindo espantar o ar de melancolia que tínhamos por aquela época de alívio do luto, brincando com as crianças e contando algumas anedotas de seu velho repertório. Isso nos deixou ainda mais acabrunhados, porque quem fazia a parte cômica era o Luís e a lembrança dele era inevitável.

Os meus sobrinhos, mal terminaram a refeição, pediram permissão e saíram. A juventude sempre tem o que fazer fora de casa. Lucas contentou-se em ser pajeado pela televisão e Mateus adormeceu, de modo que nós quatro pudemos conversar a respeito das deliberações que estavam sendo postergadas.

Fui eu que puxei o assunto:

— Pode ser que me engane mas creio que a conversa que tivemos antes se fundamentou nos valores morais cristãos. Sendo assim, escolhendo um ou outro caminho, estou certo de que prosseguiremos guiando-nos pela consciência, porque a realização do bem é possível em qualquer ambiente.

Odete não perdeu a oportunidade de me elogiar:

— Muito bem dito, Cláudio. Acho que a sua atitude é extremamente racional. Resta saber se os nossos sentimentos pendem mais pra um do que pro outro lado. Onde vocês se sentiriam melhor?

Raul não concordou:

— Não quero ser do contra, mas a questão não se põe por esse aspecto emocional. Devemos ter em conta a verdade, porque a nossa decisão tem de ser sábia para além desta encarnação. Se acreditamos nos anjos, como parece ser a tendência de Maria, então é óbvio que devemos optar pelo Catolicismo. Ao contrário, se temos a certeza de que os nossos parentes e amigos estão ao nosso derredor, ouvindo-nos, aconselhando-nos e participando de nossas realizações, o caminho só pode ser o do Espiritismo.

Ana Paula fez as suas considerações práticas, como sempre:

— Vamos pôr as vírgulas nos devidos lugares. Nós só fomos ao centro espírita pra nos informar a respeito duma doutrina que poderia ter o seu interesse, porque desejávamos estabelecer contato com os nossos pais. Agora estamos perante um fato novo, qual seja, o de saber por onde anda o Luís e qual o seu estado. Não se trata apenas de anjos e de espíritos, mas também de nos prepararmos pro nosso futuro na espiritualidade.

Enquanto falavam, eu ia rascunhando algumas notas, porque me parecia que as opiniões eram importantes e deveriam ser lembradas, se, por acaso, a vida nos oferecesse novas surpresas. De qualquer modo, assinalei à margem um pensamento que me traz emocionado até hoje:

Jesus, muito obrigado pela família que me destes!

Ia imerso nesses sentimentos de pleno êxtase, quando fui acordado por Raul:

— Você e sua mania de tudo registrar. Até parece que vai escrever sua biografia.

Na verdade, tinha para mim que o fato de consignar as falas apenas demonstrava que minha memória não era das melhores, mas, a partir de então, estimulei-me ainda mais para a escrita, porque a idéia de reviver o passado, quando mais idoso, deveria criar-me um novo ânimo. Entretanto, fui respondendo:

— Concordo com todos vocês. Com Odete, porque os sentimentos são tão importantes quanto os raciocínios lógicos. Como Pascal afirmou: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.” “Data venia”, pelo desusado da citação.

Ainda estava no clima de alegria forçada da hora do almoço. Mas todos tiveram algo a comentar. Em seguida, continuei:

— Com Raul, porque não posso deixar de acompanhar a lógica dos seus raciocínios: acima de tudo, paira a verdade.

Foi ele quem fez nova citação:

— “Data venia”, levanto este cálice de adocicado licor e reafirmo: “In vino, veritas!”

Senti que o clima se descontraía ainda mais. Contudo, fui até o fim:

— Com Ana Paula, devo concordar completamente, senão “pau na moleira”...

E ela:

— “Data venia” na moleira!

— Brincadeiras à parte, temos de continuar perseguindo o objetivo de constatar se é verdade que os espíritos podem ajudar-nos ou podem precisar de nosso auxílio, conforme o grau de sua evolução. Eu sei que o mais atrasado nas leituras sou eu, mas já li quatro obras importantes e estou terminando O LIVRO DOS ESPÍRITOS. Não fui capaz de definir até agora nenhuma incoerência de monta, dessas que ferem os olhos e os ouvidos, porém, não estou plenamente convencido. Gostaria de optar pelo Espiritismo porque, como me disse o Padre Aristides — que Deus o tenha! — sempre se alcança voltar ao regaço da Santa Madre Igreja, porque aquelas portas não se fecham pros pecadores arrependidos.

