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Erotico-->11. O DIA DA REUNIÃO -- 03/07/2003 - 08:50 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A quarta-feira amanheceu com o céu encoberto. Ameaçava chover. Para quem tem negócios como o meu, tais dias são dedicados às tarefas internas, como organização do armazém, verificação de estoque, avaliação contábil, reunião com o pessoal ou observações pessoais quanto ao desempenho dos funcionários.

Realmente, antes das oito, começaram as bátegas, prometendo o dia ser todo molhado.

Foi assim que não tive ensejo de pensar muito no Espiritismo, apesar de me surpreender, algumas vezes, sonhando com algum tema filosófico ou religioso, ainda sob as impressões do texto lido na companhia de Ana. Outras vezes, me lembrava do Lucas, sentadinho no seu cadeirão, olhando para nós como a nos interrogar sobre aquela novidade caseira. Como dávamos atenção a ele e aos brinquedos que manuseava, não nos perturbou nenhuma vez.

“Será que, se ficarmos mais de meia hora estudando, ele não vai se cansar?”

Fiz-me a pergunta enquanto comia, solitário, a minha salada mista, da qual não provei o presunto, que pus noutro prato. A água mineral sem gás pareceu-me deliciosamente gelada e o mamão caiu refrescante no meu estômago, na hora da sobremesa. Achei, depois de tudo, que fizera mal em não pedir nenhum prato quente e me determinei, para a próxima quarta-feira, a ir comer um bife de soja com molho de tomate no restaurante macrobiótico.

Foi quando notei que os meus pensamentos se enfronhavam nos menores gestos, como a refletir como é que um espírita autêntico reagiria em cada situação particular da vida. Pensei em Kardec antes de codificar o Espiritismo. Como é que se portava em relação ao pensamento religioso? Ia à igreja? Que Igreja? Ouvira Raul dizer que “a carne nutre a carne”, segundo o ensinamento dos espíritos. Por que é que eu, que tanto me regalava com os meus galetos, punha de lado umas simples fatias de presunto? Se Jesus se sentasse à mesa ao lado, partiria o pão e serviria o vinho? Conhecia os Evangelhos a ponto de me lembrar de que Jesus é citado comendo um naco de peixe. Lembrei-me de Aristides brincando, dizendo que Jesus tinha comido o peixe depois de morto, “ele e o peixe”, fazendo referência ao fato de o episódio ter acontecido depois da ressurreição do Senhor.

Mas as minhas meditações não progrediram, porque não tinha como subsidiar as respostas. Fácil era realizar as perguntas.

“Pobre coitada da Rosa Maria, que vai ter de se virar com as minhas questões.”

À tarde, a chuva aumentou e pude prever problemas no trânsito. O caminho de casa para o centro vinha no refluxo do “rush”, de sorte que não enfrentaria congestionamentos. O que me preocupou foi a ida até em casa. Sendo assim, para evitar conturbações de última hora, liguei para o Raul e para o Luís, avisando-os do meu pressentimento, rogando-lhes para que saíssem com folga do trabalho e de casa. Adverti também a Ana, para que providenciasse tudo com antecedência.

Às cinco horas, saí, deixando com os responsáveis pelas diferentes seções a tarefa de encerrar o expediente.

Realmente, o trajeto estava tumultuado, havendo pontos críticos de inundação. Contudo, apesar de lento, os veículos avançavam, de modo que, às seis e meia, estacionei em frente de casa.

Dali liguei novamente para meus irmãos, mas não contatei nenhum dos dois, com certeza presos nas ruas engarrafadas. Percebi a falta que fazia um telefone no centro, porque ficaria sabendo se seria ou não adiada a reunião. Hoje, a telefonia celular resolve o problema, porém, naquela época, esse recurso tecnológico não existia no Brasil.

