Usina de Letras
Usina de Letras
13 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62285 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10388)

Erótico (13574)

Frases (50677)

Humor (20040)

Infantil (5458)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3310)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6209)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Erotico-->13. TEMPOS TRANQÜILOS -- 05/07/2003 - 06:54 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A idéia de permanecermos católicos fiéis nos deu forte tendência à felicidade material. Ficou fácil aceitar a palavra do padre ao púlpito, mesmo quando se encaminhava para a crítica mais virulenta contra os seguidores do espiritismo, qualquer que fosse a modalidade. Em nenhum momento pensamos que as palavras fossem diretamente dirigidas a nós, que nos confessamos e comungamos, na justa prescrição dos requisitos eclesiásticos.

Da minha parte, contei ao sacerdote que estava com idéias de aderir a Allan Kardec. Inquirido sobre se iria me arrepender de apostatar a religião católica, informei o confessor que estava procrastinando as decisões definitivas, uma vez que não tinha certeza mais de nada. Diante da minha postura sincera, pediu-me que eu considerasse a possibilidade de reafirmar os meus votos do batismo e do crisma, que deveria respeitar ao Cristo como salvador da humanidade e a Igreja como legítima representante de Deus entre os homens.

Não reproduzo o diálogo tal qual se deu porque não saberia demonstrar quais sentimentos estavam fundamentando as palavras do clérigo. Quanto às minhas emoções, acreditem, eram as mais serenas e pacíficas, como se estivesse plenamente convicto de agir de forma perfeita, na circunstância.

Claro está que hoje penso diferente. Mas, como estou relatando um período de transição de minhas crenças e de minha religiosidade, sou obrigado a retratar todos os episódios, por mais estranhos possam parecer tanto para católicos, quanto para espíritas.

Durante aqueles dois meses, fizemos questão de comparecer a todas as missas dominicais, fomos também a alguns cultos noturnos, fizemos o “Evangelho no Lar”, lendo a obra de Kardec, e seguimos freqüentando normalmente as aulas sobre mediunidade. Nesse período, posso asseverar, fundiram-se as religiões nas nossas mentes, como se uma não colidisse com a outra em aspectos fundamentais. É que nem estávamos entrosados nas fórmulas científicas e doutrinárias das teorias dos espíritos, como não nos repugnavam as manifestações puramente exteriores da fé simbolizada pelas imagens, velas, turíbulos e demais parafernália católica.

Nesse aspecto de equilíbrio, devo fazer notar um detalhe de grave falha interpretativa de ambas as confissões religiosas e morais: foi o fato de termos comungado algumas vezes sem o alvará dos sacerdotes. Para piorar, houve um dia em que fomos formalmente proibidos de fazê-lo. Não ligamos e dirigimo-nos a outra igreja, onde tomamos a comunhão como se abençoados tivéssemos sido pelo perdão do padre.

Raul, o mais ferrenho defensor das idéias espíritas do nosso grupo familiar, quando soube que estávamos indo também à igreja, uniu-se a nós, trazendo Odete e Maria consigo, mais os filhos e sobrinhos. Quem nos visse seguindo o sacrifício da missa, não imaginaria jamais que, da mesma forma, comparecíamos ao centro espírita para discutir os capítulos de O LIVRO DOS MÉDIUNS.

Não fosse por um tema discutido em particular entre os dois irmãos, cuja repercussão se materializou num debate coletivo na sessão de estudos do centro, encerraria já este capítulo.

Um dia, estando a comentar a morte de Luís, Raul ofereceu uma análise no mínimo curiosa:

— Você sabe que eu me responsabilizo pela morte do mano.

Cansado dessa disposição fatalista, calei-me. Raul prosseguiu:

— Pois sempre que penso na conversa que tivemos aqui mesmo, fazendo exercícios físicos, a respeito de ter ido ao motel, aperta-me o coração, porque deveria ter ficado quieto. Foi por causa disso que ele tomou outro caminho na direção do centro, encontrando a morte.