Raul quis ver certa malícia nas minhas palavras, mas eu fui taxativo:

— Se Jesus perdoou os algozes que o pregaram na cruz, também terá uma penitência bastante branda pra nós, simples hereges e pobres mortais.

A conversa ainda prosseguiria mas acredito haver reproduzido o essencial. Daí para a frente, tratamos apenas de temas periféricos, como a repercussão que haveria na comunidade católica, quando se soubesse que, além de não estarmos mais indo à missa, também estávamos acionando o ministério público contra a instituição.



Na segunda-feira, ao chegar, à noitinha, em casa, quem encontro lá? Maria, com quem havia conversado duas vezes a respeito de problemas quanto à condução do escritório de engenharia.

Fui logo “cheirando” alguma novidade, porque nunca antes, naquele horário, recebemos a visita dela. Por isso, a minha recepção foi efusiva:

— Com que, então, sempre aparece quem é viva. Viva! Qual é a surpresa?

Contudo, foi Ana quem respondeu:

— Cláudio, Maria tomou uma decisão definitiva, conforme eu temia.

— Quer dizer que você vai deixar o Espiritismo?

Notei que ela não estava muito à vontade, porque não correspondeu ao aceno de meu júbilo:

— É preciso entender que as pessoas devem ter liberdade de escolha.

Observei:

— É o livre-arbítrio que faz que a consciência assuma as responsabilidades de nossos atos.

Ana não gostou e disse-o com franqueza:

— Não é hora pra divagações filosóficas. Ouça o que ela tem pra nos dizer e pra nos pedir.

Maria tomou fôlego e passou a expor o que a tinha levado a nos procurar:

— Sábado, minhas irmãs, os maridos, meus pais e alguns primos me chamaram às falas. Vocês sabem que são muito católicos, todos eles. Foram procurados pelos padres pra me convencerem a voltar ao seio da Igreja. Acho que estão certos, porque têm razões muito poderosas pra me quererem de volta, senão as coisas podiam ficar pretas, se a Justiça sentenciasse a meu favor. Mas esse ponto não é essencial. Fiquei na retaguarda, porque estava achando importante conversar com os espíritos. Isso, porém, vou deixar pra mais tarde. Essa decisão fui obrigada a tomar, porque o Luís me faz muita falta e Ana tem razão em julgar que eu não posso ficar o resto da vida vivendo de saudade.

Olhei significativamente, como a pedir a Ana que me esclarecesse. Ela entendeu e de pronto resumiu o tema:

— Pensamos bastante e achamos que os espíritos que gostam da gente ficam em contato conosco. Entretanto, Maria é muito moça e pode querer (veja bem: o que vou dizer não está acontecendo) pode querer outro relacionamento. Não será a primeira pessoa que contrai segundas núpcias. Se ficar sob as vistas de Luís, de protetor ele passará a obsessor, impedindo que a consciência dela, como você mesmo disse, aja livremente. Ficou claro?

Perpassou-me a idéia de que era a teoria espírita que estava dando amparo a uma possível filiada de afastar-se do centro. Ponderei:

— Luís, onde está, deve receber os conselhos e os ensinamentos dos protetores. Ele irá afastar-se da ex-esposa no momento oportuno. Eu acho que, quando ela voltar ao plano espiritual, vai entender-se com ele e seus sentimentos brotarão com a força de sua verdade.

A minha fala não foi absolutamente natural. Falava como se impelido por pensamentos muito profundos, que me nasciam mais do coração do que da mente. Era como se tivesse a vontade de impedir que raciocínios falsos preponderassem.

Maria continuou:

— Tudo bem. Nós discutimos sobre isso e até elevamos uma oração pra conforto e paz de seu irmão. Essa não é a questão. O essencial pra mim é não sofrer mais, porque carrego um filho, que merece toda a minha atenção. Se eu me angustiar, o feto vai sofrer comigo. Eu não quero carregar esse pecado. Ontem, pra mostrar que estava de acordo com meus pais, fui com eles à missa e levei as crianças. Aí, o padre que substituiu Aristides...

Ana dirigiu-se a mim:

— Preste atenção!