Às quinze para as sete, estávamos, Ana e eu, a caminho do “Coração Amoroso de Jesus”, aonde chegamos sem transtornos, às sete e quinze. As portas estavam fechadas e não notamos nenhum movimento externo. Permanecemos, pois, no carro, conversando a respeito dos últimos acontecimentos, apenas no sentido de jogar conversa fora. O que nos valia era a sensação de que a noite estaria perdida, porque era bem possível que as pessoas não chegassem. Foram quinze minutos de expectativa.

Num relato que pretende abranger vários anos de atividades, pode parecer completamente incongruente, impróprio, incompatível, que esteja a descrever simples quinze minutos de vazio. Mas há momentos inesquecíveis e esses foram muito significativos para a minha ânsia absolutamente incompreensível do que estava fazendo parado, no meio da rua, à espera de pessoas que, até bem pouco tempo, nada representavam para mim nem para minha esposa.

Mas chegou Raspace acompanhado de Rosa Maria e de Rodolfo. Fomos recepcionados ainda no carro e convidados a entrar. Logo foram chegando as outras pessoas, Raul e Odete, inclusive, de maneira que, exatamente no horário combinado das sete e quarenta e cinco, estávamos todos, com exceção de quem? Do Luís, naturalmente.; e também da Maria.

Frederico veio cumprimentar-me efusivo, trazendo a tiracolo a mulher, Dona Alzira, morena de tez bem escura, com leves traços da raça negra. Quando jovem, deveria ter entortado a cabeça do peão.

Desta vez, não havendo nenhum novato, Rosa Maria assumiu o comando desde o início, solicitando ao Jurandir que efetuasse a prece de abertura.

Não sabendo se era hábito nos centros espíritas, estranhei o fato de amainarem a luminosidade. Mas, diferentemente das outras vezes, estava bem mais alerta, com a mente desanuviada, descansado e atento, pronto para desfechar as questões que trazia na ponta da língua.

Rosa Maria reacendeu as lâmpadas e abriu a sessão:

— Vamos dar oportunidade a que quem não falou da última vez que inicie os assuntos de seu interesse. Com a palavra o Senhor Rui ou a sua esposa, Dona Valéria. Quem queira começar. Digam por que vieram procurar o centro, ou seja, qual o interesse de vocês no Espiritismo.

Rui e Valéria constituíam o outro casal que comparecia pela terceira vez. Foi o marido quem, mais desenvolto do que fazia supor sua quietude da sessão anterior, esclareceu:

— Há cerca de seis meses, perdemos um filho de vinte e dois anos, num acidente de trânsito. Estava num racha e bateu de encontro a um poste. Morreu na hora. Nós éramos cristãos, vamos dizer assim, porque vínhamos freqüentando os templos evangélicos, nunca satisfeitos com este ou aquele. Quando aconteceu o acidente, se é que podemos dizer que foi acidente, o pastor nos responsabilizou pela falta de educação do rapaz. Tivemos de abaixar a cabeça e reconhecer que foi isso mesmo o que aconteceu. Um amigo nosso, que ouviu o sermão, não gostou da atitude dele e nos aconselhou que procurássemos outras explicações, porque o nosso filho era maior de idade, brasileiro, vacinado e dono do próprio nariz, desde os quinze anos de idade, quando assumiu a independência de quem ganha o próprio sustento. Um colega de serviço nos emprestou um livro de relatos de casos parecidos de jovens desencarnados, escritos pelo Chico, com nome, sobrenome e endereço das pessoas. Então, quisemos vir comprovar se existe essa possibilidade de conversar com os espíritos, o que é completamente proibido na nossa religião, onde se fala que é o demônio que vem enganar as pessoas. Não foi só uma vez que vimos os pastores “amarrando” as pessoas tomadas pelo maligno, em nome de Jesus. Mas os casos do Chico eram muito diferentes, por isso, cá estamos, sem saber direito o que pensar, porque nos disseram pra “ficarmos na nossa”, por uns tempos, ouvindo as aulas. Posso ser franco? Até agora não estamos vendo nada muito diferente, porque, lá no templo, as pessoas eram convidadas a dar os seus testemunhos, contando os seus problemas, do mesmo jeito que aqui.