Eu estava levantando halteres. Parei, imediatamente, e respondi um tanto irritado:

— Você não vai me colocar no imbróglio. Mas não vai mesmo. Eu não tive nada com o desastre. Se for acreditar em você, fui eu quem ouviu o Luís dizendo que ia mudar o itinerário e não fiz nada pra tirar da cabeça dele essa idéia.

— Mas se ele tivesse ido ao motel...

— Aquele antro de perversidade e de imoralidade, onde só existem espíritos malignos, conforme você mesmo disse...

— Mas ele estaria vivo e o padre teria passado ileso, pelo caminho livre.

— Ou teria batido em outro carro e matado não um só mas vários, quem sabe algumas crianças...

Eu argumentava apenas para desviar a atenção dele para longe do sentimento de culpa. Mas Raul insistia:

— Tivesse acontecido o que fosse, o que os olhos não vêem o coração não sente...

— Acho que você regrediu muito em sua crença espírita.

— Como assim? Só porque agora estou especulando sobre o tema e não estou dizendo que os protetores velam sempre, para que os acontecimentos sejam os da programação que se fez em função do grau de adiantamento de cada espírito?

— Não, porque você está sugerindo que era melhor que ele procurasse aquele local desprezível em vez de ir à sagrada casa de recolhimento espiritual e de ajuda aos necessitados.

Nessa altura da conversa, já havíamos encerrado a ginástica e estávamos debaixo dos chuveiros.

Raul fez uma comparação:

— Nós viemos à academia, malhamos e transpiramos, o que nos trouxe para o banho. Era isso que Luís e Maria iriam fazer depois que saíssem do lupanar.

— Você está exagerando duplamente. Primeiro, o motel, apesar de ser um local pra encontros rápidos, também pode ser considerado uma pousada, como um hotel de cinco estrelas.

— Não vou esperar você falar do segundo aspecto. Posso adivinhar pela defesa que está fazendo dessa casa de amor por atacado. Você vai dizer que os protetores vão a todo lugar e que podem bendizer um quarto desse tipo.

— E não podem?

— Claro que não. Você não vê que a intenção das pessoas é notória?

— Mesmo quando se trata de um casal que pode fazer isso em casa?

— E por que não fazem lá? Precisam de ambientes próprios para darem vazão aos seus instintos, à sua libido, à sua luxúria?

Não quis responder de imediato. Na hora da despedida, acrescentei, sem dar tempo de Raul retorquir:

— Segundo, se você não sabe, se Odete não contou, Maria está grávida e só pode ter sido naquela visita às dependências do diabo.

Após aquele dia, tivemos, Raul e eu, ocasião de nos encontrarmos por mais duas vezes, sem que ele fizesse qualquer referência à informação que lhe passara a respeito do sobrinho em gestação. Ele esperou pacientemente a quarta-feira para se manifestar perante o grupo, na sessão de estudos:

— Queridos companheiros, estive em conversa com meu irmão, sobre os ambientes em que atuam com mais vigor os espíritos menos desenvolvidos, mais infelizes e propensos ao cometimento de maldades.

Notei que Raul buscava não ser afetado, apesar de suas qualidades oratórias. Também não estava dando trela às emoções, o que deveria ter sido o seu trabalho íntimo dos derradeiros dias. Em breve, portanto, estava colocando a questão principal:

— Sinto que Joana e Jurandir já não estejam conosco nesta turma, porque poderiam ajudar-nos com sua experiência. Como Rosa não gosta de debater os temas (no que faz muito bem, aliás), vamos ver se chegamos a um ponto crucial de minhas reflexões a respeito do mundo dos espíritos. Acontece que, como deixamos escapar em reunião anterior, Luís e a nossa querida Maria, que vai me perdoar o novo atrevimento desta ríspida recordação...

Maria interveio:

— Você já teve o meu consentimento. Pode falar à vontade.