— ... me chamou à sacristia, dizendo que estava muito contente por me ver na missa, e me pediu que aceitasse a proposta que os advogados do clero iriam fazer-me, porque isso era próprio de quem tem Jesus no coração, de quem age direito segundo os mandamentos da Igreja e muitas outras coisas que nem sou capaz de lembrar direito. De tarde, realmente, eles apareceram, fizeram muitos rodeios e me disseram que a diocese me garantia os estudos das crianças, na escola que eu quisesse, até a idade de dezoito anos, oferecendo-se pra garantir as mensalidades da faculdade, se eles não entrassem em escolas públicas. Quando eu falei que estou grávida, hesitaram, mas acabaram acrescentando também este na lista. Eles estavam com os papéis preparados mas precisariam refazer pra juntar a outra criança. Depois que eu concordei, ficaram de voltar à noite, com tudo pronto. Mas quem apareceu foi o padre, com a papelada, falando muito doce, agradecendo em nome de Deus, elogiando a minha atitude, informando, inclusive, que, se eu não passar bem por causa de tanto sofrimento, que eu posso assistir à missa pela televisão, desde que seja ao vivo, porque vale a intenção, etc.

De fato, ela começou a ter palpitações, talvez por não respirar direito, que a opressão dos fatos evidenciavam certo nervosismo. Fui buscar um copo de água, enquanto ela descansava sob os cuidados de Ana.

Para não deixá-la esfalfada, minha mulher complementou:

— Em suma, Maria assinou e, desse modo, dispensou os serviços de Raul, que ainda não sabe de nada. Ela veio buscar ajuda, pois acha que nós temos mais recursos pra fazer que ele entenda que ela não teve saída.

Percebi que Ana reproduzia, mais ou menos, as expressões que tinha ouvido, porque eu sabia que a opinião dela era outra. Mas eu não tinha tempo para muitas reflexões, de modo que fui logo aceitando o encargo:

— Compreendo perfeitamente a sua situação e acho que você tomou a atitude mais lógica, mais adequada. Apenas não vejo motivo pra se afastar, não direi do centro, mas do Espiritismo, porque ler os livros em casa não acho que seja pecado.

De novo, Ana falou por Maria:

— Ela acha que voltar pro Catolicismo e não respeitar os mandamentos é cair em manifesta desobediência. Ler significa contar ao padre no confessionário. Mais ainda, significa um sermão, uma penitência desagradável e o empenho da palavra de que não vai voltar a cometer o mesmo pecado. Não adianta você dizer pra ela não revelar nada, porque ela vai insistir em sua integridade, com o que eu concordo plenamente.

Maria, que trazia as mãos entre as de Ana, agradeceu:

— Obrigada, querida. Eu queria deixar claro que não me entrego como uma pobrezinha desamparada nas garras do sacerdócio vesgo que enxerga apenas os próprios interesses. O que eu quero é firmar objetivos lúcidos no campo da religião. Se, mais tarde, os acontecimentos me recomendarem seguir os preceitos espíritas, não vou me envergonhar em regressar ao centro.

Meditava eu a respeito de que havia certa contradição entre estar requerendo a nossa ajuda em relação a Raul e o enfrentamento tão denodado das circunstâncias aparentemente negativas de sua opção. Mas foi uma idéia que passou pela minha mente como uma sombra, porque logo se fez a luz. Disse ela, em continuidade:

— Convivi alguns anos com Luís e aprendi com ele o valor da liberdade de escolha. Vocês não concordam que essa era a melhor das qualidades dele? Pois, então, eu não quero magoar ninguém. Chega o luto que se abateu sobre nós. Eu preciso pensar nos meus filhos, antes de mais nada, e os papéis que assinei garantem isso.

De tudo o que conversamos naquela noite, elegi a permissão do padre para que os doentes possam rezar perante a tela da televisão. Fiquei a imaginar se não seria possível realizar uma série de gravações de todas as cerimônias religiosas, mas me ocorreu que ele disse que deveria ser “ao vivo”. Maldosamente, intuí que as pessoas saudáveis deveriam levar suas espórtulas e que Jesus não utilizaria esse sistema eletrônico para adentrar os lares dos enfermos. Verdadeiramente, o conceito que fazia da Igreja estava em flagrante baixa.

Assim que Maria se foi, reatei com Ana o “papo” a respeito de que precisaríamos, mais tarde, recuperar a nossa cunhada para a doutrina dos espíritos. Ela, porém, demonstrou ter evoluído em seus pensamentos, a ponto de encerrar definitivamente a conversa com uma saída surpreendente:

— É bom mesmo que ela não nos acompanhe ao centro. Sem ela, teremos a certeza de que Luís poderá falar livremente, quando estiver em condições de se manifestar. Você não acha que ele se sentiria inibido em expor os seus sentimentos, caso tenha descoberto outros objetivos existenciais?