Talvez para atenuar a crítica do marido, Valéria tomou a palavra:

— Não pensem, pelo amor de Deus, que estamos querendo falar com o Diogo. Não é isso o que nos traz a este posto. Estamos querendo saber se é possível que o espírito dele tenha completado o curso de sua estada na Terra ou se a gente pode entender a sua morte como uma fatalidade do destino.

Passou pela minha mente, como deve ter passado pelas de todos, que, na verdade, eles estavam querendo aliviar a sobrecarga da acusação de desleixo.

“Como fazer que vejam claramente essa intenção, sem magoar nenhum dos dois?” — era a pergunta que me estava fazendo, quando Rosa voltou às discussões:

— Pelas leituras de vocês, quem gostaria de falar a respeito do provável estado do Diogo, seis meses após o desastre?

Houve um silêncio que confirmava as minhas suspeitas. Mas Rosa não passou adiante nem se empenhou na proposta. Ficou aguardando o pronunciamento da turma.

O mais afoito, sem dúvida, era o Jurandir, mas, dessa vez, foi Joana quem falou:

— Quanto ao grau de adiantamento do seu filho, nada posso dizer, porque não conheci o rapaz. Parece-me, entretanto, que ele não estava tentando fazer nada pra contrariar ou ofender os pais. Pensando pelas minhas atitudes e as de meus irmãos, essa mania de deixar os pais tristes, com a consciência pesada, é dos mais novos, dos adolescentes, ainda quando muito pressionados. Pra tirar mais conclusões, é preciso saber se vocês brigavam muito com ele.

A pergunta devolvia à exposição dos interessados o centro de interesse dos debates, contudo, Rosa não acatou a intervenção e renovou a instigação que fizera ao grupo:

— Não vamos ficar remoendo os fatos, senão a gente acaba dando mais importância pra vida terrena, quando o nosso fim é o de levar ao entendimento dos conceitos da doutrina dos espíritos. Sendo assim, acho muito mais eficaz que alguém comente a observação a respeito da “fatalidade do destino” mencionada por Dona Valéria.

Olhei para Raul, a ver se o advogado estava propenso a se estender sobre o tema. Ele, no entanto, estava cabisbaixo, riscando uma folha em que pude notar que se encontravam algumas anotações. Dei a volta, a partir dele, que estava ao meu lado, e pude ver que ninguém estava verdadeiramente confiante para desenvolver aquele aspecto doutrinário.

Como o silêncio ameaçava estender-se, arrisquei uma simples observação:

— Eu acho (se alguém não estiver de acordo que diga) que os pais que perdem seus filhos em desastres, onde a imprudência foi o maior fator, devem ficar atentos pras respostas do tipo mais penoso. Pelo que li em Kardec (devo dizer que li muito pouco), a morte dos filhos, por agredir de qualquer forma os pais, deve ser vista como um sofrimento a ser compreendido, porque está nas leis de Deus fazer que as pessoas tenham de passar por esses momentos de dor pra resgate de antigos desajustes.

Falei com o coração a sair pela boca, temeroso justamente de magoar os dois companheiros, mas embalado pela sensação íntima de que eles queriam ouvir algo de mais substancioso a respeito de sua tragédia pessoal.

Todos os olhares se voltaram para mim com certa expectativa. Até Raul suspendeu os rabiscos para me fitar. Fiquei envergonhado, tanto que, mais tarde, Ana me contou que o meu rosto se coloriu de vermelho. Hoje, a lembrança do fato me aperta o coração por haver sido um tanto rude, um tanto cru, mas foi através de lances desse naipe que vim desenvolvendo os meus recursos no campo das idéias espíritas.

Para evitar o constrangimento geral, imediatamente, Rosa Maria perguntou:

— Quem sabe definir a diferença entre a interpretação do pastor, que responsabilizou os pais, com a do Espiritismo, que afirma que eles, por alguma razão anterior e desconhecida, tinham de passar por semelhante transe?

Eu mesmo me atreveria a responder, não se houvesse Joana antecipado:

— Meus irmãos, se alguém acusar o amigo Cláudio, que falou com tanto medo a respeito da tese espírita, deve fazer valer o fato de ser muito novo nos estudos. Eu mesmo, quando vivo, enganei-me freqüentemente ao interpretar os ensinamentos de Kardec, sem entender direito nem as parábolas de Jesus. Se o padre insiste em atribuir aos pais parte da culpa, tem por objetivo excluir, talvez, o conceito perverso de que o rapaz tivesse tido um impulso suicida inconsciente. Pode, desse modo, rezar pela alma do filho e levar os pais ao confessionário, para o perdão que acredita piamente ser capaz de dar em nome de Deus. O colega de turma, ao referir-se a possíveis dívidas desde outras encarnações entre os parentes, está aplicando com rigor o princípio da lei maior, qual seja, o de que cabe às pessoas amar a Deus, em primeiro lugar, e aos semelhantes, em seguida. Quando Rui e Valéria estabeleceram o roteiro de sua vida, admitiram no círculo familiar aquela personagem que se revelou rebelde. Com que fito? Naturalmente o de educar, através dos cuidados da criação e da formação de caráter. Por que razão? Por amor ao Pai, segundo os deveres de uns para com os outros. Estão tristes por terem perdido a criatura originada de seu próprio sangue? Por certo. Julgam que cumpriram o seu dever? Sem dúvida. Devem achar que iriam sofrer tão grande desdita? Pelo que disse o companheiro espírita, sim, porque o orbe terráqueo agasalha espíritos de baixa categoria, no divino intuito de aperfeiçoamento. Ora, as luzes nos chegam quer pelo amor, quer pela dor, que são os dois prismas mais adequados de se observar o gênero humano enquanto necessitado de aprendizado. Sendo assim, a teoria enunciada de modo um tanto tímido pelo amigo Cláudio significa, na realidade, que existe um compartilhamento universal entre as pessoas em função de que todos os encarnados passam pelo mesmo crivo da razão e da emoção, solidarizando-se, portanto, na assistência que se devem uns aos outros. Leio no coração de todos que houve muita rudeza nos termos em que foi colocada a lei do carma ou da necessidade de resgate de débitos anteriores, contudo vocês precisam perdoar a maneira como ele disse, concentrando-se no seu intento de auxiliar, que é o que verdadeiramente importa. Talvez esteja eu agora ferindo uma das regras da reunião, mas achei que era muito oportuno o momento para inserir, no bloco dos temas em discussão, o valor das meditações provindas dos benfeitores individuais, como ainda para que tenham, de modo vívido, um exemplo de comunicação mediúnica espontânea. Meu nome não importa, mas podem referir-se a mim como Diogo.

Todos entendemos perfeitamente o recado mas era visível o espanto de cada um, a começar pela própria Joana, que não sabia onde esconder o olhar lacrimejado.

Rosa Maria estava um pouco atônita, porém, manteve-se calma e ganhou tempo, propondo ao grupo:

— Quem tem dúvidas a respeito de termos ouvido uma real mensagem do etéreo deve guardar silêncio e permitir aos que acreditam “piamente” em que Joana deu curso à palavra que ouviu de seu orientador espiritual que façam algum comentário positivo.