— Pois bem, a gravidez dela se deu numa concepção realizada num quarto de motel. Eu pensava que ali só espíritos perversos se encontram, conforme li em diversos livros que tratam de casos de confluência, de reunião, de assembléia de espíritos malignos, pouco evoluídos, em logradouros em que a desgraça habita, muito especialmente nas casas de tolerância ou onde os homens praticam atos contra a moralidade ou contra a decência, sem contar naqueles em que são reclusos ou executados os condenados. Para não me estender demasiado, gostaria de ver debatido esse tema, para bem caracterizar se é possível que pessoas de bem possam dignificar os locais em que se encontram, porque não encontro outra explicação para o fato de meu irmão ter gerado ali um filho, uma vez que não entra no meu cérebro que os espíritos não soubessem que ele iria morrer uma semana depois.

Ao contrário do que afirmara Raul, Rosa Maria imediatamente assumiu a direção das discussões, não deixando o tema ficar à deriva das opiniões inseguras de quem não se havia preparado:

— Quando, meus irmãos, encontramos relatos nos livros a respeito desses lugares mal-assombrados, como no caso dos matadouros, aonde vão espíritos vampirescos pra sugarem o sangue dos animais que se abatem, ali também podem estar entidades de maior luminosidade espiritual, porque, como disse o Cristo, o médico vai tratar dos doentes nas casas deles ou onde se encontrem. Vocês se lembram da passagem?

A pergunta me pareceu sintomática de quem dá tempo para os raciocínios alheios. Após configurar a resposta positiva de todos, Rosa continuou:

— Pois bem, quem poderá assegurar-me que estava programada a encarnação de um ser a mais na família de Maria?

Rosa tamborilava sobre o livro que tinha à sua frente, agora no aguardo efetivo de que alguém se manifestasse. Dei-me conta do fato e arrisquei:

— Com certeza, mesmo, apenas se consultarmos os protetores familiares e, ainda assim, com as devidas cautelas.

Rosa provocou o auditório:

— Ou?...

Talvez esperasse alguma outra resposta já engatilhada, mas, perante o silêncio que se estendia, respondeu ela mesma:

— Ou vamos aguardar que a criança nasça, cresça e demonstre a sua natureza, pra saber se se trata de um ser infeliz ou de alguma criatura com elevada missão junto à comunidade. Alguém quer comentar este último aspecto?

Coçava-me a língua para opinar mas Ana antecipou-se:

— Penso que existem muitas entidades necessitadas de voltar ao plano terreno. Sendo assim, sempre que surge uma oportunidade de fecundação de um óvulo, os protetores aproveitam. Não importa onde estejam os pais...

Frederico, meio timidamente, inquiriu:

— Talvez eu esteja falando bobagem, talvez não seja a hora, mas, e se está acontecendo um estupro? Não é verdade que muitas mulheres engravidam nessa situação?

Pareceu-me que Alzira deu com o cotovelo no marido. De qualquer modo, Rosa provocou-a:

— Alzira, por favor, você sabe de alguém que esteja nesse caso?

Meio incomodada, a requisitada não teve como não se pronunciar:

— Minha irmã.

Rosa insistiu:

— E que aconteceu com a criança?

Agitou-se Alzira ainda mais:

— Foi abortada.

Essa era a idéia que mais distante passara pela mente de Maria ou de qualquer de nós da família, porque nos parecia ter havido uma bênção naquela concepção. Entretanto, tive de reconhecer que a observação de Frederico ia bem mais adiante do que as considerações de Raul. Por isso, com certa hesitação, intervim:

— Quem provocou Raul neste assunto fui eu, como ele já disse. Mas não tinha pensado em nada tão grave. Nesse caso, a discussão sai do plano meramente filosófico e doutrinário e cai na realidade social ou psicológica.