Não quis polemizar, mesmo porque não me passara pela cabeça semelhante argumento. “Driblei” a necessidade de dar uma resposta, levantando o problema de como faríamos para dar as novas ao Raul, começando por reconhecer que Maria tinha sido muito esperta ao nos procurar. Isso nos ocupou o restante da noitada.

No dia seguinte, no entanto, a viúva nos surpreendeu, indo ela mesma reproduzir para Raul toda a história, ligando-me, em seguida, para avisar que não precisava mais de nossas providências.

Isto fazia derrocar todas as suspeições que levantáramos, Ana e eu, a respeito de seu procedimento pusilânime.

Na quarta-feira, teve ela o condão de nos fazer mais admirados, apresentando-se à reunião no centro, indo diretamente, sem aviso, e chegando antes de nós. Mas não tivemos oportunidade de conversar antes da sessão, de modo que os nossos entendimentos se dariam depois.



Novas decisões importantes estavam reservadas para o desenvolvimento dos temas da pauta.

Assim que efetuamos a prece de abertura, exatamente a que Kardec inscreveu em O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, Rosa Maria começou com as revelações:

— Como vocês estão lembrados, na derradeira reunião, não estava mais conosco o Jurandir. Do mesmo modo que Joana, foi convocado pro curso mais adiantado. Hoje vou separar mais três pessoas, porque se encontram, a meu ver, e também de Rodolfo e de Raspace, em condições de avançar mais um passo na senda dos conhecimentos e da prática mediúnica. Antes de fazer a chamada dos escolhidos, devo alertar o grupo pra uma norma que dispusemos como de rigor, depois de experimentarmos durante alguns anos o treinamento conjunto dos casais. É que, quando marido e mulher se juntam durante o treinamento da mediunidade, ficam presos à opinião um do outro, e não desempenham a contento o que se pede a eles. Sendo assim, não estranhem porque hoje vamos levar pra outra sala alguns cônjuges, deixando os outros aqui. Não se trata de discriminação mas de constatação de que uns estão mais prontos pra missão que se espera deles. Os outros aguardarão com paciência a sua vez. Aliás, temos notado que o que fica estabelece pra si mesmo que está certa a nossa atitude e se dedica com esforço redobrado aos estudos. Espero que o mesmo aconteça com vocês. Antes de anunciar os nomes, alguém deseja fazer alguma pergunta?

Eu me adiantei aos demais:

— Essa regra vale apenas pros casais ou atinge toda a parentela? Está visto que meu irmão...

Não me deixaram prosseguir:

— Atinge, sim! — intercedeu Rodolfo, entrando. — Desculpem-me a interrupção mas o outro grupo já se encontra no salão, à espera de vocês. Se Rosa não teve tempo de informar, digo eu que vamos ter uma reunião conjunta, porque algo muito importante ocorreu neste grupo.

Saímos em silêncio, como se a novidade requeresse respeito de sacramento. Era a “procissão da curiosidade”, conforme ia ruminando durante o curto trajeto.

Acomodada a turma, pude notar que o auditório continha bem mais pessoas do que o número que se podia esperar dos dois grupos reunidos. Mas Raspace, assumindo a tribuna, ou seja, pondo-se de pé à frente da mesa sobre o palco, enquanto Rosa e Rodolfo sentavam-se numa das pontas, foi logo explicando:

— Hoje, temos a honra de receber os amigos que trabalham nas mesas mediúnicas de doutrinação e esclarecimento doutrinário, como também a diretoria da casa, sem exceção. Os caríssimos companheiros que freqüentam os cursos básicos I e II de mediunidade devem perdoar-nos a interrupção dos trabalhos, mas esta sessão conjunta se deve a um fenômeno que ocorreu na turma dos mais novos. Vou pedir pra confreira Rosa Maria que relate.

Sentado o apresentador, aproximou-se a instrutora, que foi breve e incisiva:

— Na última quarta-feira, Valéria, que todos conhecem, assim que terminou a sessão, procurou-me pra contar que viu um espírito amigo amparar um dos parceiros de grupo, Raul, enquanto este dizia a prece de encerramento.