Ficou-me evidente que a monitora do grupo não desejava polemizar. No entanto, foi impossível conter o arrebatamento do casal. Em lágrimas, Valéria asseverou:

— Tenho a certeza de que ouvimos o meu próprio Diogo falando. Vocês não precisam mais discutir em que ponto evolutivo se encontra. Acho que está muito bem e que veio mostrar pra nós que a vida deve ser aceita com todos os desastres e tragédias e que a gente tem de fazer sempre o bem, apesar de parecer que Deus está sendo injusto. Nós é que não compreendemos como é que o Senhor escreve direito nas linhas tortas.

Rui acrescentou:

— Enquanto ele falava, eu ia me lembrando das expressões que o meu filho usava e muitas eram essas mesmas.

Nesse momento, quando ia no auge o sentimento de todos, apontou Rodolfo, fazendo um sinal para Rosa e chamando por Raul:

— Doutor, por favor, quer sair um instante?

Instintivamente, meu coração se encheu de maus pressentimentos, vendo na minha frente o quadro do acidente do Diogo, carro contra o poste, mas trocando a personagem por meu irmão Luís.

Dez segundos depois, retornou Raul e foi logo dirigindo-se a Rosa:

— Precisamos sair porque meu irmão Luís sofreu um acidente. Está no hospital e sua mulher também. Parece que estão bem mas o recado é que precisamos ir pra lá. Com licença.

Do lado de fora, encontramos os policiais que vieram avisar sobre a ocorrência. Dispuseram-se a levar-nos, porém, dispensamos os guardas, solicitando-lhes apenas que nos indicassem em que hospital estavam os acidentados.

Em meia hora, indo bem devagar por causa do trânsito, chegávamos ao Hospital do Bom Samaritano, com que mantínhamos convênios médicos.

Localizamos Luís na enfermaria. Antes de entrarmos, o médico de plantão nos avisou:

— O seu irmão tem um hematoma na cabeça. Mas não se impressionem com a inflamação, porque as radiografias não revelaram fratura. Ele tem de ficar sob observação durante, no mínimo, oito horas. O trabalho de vocês vai ser manter o paciente acordado. Quanto à esposa, teve um corte profundo no rosto e está passando por cirurgia de restauro epidérmico, para não ficar nenhuma cicatriz. Quanto a fraturas, nada foi revelado pelos raios X. Ela também, após a operação, vai ter de ficar acordada pelas mesmas oito horas. Fiquem tranqüilos que ninguém está correndo risco de vida.

Raul quis saber das outras pessoas envolvidas no acidente, porém, o médico soube informar apenas que não tinham sido levadas para aquele hospital.

Encontramos Luís animado:

— Bons olhos os vejam! Que bom que vocês vieram!

Raul obstou qualquer manifestação descontraída:

— A sua mulher está sendo operada e você com gracinhas...

Luís não deu sinais de desesperança:

— Ela está sendo tratada por especialistas. Talvez fique com a marca no rosto, mas terá do que falar com as amigas.

Novamente, Raul se impacientou:

— Por que você está dizendo isso? Qual foi sua responsabilidade no acidente? Parece que o culpado foi o outro.

— Quer mesmo saber?

— Claro que quero!

— Pois estou rindo pra não chorar. A gente toma todo cuidado do mundo e vem um imbecil e abalroa o veículo que está na preferencial.

— Você não estava na avenida.

— Eu falei pro Cláudio que ia pegar outra via pra não passar na frente do motel...

Eu interferi:

— Não precisava ser tão ao pé da letra.

— Na verdade, não foi por essa razão. É que estava um tanto atrasado e tentei umas ruas menos cheias. Parece que não fui só eu.

Raul, talvez achando que a conversa não tinha nenhum objetivo, quis pôr as coisas nos devidos lugares:

— Como vocês vieram parar aqui?

— O resgate da polícia nos trouxe. Aliás, meu caro advogado, é bom você ir atrás do boletim de ocorrência, que eu vou precisar pro seguro. A Delegacia é a do bairro.

— Eu sei onde fica, esclareceu Raul. Mas essa providência é muito cedo ainda para ser tomada. Pegaram o nome do responsável?

— O carro dele ficou pior do que o meu. Ele não está no hospital?

Tentei participar da conversa:

— Nem todo o mundo mantém convênios médicos.

Luís observou:

— A considerar o fato de que o carro dele é do ano, deve ser alguém de certa posse.

Visivelmente insatisfeito com o rumo da conversação, Raul encerrou sua participação:

— Vou atrás de notícias a respeito do sujeito, de como está, se a descrição foi correta etc. Fique com o Cláudio. Você sabe que não pode dormir?

— E por que você acha que estou esticando os assuntos?

— Até logo. Não vou voltar sem novidades.

Assim que Raul se retirou, Luís perguntou:

— Que está havendo com ele?

— Está aborrecido desde que não viu vocês no centro. Deve ter pensado que iam falhar de novo. Depois, com certeza, imaginou-se culpado pelo acidente, porque estavam indo justamente pro lugar que ele tanto insistiu. Até parece que você está com espíritos obsessores impedindo de aproximar de lá.

Luís demorou um pouco para responder. Enfim, disse:

— Você acredita mesmo no que está falando?

Aí, quem precisou pensar bastante fui eu. Mas esclareci:

— O seu acidente interrompeu uma reunião que me pareceu muito instrutiva. Sabe que baixou uma entidade pra comentar justamente a respeito de um caso de morte na via pública?

— Alguém pensou em mim e agourou o mesmo destino.

— Pode brincar à vontade. Acontece que, naquela altura, o seu acidente já devia ter acontecido.

— Então, foi um aviso.

Estava imaginando uma resposta séria, doutrinária, pelos postulados que já conhecia, quando me inteirei de que o Luís estava apenas a gracejar, sem interesse nenhum nas explicações. Mudei de rumo:

— Vou propor um tema pra você pensar a respeito e me ajudar a entender um ponto muito duvidoso. Depois que o espírito deu a comunicação, os pais acharam que era ele mesmo o filho perdido, porque a moça que serviu de médium falou que a gente podia chamar “ele” de Diogo, que era o nome do desastrado.

— Eu acho que ela sabia o nome do rapaz.

— Ela sabia. Mas a minha questão é outra. Preste atenção. O espírito, que se disse benfeitor da família, revelou que, em vida, lera os livros de Allan Kardec e os Evangelhos. Eu não creio que o rapaz que morreu tivesse essas leituras. Como é que os pais acharam que era o filho quem estava falando conosco? E tem mais. As palavras demonstraram que se trata de alguém muito ponderado, porque perdoou o pastor que havia acusado os pais pelo insucesso da educação do filho, como também ajudou a gente a respeitar a minha dureza...

Foram precisos quarenta minutos para pôr o meu irmão a par de tudo o que se passou na reunião. Por incrível que pareça, ele ficou absorto, cismando sobre cada palavra que eu lhe dizia. Não chegamos, porém, a nenhum resultado diferente da conclusão mais óbvia para quem não possui domínio sobre todos os fios do enredo:

— Sabe, Cláudio, acho que os pais estão procurando a muleta religiosa que vai ajudar “eles” a caminhar daqui pra frente, porque perder um filho não é “mole”.

Concordei e acrescentei:

— É precisamente como penso. Acho também que eles não vão voltar mais ao centro, pois a saída pro “testemunho” foi o elemento que faltava pra eles se conformarem com a justiça de Deus, tanto que a mulher logo foi falando que Deus escreve direito por linhas tortas.

— Frase feita e engatilhada pra ocasião.

Foi quando voltou Raul, com novidades:

— Sabem qual é o nome do “cara”...

— “Cara”?! — estranhei a linguagem do advogado. Mas ele prosseguiu, sem “dar a mínima”:

— Aldo Frontier de Sousa.

Luís e eu traduzimos, espantados:

— O Padre Aristides?!...

— Ele mesmo.

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