Raul ajudou-me:

— Cai no campo do Direito, onde a polêmica, ou melhor, a celeuma se registra entre dar à mãe a liberdade de retirar o feto ou a este de se constituir num ser humano. Não era o meu ponto. Sobre esta situação, eu tenho o que dizer, ou seja, que a sociedade garanta ambos os direitos, porque, se a mãe não quer o filho, ao menos que dê à luz o produto de um crime, pois este pode perfeitamente ser entregue a uma família substituta e se resolvem, por tal meio, os dois problemas de uma só vez. Não parece lógica a solução?

Era um ponto final na intervenção de Frederico. Então, Rosa Maria observou:

— O Espiritismo é contrário à pena de morte, mesmo quando se trata de embriões. Dessa forma, o nosso causídico, isto é, o nosso advogado defendeu sua tese com brilhantismo, mesmo porque não está no poder de ninguém fazer o papel de Deus, que é quem promove a vida e a morte. Quando se dá um assassinato, por exemplo, a vítima sofreu uma violência e podem estar certos de que precisava da lição, quer por sua atuação física, quer por seu desempenho espiritual. Sabem qual é o drama que irá enfrentar?

De novo, a orientadora queria uma resposta concreta. Desta feita, foi Rui quem se aventurou:

— Eu acho que o maior problema desse espírito vai ser o de perdoar o agressor, o assassino.

— Perfeitamente — concordou a instrutora. — E qual vai ser o deste último?

Foi Maria quem respondeu:

— Se não tiver morrido junto, como no caso do padre Aristides, vai ter de pagar o seu ato, depois que tiver tomado consciência de seu crime, com muito sacrifício pro resgate dele, ajudando a todas as pessoas necessitadas que encontrar. Se tiver morrido, como tenho pensado muito, se não cair nas garras dos obsessores, vai sofrer até alcançar o perdão do ofendido.

Odete acrescentou:

— Ou dos ofendidos, porque não se deve perder de vista que há a parentela a sentir a falta da pessoa que desapareceu.

Rosa desejou açambarcar a palavra para encerrar:

— Vejo que os ânimos estão ainda bastante afetados pela tragédia que enfrentamos. E não é só Raul quem se preocupa com a sua participação no episódio. Cada qual está a refletir sobre as modificações que ocorreram em seu modo de vida. Sei que muitos estão indo à igreja, como se lá encontrassem o repouso, a paz, a calma do tempo em que conviviam com o seu querido irmão, esposo e cunhado. Louvo que o façam com o devido respeito pela crença dos que vão em busca de refúgio pras desventuras da vida material. No entanto, até dentro de ambientes consagrados pelos homens em suas seitas religiosas se encontram espíritos obsessores, porque são pra lá conduzidos por pessoas com quem se afinam, com quem combinam, com quem se entendem pelas vibrações. Em casas espíritas, também se encontram pessoas que não se vigiam direito e permitem o acesso de entidades perturbadoras. Por isso é que a doutrina obriga, segundo o ensinamento do Senhor, a que oremos e vigiemos, a que amemos e nos instruamos. Se eu tivesse força pra extrair as preocupações que trazem os confrades pro centro, eu o faria. Mas isso nem os protetores alcançam, sem a colaboração do próprio interessado. Sendo assim, convoco o nosso confrade Raul pra que diga a prece de encerramento, conforme lhe ditar o coração.

Mais tarde, refletindo sobre a atitude de Rosa em oferecer a palavra ao meu irmão, concluí que ela deu a ele a oportunidade de contatar, num ambiente tremendamente protegido, o nosso querido Luís e, talvez, o padre Aristides. Tal idéia me surgiu pela própria oração de Raul:

— Graças vos damos, Senhor, por esta reunião, em que ficou tão claramente demonstrado que os nossos benfeitores espirituais estão presentes! Para que possamos aproveitar ao máximo as intuições que temos recebido, clamamos a vós que não nos desampareis jamais, sustentando-nos os corações atentos para os benefícios do saber e para as vibrações emocionais de tão alto quilate. Rogamos a vós que nos mantenhais unidos nesta fase da existência, para que cresçamos em virtudes, em harmoniosa coerência com os proclamas de Kardec. Facilitai-nos a compreensão dos textos mais complexos e abri as nossas mentes para percebermos toda a extensão da grandeza dos trabalhos que se realizam nesta casa de benemerência espiritual. Sabemos que os nossos queridos parentes e amigos desencarnados estão conosco o tempo todo. O que vos pedimos é que o nosso irmão Luís e o Padre Aristides possam encontrar-se e abraçar-se o quanto antes, para que não cresçam os ódios nem as dissensões. Eis que estamos também confessando, nestas tertúlias, os nossos pecados, as nossas falhas, as nossas más intenções. Não estamos na Igreja Católica, portanto, não temos nenhum sacerdote a oferecer a bênção do vosso perdão. Mas a nossa fé, a nossa esperança e a nossa confiança nas palavras de Jesus nos permitem assegurar-nos de que estamos recebendo a graça da melhor penitência, para que possamos comungar comunitariamente nas tarefas de mútuo amparo e nas de assistência aos que nos pedem ajuda. Permiti-nos solicitar aos espíritos irmãos que orem por nós, agora e na hora da nossa morte, porque sabemos que reúnem méritos para nos proporcionarem aquela paz, aquela tranqüilidade, aquele equilíbrio sentimental mais adequados para que aprendamos a agir conforme os ditames dos Evangelhos. Assim seja. Amém, Jesus!

Após a prece, Rosa Maria determinou-nos a leitura de mais um capítulo de O LIVRO DOS MÉDIUNS e, como de costume, ficamos aguardando que o outro grupo terminasse. Foi quando observei que Alzira conversava muito animadamente com a nossa orientadora e com Frederico. Rosa fazia gestos como quem pede calma e ponderação, enquanto a outra acenava positivamente com a cabeça.

Raul confabulava com Odete e Maria. Suspeitei que eles estavam discutindo a indiscrição do caso do motel e da gravidez.

Ana se mantinha junto a mim, dando-me o braço, como a solicitar uma escora psíquica para algum problema que houvesse criado durante as discussões e que não quis ver na pauta do dia.

Rui e Valéria despediram-se e se retiraram.

Quando a porta da sala abriu, notamos que Joana e Jurandir estavam em animada conversação. Raspace e Rodolfo vinham juntos e os demais se dispersaram, não demorando para que todos nós saíssemos, dessa feita dirigindo-nos diretamente para a casa de Maria, onde a largamos, indo depois para a de Raul. Ao contrário do que fazíamos habitualmente, ficamos calados o tempo todo, sob o impacto, talvez, dos temas da reunião.

Descemos para um café e já me aprontava para apanhar o meu carro, quando Raul se dispôs a discorrer sobre um ponto da reunião:

— Não sei se vocês repararam, mas a minha prece, eu não seria capaz de repetir.

A isso, logo fui observando:

— Não se perca por tão pouco. Eu posso lhe dar as minhas anotações, onde a oração está transcrita quase literalmente.

— Meu caro, o que eu quero dizer é que as minhas palavras foram espontâneas, como se brotassem diretamente do fundo do coração. O que estou tentando informar é que, à medida que ia compondo a rogativa, ia também pensando que estamos sendo falsos ao ir aos dois centros religiosos, com um procedimento para cada lugar, como se fôssemos pessoas com dupla personalidade. Quando eu pedi ao Senhor que nos enviasse espíritos de luz para a nossa orientação, estava, permitam-me o latinismo, “ipso facto”, achando que a razão doutrinária mais perfeita se encontra no Espiritismo. O que eu gostaria de dizer, finalmente, para não perder o embalo desta pregação, é que vocês devem pensar seriamente em abandonar esta dualidade de atitudes, que nos serviu para superar o transe do passamento de Luís mas que agora deve ser refletida e posta no lugar.