Olhei para o Raul mas percebi que ele tinha sido surpreendido pela revelação e se mantinha absolutamente absorto na contemplação da figura da preceptora, que prosseguia:

— A visão espírita ocorre, como sabemos, muito freqüentemente. Temos dois médiuns videntes entre nós, que nos ajudam a caracterizar os amigos da espiritualidade que nos procuram. Mas o que aconteceu de diferente neste caso? É que Valéria viu um padre em atitude de sustentação fluídica ou magnética, cheio de luminosidade, com uma feição plácida, feliz, quase santificada. Como perdemos Aristides há pouco mais de dois meses, pensamos que se tratava dele. Contudo, ela nos afirmou que não era ele e se propôs a descrever a figura que a tinha deixado vivamente impressionada. Procuramos, então, a Federação Espírita, que nos indicou um filiado, antigo policial, que elabora retratos falados. Peço a Raspace e a Rodolfo que tragam o resultado da consulta.

Foi só aí que notei que havia um grande quadro emoldurado, voltado contra a parede do fundo. Os dois designados apanharam o quadro e o puseram sobre a mesa, de modo que todos pudéssemos contemplar a obra.

Era a figura severa de um padre bem mais velho que Aristides, de penetrante olhar dirigido sobre os espectadores, mas com um sorriso bondoso e discreto nos lábios. O artista havia dado cores, de modo que a tez clara ressaltava sobre o fundo escuro. Era um retrato de meio corpo, onde se destacavam as mãos, a direita em gesto de bênção, a esquerda segurando algo que não se via mas que se podia imaginar um crucifixo, à altura do peito, dependurado no pescoço.

Raspace passou o seu lado do quadro para Rosa e dirigiu-se ao auditório:

— Alguém reconhece a figura?

Murmurinhos generalizados, mas nenhuma tentativa positiva. Raspace insistiu:

— Procurem lembrar-se de sacerdotes ligados ao Espiritismo, pelo menos após desencarnarem.

Pensando apenas em colaborar, timidamente, levantei uma hipótese:

— Padre Anchieta!

Sorrisos na platéia. Eu tinha dado um “fora”.

Mas Raspace, lá de cima, me ajudou:

— Se fosse o Padre Anchieta, o nosso “Coração Amoroso de Jesus”, provavelmente, seria chamado a testemunhar um milagre, já que a Igreja Católica, no Brasil, está desejosa de tornar o missionário jesuíta santo.

O silêncio que se abateu sobre o salão significava que se criara intensa expectativa. Raspace manteve uns instantes de suspense até que revelou:

— Do mesmo modo que ninguém aqui foi capaz de referir o nome da personagem, também nós ficamos embasbacados quando um companheiro da Federação nos disse tratar-se, nada mais, nada menos, do Padre Zabeu Kauffman. Pra quem não sabe, diversos centros espíritas do país homenageiam essa ilustre entidade espiritual, colocando o nome dele em seus frontispícios. O que tem de invulgar esse protetor? É que a sua atuação favorece os fenômenos de efeitos físicos. Por isso, pensamos em colocar o retrato na sala em que Valéria viu o irmão de luz, atribuindo a ela o nome do “Padre Zabeu”.

A bem da verdade, eu não via nada de excepcional no caso. Naquela época, estava imerso nas leituras das obras de Kardec e me acostumara com a citação constante de casos de aparições, de transportes, de vidência, de obsessões, de possessões e outros, para me deixar envolver pela comoção que muitos parceiros estavam sentindo. Mas fui capaz de intuir que Valéria iria deixar Frederico para trás.

Dito e feito, assim que retornamos à sala “Padre Zabeu”, Rosa foi avisando:

— Os que estão sendo transferidos pra outra turma são: Valéria, Raul e Ana. Despeçam-se de seus entes queridos e podem ir pra lá.

Fiquei como estafermo pregado na cadeira. Não se tratava de inveja ou de ciúme. Era a profanação de nossos vínculos conjugais, como se me tivessem dado a notícia de que a minha melhor amiga iria ser guindada para a esfera de luz seguinte, deixando-me na escuridão. Mas o beijo que Ana me deu no rosto desfez a terrível sensação e me criou a expectativa da felicidade de ter alguém a me amparar de mais alto. Isso tudo ocorreu em fragmentos de segundos, mas perdurou durante o restante da reunião, tendo Rosa sido obrigada a me repetir diversas observações, para que eu pudesse opinar.

Em casa, tivemos muito sobre que falar, sentimental e doutrinariamente.; um, contando os apertos do coração.; outra, descrevendo como é que se dava o contato com os guias espirituais do centro encarregados de fomentar o desenvolvimento da mediunidade dos novatos.

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