Ana me apertava a mão, como a me pedir que não dissesse nada em caráter definitivo. Imaginei que ela tinha algum dado que me faltava e resguardei-me, dizendo, simplesmente:

— Gostei muito de sua participação, tanto que fiz questão de ir anotando tudo, como se fosse escrever a ata da reunião. Vocês sabiam que, antigamente, os centros espíritas registravam todas as sessões, em livros próprios?

Foi Odete quem acrescentou:

— Pois, se você não sabe, ainda hoje existem muitos que conservam o velho costume, pelo menos quanto a registrar os eventos principais, pros históricos do final do ano.

Ana aproveitou a deixa para propor:

— Raul está certo em alertar pra dificuldade de conciliar as religiões. Está certo também em pedir que todos pensem no assunto. Vamos marcar um dia pra resolver de vez. Eu aviso a Maria, pois acho que, sem ela, nada pode ser decidido.

À vista de novo aperto de mão, encerrei o dia:

— Pessoal, se estão de acordo, vamos deixar pro sábado de manhã. Vocês vão almoçar lá em casa e a gente vê o que é melhor pra todos. Não se esqueçam que amanhã levantamos bem cedo.

Assim que nos vimos no carro, Ana explicou-me:

— Não foi sem motivo que eu não quis participar da conversa daqueles três depois da reunião. Maria está querendo voltar “de mala e cuia” pro Catolicismo. Acho que está sofrendo alguma pressão dos padres. Você sabia que Raul está às voltas com a representação dela junto à Justiça, tentando uma indenização?

Para mim não era novidade. Apenas não sabia que se tratava de algo muito sério. Foi o que tentei demonstrar a Ana:

— Sempre que acontece um desastre automobilístico com vítima, abre-se um inquérito policial. Não é verdade que Maria precisou fazer um exame de corpo de delito, no Instituto de Medicina Legal? Pois o Promotor Público vai querer saber se a vítima, no caso Maria, vai formalizar a queixa, mediante o que está descrito no boletim de ocorrências. Foi o que Raul me explicou.

Mas Ana Paula sabia algo mais:

— A cúpula da diocese não quer que haja escândalo, por isso está falando em acordo.

— Por que você não me disse isso antes?

— Só fiquei sabendo lá no centro, antes de entrarmos na sala.

— Então, as coisas estão tomando novos rumos.

— Eu acho que não. Tudo o que ouvimos no centro vem pra favorecer um perdão irrestrito por parte dela, tanto que está muito condoída também com a morte do Aristides.

— Alguém está fazendo a cabeça dela.

— Se não for alguém vivo, é alguém dentre os mortos.

— Será que Luís já está de mãos dadas com o seu...

Ia dizer “assassino” mas Ana Paula correu para me impedir:

— Não diga nada ofensivo. Foi um acidente. Ou você acha que Aristides queria matar Luís?

Fiquei com grandes olhos a admirar a lógica sentimental da minha consorte, que continuou:

— A verdade é que Maria está abalada, principalmente depois que soube da gravidez. Ela está achando que os anjos do Senhor é que velavam e não confia muito em protetores na forma de espíritos de gente que morreu.

Tentei justificá-la:

— Maria é quem tem estudado menos a teoria espírita. Não se esqueça de que Luís não dava margem a muitas conversas a respeito.

— A causa não tem muita importância. A conseqüência é que pode ser desastrosa.

— Ou seja...

— Se ela não voltar conosco ao centro, vai ficar sozinha com os padres.

— Sozinha, propriamente dito, não, porque ela tem as irmãs carolas.

— Mais uma razão pra se bandear de vez pro outro lado.

— Paciência!

Eu tentava compreender a aflição de Ana, ela, porém, não escondeu nada:

— Se ela quiser ir pro paganismo ou pro materialismo, não será a mesma coisa. Mas, de qualquer jeito, mais tarde, iremos ter muito trabalho em reconvertê-la pra verdadeira doutrina.

Virei-me para o outro lado, dando as costas à minha mulher, apaguei a luz do abajur e, abrindo a boca de sono, repeti:

— Paciência, querida! Paciência!

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui