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Erotico-->10. UMA SEMANA DE REFLEXÕES -- 02/07/2003 - 06:59 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Desde o momento em que me desloquei para o trabalho, ia como que nas nuvens, tantas eram as impressões fugidias que perpassavam pela minha imaginação. Contrariamente ao meu modo habitual de pensar positivo sobre todos os fatos da vida, agora se delineavam instantes da mais pura fantasia.

Comecei a ler os livros que Ana me passou e me pus também a refletir sobre alguns tópicos de O LIVRO DOS MÉDIUNS. Nunca tendo sido um bom leitor, avançava lentamente, procurando entender cada pequenino trecho. As idéias que me foram suscitadas pelas desventuras de “André Luiz” na escuridão do báratro (ou do tártaro) eram muito amargosas, porque me punham de sobreaviso quanto a eu mesmo ter passado por situações semelhantes.

A vida, sendo a resultante da necessidade de aperfeiçoamento ou de resgate de débitos, ganhava novos padrões morais, porque suas raízes penetravam num terreno absolutamente desconhecido. Era então que me dava o direito de aprofundar as conjeturas, rememorando quanto conhecimento se instalara no cérebro relativo aos problemas das regressões às vidas passadas.

Não preciso dizer que me vi em cada fase da humanidade, em encarnações de graves perversidades até o momento do Romantismo, quando me imaginei poeta tremendamente enamorado e perdidamente doente, pondo fim à vida, por não alcançar a felicidade de me ver correspondido pela minha amada, que não era outra senão a própria Ana Paula, a quem fiquei devendo um relacionamento mais completo e mais compensador.

Cito o fato para demonstrar que, de algum modo, as confissões dela repercutiam negativamente, porque não me punha em absoluto satisfeito com o fato de ter sido passado para trás naquela conjuntura religiosa da Igreja Católica. Não sabendo a quem acusar pessoal e diretamente, punha muito da responsabilidade sobre a minha própria ignorância, apelando para os mecanismos cambaios de meu tardo vislumbrar da realidade psicológica, tanto de Ana, quanto minha.

Mas fui adentrando o enredo de NOSSO LAR, quando pude analisar os contornos psíquicos das personagens, não tanto do pobre sofredor que narra, mas dos instrutores, dos assistidos e dos desvalidos. Pude ver claramente que os espíritos agem em consonância com princípios morais rigorosos, através das estrias deixadas pelos procedimentos degenerados nos perispíritos, cuja natureza precisei discutir com o Raimundo, espécie de cicerone que me servia quando em dúvida quanto aos termos técnicos. De resto, aproveitei-me do glossário ao final de O LIVRO DOS MÉDIUNS, lamentando que Kardec não tenha sido mais completo ou mais extenso.

O CONSOLADOR, de “Emmanuel”, me fez pensar seriamente em que os amigos da espiritualidade continuavam a fornecer respostas específicas aos problemas humanos levantados pelos companheiros do médium Francisco Cândido Xavier, justamente como fizeram em relação aos questionários de Kardec. Era um oásis de tranqüilidade a sua leitura, porque não me abria a mente para as configurações imaginosas. Antes, a disposição científica das questões me dava a certeza de que existiam sábios a acompanhar o desenvolvimento da tecnologia e da pesquisa no âmbito terreno, apesar de se caracterizar plenamente o aspecto da ascendência do informante, como se os esclarecimentos fossem de pontos absolutamente elementares.

Mas me satisfaziam os textos, em seu tríplice aspecto: físico, intelectual e emocional, trazendo conceitos e conhecimentos novos para o meu parco cabedal. Era um mundo aonde adentrava com respeito e desejoso de aprender. Nesse sentido, punha-me prevenido quanto às informações que obtivera da religião católica, mantendo-me de espírito aberto para posteriores leituras, sabendo que havia outras obras importantes, sobre temas cujos desenvolvimentos não me era lícito argüir-me de ignorante, porque estava mal-e-mal iniciando os estudos.

Foi nessa semana de distúrbios entre as novas e velhas concepções que plantei a sementinha desta narrativa, porque julguei ter sido muito importante para mim o convencimento que me impus a partir da perseguição doutrinária espírita que empreendi. Se não fosse isso, não teria agora condições de levar avante este projeto, porque foi quando tomei a iniciativa de ir anotando os acontecimentos mais relevantes, os pensamentos mais agudos e os sentimentos mais complexos. A intenção não era a de escrever um romance mas de elaborar um diário de bordo ou algo semelhante. Vejo agora que existe um manancial muito fértil de intuições e de meditações a serem transladadas para o papel, a servir de apoio para muitos companheiros espíritas com responsabilidade junto aos que buscam os centros pela primeira vez, como ainda para quantos, ansiando por encontrar alguma orientação psicológica, estejam temerosos de adentrar o misterioso ambiente dos ensinos kardecianos.

Estou dando um salto para o presente, a fim de dispor como roteiro ao leitor o que deveria ter inscrito sob o rótulo de “prefácio”. Perdoe-me a falta de jeito e a ousadia da novidade e prossiga lendo a respeito do que me aconteceu durante aquela semana.

Disse que estava lendo e que tinha o auxílio do “Seu” Raimundo. Deve estar na mente do leitor que eu não poderia deixar de comentar os textos com Ana Paula ou com os meus irmãos e cunhadas, em nossos encontros costumeiros. Vou, pois, reproduzir alguns trechos de conversas que me parecem significativas, para que se entenda a minha disposição psicológica de então.



Com Ana:

— Você está lembrada de como “Emmanuel” abriu O CONSOLADOR?

Ela olhou para mim tentando compreender aonde eu queria chegar. Interpretando o olhar como de aguardo da reprodução do texto, recompus, mais ou menos, os termos da primeira resposta do autor espiritual:

— Ele diz que a ciência humana, se não se orientar pelo Espiritismo, poderá dar vazão apenas aos sentimentos mais vis e perversos dos homens, concorrendo pra tirania e pra destruição, em clara referência aos artefatos de guerra. É como se a gente, no depósito, apenas vendesse material de segunda ou deteriorado. Como é que as construções iriam ficar de pé?!... Aí eu me lembrei de que os padres abençoavam, em nome de Deus, todas as tropas que partiam pras batalhas. Não foi o que vimos em vários filmes de guerra? De que valiam as confissões dos soldados, se a missão deles era a de matar, justificando-se pelo dever patriótico de defesa das nações?!...

— Não entendi a relação entre uma coisa e outra.

— De fato, está confuso. Vou tentar explicar. Existe ou não existe uma obrigação das pessoas em relação às comunidades em que vivem? Claro que existe. Se a pátria se vê na necessidade de se defender da agressão de um país que deseja invadi-la, tem o direito, ou melhor, o dever de expulsar os inimigos pela força. Claro está que sempre houve um tempo anterior de negociações, de comércio, de diplomacia etc. Nesse ponto é que constato a maior falha humana. Se tivesse havido verdadeiro cristianismo, se as partes tivessem agido sob a luz dos ensinamentos do Cristo, teriam perdoado todas as injúrias, buscando um termo de acomodação, pra não chegarem às vias de fato.

Ana queria as coisas no concreto:

— Você nunca brigou na vida? Nunca bateu ou apanhou?

— Quando criança e uma vez depois de crescido. Quero dizer que estava imaturo...

Ela me interrompeu e encerrou o papo filosófico:

— Pois a humanidade, pelo que tenho lido em Kardec, pelas informações dos espíritos, está na sua infância. Até que todos possam agir em concordância com as lições evangélicas, muita água vai rolar debaixo da ponte, principalmente se pensarmos que uma vida só não é suficiente pra essa aprendizagem.

Guardei a viola no saco, enquanto fiquei a meditar na melodia, porque me vi desafinando.

Ela, percebendo que me havia murchado, colocou uma insuspeitada pedra sobre o assunto:

— Em O LIVRO DOS ESPÍRITOS, de Kardec, que tenho relido, você vai encontrar a discussão das leis gerais do universo, entre as quais as da destruição e da conservação. Não vá com muita sede ao pote, que a moringa se quebra.



Com Raul e Luís:

Combinamos encontrar-nos na academia de ginástica no sábado pela manhã, porque estávamos desleixando muito o físico para privilegiar o espírito. Claro que a primeira coisa que ocorreu foi a nossa cobrança da ausência de Luís, na quarta-feira. Ele foi sincero e abriu o jogo:

— Acreditem se quiserem, mas nós saímos de casa pra irmos lá no centro. Ao passarmos diante dum motel, resolvi levar minha mulher pra uma fugida. Trocamos, como vocês devem estar supondo, muito mal, mas a verdade é que precisávamos desse momento de privacidade, porque achei que Maria estava tendo a cabeça cheia com denúncias infundadas de atividades extraconjugais minhas.

Eu ia louvar a atitude do mano, quando me surpreendi com a repreensão de Raul:

— Eu não sou rigoroso com as obrigações dos outros, mas tenho para mim que as pessoas devem, no mínimo, avisar que estão rompendo os compromissos.

— E como? Foi, sim, um rompante, uma decisão em cima da hora. Depois, pra quem ia eu ligar, se não sei o número do telefone do centro?

— Então, fosse até lá, desse uma satisfação para nós...

— Você está brincando! Quer dizer que eu ia chegar lá e dizer: “Olha, queridos, não estou vindo à reunião espírita, porque vou me trancar num quarto de motel com minha mulher!” Não tem cabimento!

Ia concordando com Luís, mas Raul voltou à carga:

— É claro que você não diria dessa maneira, porque não ia precisar, já que o ambiente do centro iria dar-lhe outro sentido ao desejo de aliviar a carga emocional que você afirma que Maria estava suportando.

Luís foi mais cordato, enquanto se preparava para a bicicleta ergométrica:

— Não vou pedir desculpas, pois não me arrependo do que fizemos. Foi muito bom, principalmente pra comprovar que existe entre Maria e “eu” um amor que vence qualquer obstáculo, principalmente as maledicências das comadres.

Pensei em que tanto Ana quanto Odete eram madrinhas dos filhos de Maria e julguei que Luís estava aludindo a acusações de ambas. Entretanto, Raul pôs um balde de água fria na fervência:

— Para os espíritas, a opinião alheia, a voz do povo ou os boatos maliciosos não pesam. Contudo, se minha mulher ou a do Cláudio tiveram algo que ver com isso, pode crer, meu caro irmão, que apenas avisaram a cunhada a respeito do que se fala à boca pequena, não para fustigarem uma briga, mas para alertarem a respeito. O que é dito diretamente não pode ser levado à conta de traição, de vilipêndio nem de desídia.

Raul estava entre Luís e mim, de modo que eu não podia me dirigir a este sem esforço muscular de monta, que os movimentos da ginástica estavam esfalfando-me. Então, dei um simples palpite, para contornar o problema, afastando os dois de uma linha de debates sem proveito:

— Você, Luís, está interessado em saber o que se passou no centro espírita?

Raul, todavia, impregnado pelas teses espíritas como se fossem a coisa mais necessária a pregar ao pobre faltoso, insistiu:

— Pois eu lhe digo abertamente que chegou aos meus ouvidos que você tem freqüentado aquele motel nem sempre acompanhado da esposa. Talvez tenha levado a coitada, para que se calem as testemunhas, à vista do depoimento dela de que foi com ela que você esteve naquele antro de perversão...

Olhei atentamente para o Raul, a ver se estava a falar sério ou se apenas fazia uma provocação. Ele virou-se para mim e deu-me uma piscadela, sem que Luís pudesse ver o movimento. Mas Luís não mordeu a isca e instigou Raul:

— Que tem o Espiritismo a dizer a respeito do livre-arbítrio? Se as pessoas olhassem pros próprios rabos ou se se preocupassem menos com o cisco dos olhos alheios, como disse Jesus, o mundo estaria em paz. Vocês não acham?

Não deu para me comunicar sub-repticiamente com o Luís. Raul tomou uma estradinha vicinal para chegar mais rapidamente aonde queria:

— Vá com quem quiser ao motel, que eu não vou interferir. Mas tenho o dever de alertar, porque conheço o assunto, que o ambiente espiritual dessas casas do prazer carnal é um dos mais carregados de seres infelizes que os informantes do etéreo descrevem. Trocar, como disse, um local protegido por espíritos elevados e mais puros, moralmente falando, por outro freqüentado por pobres obsessores não foi uma idéia que eu aprovaria.

Descemos das bicicletas e nos encaminhamos para mais quinze minutos de esteiras elétricas. Desta feita, Raul e eu deixamos Luís entre nós.

Luís teve tempo de meditar para responder:

— Saiba que Maria me agradeceu a lembrança da escapada e me fez prometer que, na próxima quarta-feira, iremos ao centro.

Raul foi inclemente:

— Não poderá ser de outro modo, ou você acha que a mísera não está envergonhada da decisão? Como você nos disse a verdade, ela também terá dito às cunhadas. Ou agora você vai sugerir que também nós vamos faltar à sessão de estudos para irmos ao motel?!...

Meio ofegante, pude dar rumo novo à conversação:

— Se Maria não lhe disse o que contaram as outras, fique sabendo que a reunião foi muito agradável, pelo menos quanto a termos ficado à vontade pra apresentar as nossas dúvidas e apreciações. Pra próxima vez, está agendado que a gente deve levar algumas questões pessoais, pra podermos mostrar qual a linha de nossos interesses.

Bem que eu queria me estender a respeito da participação de cada um, mas a minha intervenção gerou outro clima entre os irmãos, dado que Luís principiou a pilheriar, cansado de levar “bronca” do Raul:

— Pois eu vou querer saber quais foram os espíritos que foram espionar o que eu e minha mulher fizemos naquele quarto.

Ao contrário do que se poderia esperar de Raul, asseverou ele:

— Pois está aí um excelente problema a ser levantado. É sempre bom deslanchar no tema dos diferentes graus de adiantamento dos espíritos, de acordo com o patamar da escala evolutiva em que estacionam.

Como não déssemos resposta, prosseguiu:

— Kardec elaborou uma lista de dez categorias bem pouco rígidas, afirmando que existem os espíritos de luz lá no alto, muitos espíritos em sucessivos graus no sentido do decréscimo de qualidades e virtudes, até aqueles seres que se espojam nos vícios mais torpes e são afastados para regiões de sofrimento, onde os males que praticaram lhes despertam a consciência para postura mais coerente com o amor universal que argamassa a felicidade dos melhores.

O jorro vernacular demonstrava que o advogado estava a defender com unhas e dentes a anterior posição de censura. Queria demonstrar que o Espiritismo deve ser tratado com respeito e seriedade, para o que elaborava os pensamentos com certo apuro, em contraste com o chiste do Luís, nesta altura totalmente compenetrado nos exercícios físicos, de tal modo que, ao encerrarmos a caminhada na esteira, perguntou:

— Vocês pretendem continuar nos aparelhos?

Raul, ainda imerso nas idéias em que mergulhara, respondeu, sem avaliar a intenção da pergunta:

— Quero completar todo o circuito, segundo a minha ficha.

— E você, Claudinho?

— Eu vou dar seguimento aos exercícios com simples alongamentos.

Luís foi decisivo:

— Pois eu quero sofrer mais um pouco e vou a uma sessão de aeróbia ou de “step”, o que estiver pra começar. A gente se vê nos chuveiros.

Em casa, contei a Aninha o principal da conversa e chegamos à conclusão de que não eram aquelas as razões que convenceriam Luís a nos acompanhar ao centro espírita.



Com o Padre Aristides:

No domingo, tivemos um pequeno problema. Como íamos à missa quase sempre, acostumamo-nos com o horário, de sorte que ficamos, Ana e eu, meio ao léu, durante a manhã. Brinquei um pouco com o Lucas, enquanto ela cuidava do pequerrucho, até que me veio a idéia de sair em passeio com o garoto. Precisava espairecer, respirar ar fresco, esticar um pouco as pernas, apreciar a paisagem, observar as flores no parque dentro do qual se situava a igreja, reparar nas pessoas em trajes de festa. Enfim, gostava daquela alegria simples de quem se oferece à vida e à natureza, com saúde e sem preocupações.

Foi quando apareceu Aristides. Voltava da missa das dez e vinha apressado, com certeza pensando no almoço, que sempre filava na casa dos paroquianos adrede preparados para o evento.

Viu-me e aproximou-se, com ar muito sorridente, antecipando, matreiro, o banho que iria dar-me, conforme não demorei a comprovar.

— Com que, então, o meu fornecedor de materiais de construção está fugindo da religião?!...

Tomado de surpresa, gaguejei:

— Não é bem assim...

Aristides não era homem de poucas palavras. Emendava os assuntos e punha questões que ele mesmo respondia:

— O que eu sempre digo aos meus dissidentes é que não vão muito longe, porque a volta é obrigatória e, quanto mais o “cara” tiver andado, mais cansado vai estar no regresso. Não é verdade que você e seus irmãos estão indo ao centro espírita? Pois eu sei muito bem disso tudo. Mas o que eu sempre digo é que tudo o que se faz de dia é mais feliz, mais verdadeiro, mais próximo de Deus. Quem desenvolve atividades apenas no escurinho das salas fechadas, conversando com os demônios, vai acabar ficando completamente louco. Aposto que já lhe meteram na cabeça que a Igreja tem seus meios materiais de iludir o povo, seus castiçais, suas velas, suas imagens, seus cálices de ouro, suas vestimentas coloridas, seus cantos e preces e até seus rituais puxando para o paganismo. Não foi isso que você foi ouvir lá? Pois bem, meu caro Cláudio, não se esqueça de que você tem seus filhos para educar e não vai querer que eles desconheçam os sacramentos, a beleza do evangelho que se representa nos cultos e na missa, as procissões, as festas... O Espiritismo é uma tristeza só. Quando chamam os jovens, querem que abjurem o credo antigo, como se a formação da família nestes dois milênios não representasse coisa alguma, como se a Igreja não tivesse reunido tanta gente importante a seguir os mandamentos dela. Que me diz disso tudo? Agora você deve estar querendo saber quem foi correndo delatar a sua fugida, dois dias seguidos, numa reunião pública e noutra, privada. Não é isso mesmo? Pois eu tenho olhos e ouvidos, apesar de sempre recomendar que os donos deles vão confessar depois que realizam esse ato de respeito pela integridade da alma dos fujões. Quer saber quem foi? Pois foi alguém que ouviu você falando a respeito, tanto pode ser em sua própria casa de negócios, em seu lar, na academia de ginástica. É claro que não se trata de segredo de confessionário, mas eu não vou lhe entregar os nomes das pessoas. O que é preciso é que você saiba que eles estão preocupados. Mas eu não, porque eu sei que a grande maioria dos católicos que vão aos centros espíritas, depois de pouco tempo, voltam para confessar os pecados que cometeram naqueles antros. Saiba, meu caro, que eu mesmo já estive interessado em saber o que tanto atrai a gente. Quase sempre, é quando morre alguém e a pessoa não se conforma com a vontade de Deus e desconfia de que pode ainda ter a esperança de recuperar a convivência perdida. Seria ótimo se assim fosse. Você já pensou, sentado aqui neste banco da praça, tendo seu pai de um lado e sua mãe do outro, batendo um “papo legal” com o netinho, falando do que se passa depois que a pessoa se despede da carcaça física, que eu costumo encomendar, para dar sossego às almas dos que caem no purgatório? Mas, à luz do dia, esses fenômenos espíritas não ocorrem. Ocorrem, sim, nas salas fechadas, onde um sujeito, quase sempre inculto, que mal cursou o primário, vai falando que é o pai, a mãe, o filho do incauto, que está com saudade, que acha que o que está vivo precisa melhorar o procedimento, que deve rezar pela alma deles, como se Deus não tivesse seus anjos para lhes dar conforto, consolação e paz. Você já pensou nisso? Deus é pai de muito amor e de muita misericórdia e não desampara ninguém, mas é preciso cumprir certas obrigações. Aposto que a primeira coisa que lhe disseram é que não precisa ir mais à missa, tanto que hoje eu não vi vocês lá. Vão parar de rezar? E o seu santo padroeiro, o que é que deve estar pensando de sua atitude? Será que você não está colocando mais um espinho na coroa de Jesus? Pense nisso. Mas pense logo, porque as coisas vão depressa demais quando se trata de ouvir o que o diabo tem para dizer, como você sabe que até o Cristo foi tentado. Vamos ver se vocês readquirem o juízo e voltam para a missa da tarde. Hoje eu vou ouvir confissões a partir das dezessete horas até às dezenove. Deus abençoe você, a sua esposa, Ana, o Lucas e o Mateus! Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!

Eu, “pamonha”, mecanicamente, ao sinal-da-cruz, me persignei.

— Se você se encontrar com o Raul, mande o meu aviso de que ele está caindo em desgraça, tantas foram as vezes que me disseram que esteve no centro. O Luís, eu sei que não foi, mas, como pouco vem à igreja, faz tempo que está meio perdido. Eu sempre rezo por ele e vou começar a rezar por vocês também. Recomendações à esposa. Espero um convite para almoçar dentro em breve. Já vou indo, que hoje o dia está cheio. Preciso levar o viático ao hospital, que tem moribundo precisando receber a extrema-unção.

Sem dar tempo para eu responder, estendeu-me a mão a beijar e eu, num ato instintivo, depositei o meu beijo, sem ter tido tempo de refletir sobre o que estava fazendo. Afagou a cabeça do Lucas e partiu, em seu trajo civil, que os padres já não se reconhecem pela batina.

Preciso dizer que fiquei meio apalermado? De todas as coisas que ouvi, pelo menos uma se incrustou no fundo de minha alma: a acusação de que o Espiritismo existia somente à noite. Pensei nas atividades descritas no quadro de avisos da entrada do centro e me lembro de ter visto que havia sopa a ser distribuída na hora do almoço, todos os dias.; que o curso da mocidade era dado aos sábados à tarde.; que havia diversão infantil aos domingos pela manhã...

Nesse ponto, imaginei-me levando o Lucas até o centro ao invés de correr o risco de me encontrar com Aristides. Sorri meio envergonhado, como se outro ser humano, sacerdote embora, tivesse o condão de me atrapalhar a vida espiritual.

“Ao contrário” — vi-me a refletir — “eis aí alguém que vai sofrer deveras ao descobrir que o purgatório é aqui mesmo e que, do outro lado da morte, a realidade está longe daquela que ele pensa conhecer.”

Firmei o pensamento nas atividades diurnas do centro e da igreja mas logo derivei para as atividades noturnas de ambas as instituições. Revi a Igreja logo depois que os apóstolos começaram a pregar o evangelho de Jesus e me deparei com a época das perseguições, quando os cristãos se reuniam nas catacumbas e nas cavernas, fugindo da vigilância dos soldados romanos. Pelo menos, era como a cinematografia de Hollywood representava esses episódios. Então, houve uma época em que o Cristianismo também vivera escondido.

“Será que o Espiritismo não estará passando por uma fase semelhante ou parecida? As palavras de Aristides não representam a condenação pela religião oficial ou, pelo menos, por aquela que se alia ao poder dos governantes? Não é ele um oficiante público dos atos litúrgicos, capaz de ameaçar os simples mortais que deliberam ter idéias livres, levando-os às barras do tribunal da consciência religiosa?”

Foram perguntas que me ocorreram, naturalmente, carregadas de muita emoção, porque o que me preocupava mesmo era o fato de haver permanecido sem fala, sem reação, a ponto de fazer o sinal-da-cruz e de oscular a mão, em gesto absolutamente sem controle.

Quando comentei a passagem com Ana, ela espicaçou o meu “ego”:

— Não se esqueça, querido, que nós estamos sendo observados por muita gente, tanto deste lado como do outro. Mas existe um olho que não se fecha sobre todos os nossos pensamentos...

— É o olho de Deus!

— Não, Cláudio! Deus não se interessa pelo que fazemos nem pelo que pensamos. Para isso, constituiu um sistema de leis universais. O olho a que me refiro é o da consciência, que, de certa forma, é a representante divina de nossa contextura existencial. Se você acha que o que vem fazendo não ofende ao Senhor, por que irá preocupar-se com o fato de o Padre Aristides ficar melindrado? Ele apenas cumpre sua obrigação eclesiástica, porque cabe ao pastor conduzir o rebanho ao aprisco de Deus.

— Não entendi essa última parte. Você está afirmando que os sacerdotes têm a responsabilidade...

— Maneira de dizer, querido. Estou me referindo ao modo pelo qual ele foi habituado a pensar e quer que a gente também pense.

Naquele dia, me senti um saco de pancada a levar socos e pontapés de todo lado. À tarde, levei Mateus comigo, no carrinho, a respirar o ar do parque e me sentei no mesmo banco, aguardando que o Padre Aristides aparecesse de novo. Você, caro leitor, esteve lá? Ele também não.



Com Raspace e Rodolfo:

Na segunda, bem cedinho, estava entretido no escritório e já Raimundo apontava.

— Vá entrando, caro amigo. Bom-dia!

— Bom-dia, “Seu” Cláudio! “Seu” Cláudio, está aqui a dupla dinâmica do “Coração Amoroso de Jesus”, o presidente e o palestrante.

— Faça entrar, por favor.

Já estavam à porta e não se acanharam, enquanto Raimundo sumia.

— Vão sentando, que a casa é nossa! A que devo a honra?

Rodolfo se antecipou:

— O centro está precisando construir umas salas nos fundos e lembramo-nos do amigo. Aliás, foi seu irmão, o Doutor Raul, quem sugeriu que viéssemos procurá-lo.

— Ao seu dispor. O que for possível, faremos. Vocês já têm as plantas?

Raspace foi abrindo a mala e retirando uns papéis bem dobrados.

— Estão aqui, aprovadas desde que construímos a parte da frente. Como era o plano, fizemos o principal. Agora queremos ampliar a área de atendimentos e precisamos de mais algumas salas.

Durante mais de meia hora, a conversa foi totalmente técnica, até que chegamos à fase comercial dos negócios. Foi Rodolfo quem abriu inteiramente as cartas sobre a mesa:

— O seu irmão, com quem estou em vias de fechar negócio, me disse que você iria facilitar os pagamentos, da mesma forma que atende os padres.

Desconfiei imediatamente de que Raul não tivesse revelado o fato. Mas não tive tempo de refletir a respeito e fui logo adiantando:

— Pra Igreja, eu cobro o preço que paguei mais os valores correspondentes às notas fiscais e impostos. Só que eles me pagam à vista.

Raspace, daí para frente, foi quem comandou as negociações:

— Nós não esperávamos tanto. Se o preço for conveniente, como o amigo está falando, levantamos um empréstimo bancário, a não ser que você se contente em receber os mesmos juros que o banco cobra.

Pedi um tempo para consultar o livro-caixa, enquanto realizava uns cálculos na velha máquina elétrica. Depois, ofereci os meus préstimos na seguinte conformidade:

— Vocês não vão retirar todo o material de uma única vez. Sendo assim, vou fornecendo de acordo com a necessidade e vocês vão efetuando os pagamentos conforme puderem, mensalmente.

Raspace concluiu:

— É como se nos abrisse uma caderneta como aquelas antigas, quando a gente comprava fiado na venda.

— Isso mesmo, com uma pequena diferença: vocês se obrigam a me responderem algumas perguntas que estão me ocorrendo agora.

Raspace continuou respondendo:

— Se for a respeito das atividades do centro, devemos dizer que as nossas verbas vêm da venda dos livros e das peças do bazar da pechincha...

Não o deixei prosseguir:

— As suas fontes de renda, eu conheço, porque li o balancete afixado no quadro de avisos. Sei que o principal dinheiro que apuram vem da dotação do Estado. Pra mim está ótimo. O que eu quero saber é se o centro pode funcionar tão bem de dia quanto à noite.

Aí, reproduzi as observações do Aristides.

Rodolfo, que se impacientava por ter permanecido em silêncio por tanto tempo, foi quem respondeu:

— Nas federações espíritas, que funcionam com médiuns durante todo o dia, tudo o que fazemos à noite, eles fazem também sob a luz do sol. Digo isso porque sei que você ia perguntar se se fecham as portas e janelas. É evidente que, para efeito de concentração espiritual, é recomendável que não haja nada a desviar a atenção dos trabalhadores, dos “obreiros”, como dizemos nós, carinhosamente, apesar desta palavra estar sendo contaminada por certa seita protestante.

Pareceu-me bastar a explicação, mas Raspace complementou:

— Os padres são useiros e vezeiros em acusar os espíritas de tudo realizar às escondidas. Acontece que as nossas atividades não são do interesse público, porque conversamos, orientamos os sofredores ou somos encaminhados em nossas vidas, segundo os procedimentos de cada um. Se o Padre Aristides quiser, poderá ir assistir às conferências, podendo abrir os debates à vontade. O que ele faz reservadamente no confessionário, com certeza, não irá declarar de cima do púlpito. Por exemplo, ao saber que você ajuda a igreja dele, nós refletimos bastante a respeito de ele vir a boicotar as compras em sua loja por também nos auxiliar, mas concluímos que você não corre esse risco, uma vez que ele não vai encontrar ninguém mais que ofereça as mesmas vantagens. Então, desse lado, você não precisa temer.

Eu não havia suspeitado dessa possibilidade, contudo, as razões do presidente do centro me pareceram muito plausíveis. Mais tarde, iria meditar a respeito da clientela católica que acorria ao meu estabelecimento e iria ouvir Raimundo confirmar que o interesse das pessoas residia no ato de atender com honestidade, presteza e eficiência, o que manteria a casa sem preocupações de ordem financeira. Entretanto, aquele momento de indagação íntima repercutiu na mente de ambos como de dispensa.

Eles se despediram e se retiraram, enquanto eu abria O LIVRO DOS MÉDIUNS, bem no final, para ler algumas comunicações transcritas por Kardec, como para espantar o fantasma da acusação do padre de que o Espiritismo não recomendava esse saudável contato com o Criador. Se o livro todo ia parecendo-me bastante científico, esse último capítulo abrandava esse aspecto e me assegurava de que também existia uma religião espírita.



Com Luís:

Naquela mesma manhã, apareceu-me o Luís.

— Vim pra pedir desculpas pelo modo como procedi na academia.

Fui logo colocando panos quentes:

— Não reparei que você tenha agido mal em nenhum momento, apesar de reconhecer que não gostou do que disse o Raul.

— Não é verdade que ele abusou da minha paciência?

— Você não precisava ter dado tanto destaque pro motel.

— Mas ele não tem nada com isso.

— Eu achei que não tinha mal nenhum você levar sua mulher pra qualquer lugar em que se sintam bem. Mas Raul pode estar certo em imaginar que você esteja evitando ir ao centro.

— Quer saber mesmo?!... Pois eu não estava querendo ir e agora estou querendo menos ainda. Por isso, vim conversar com você. Quero saber se você acha se vale a pena a gente deixar as mordomias da religião católica...

— Eu não vejo mordomia nenhuma. A gente tem, como diz o Padre Aristides, com quem conversei bastante ontem, obrigações. Não são muitas, mas me parece que, no Espiritismo, nem isso existe. Segundo tenho entendido do pouco que vou lendo, o Espiritismo renova o Cristianismo do tempo de Jesus e dos apóstolos, quando o importante era o procedimento. Mas não vou fazer prévio juízo, porque li que muitos médiuns são perseguidos pelos espíritos de natureza inferior e precisam tomar cuidado pra não se virem nas garras deles.

— Qual é o remédio pra isso, porque eu acho que o Raul está correndo atrás de mim?...

— Não brinque com essas coisas. Estou aprendendo que o melhor é a gente proceder com cuidado, não dando chance pra que ninguém possa perturbar. Hoje mesmo, eu acho que fiz minha boa ação, como um bom escoteiro: facilitei a vida dos dirigentes do centro, dando crédito pras construções que eles querem fazer.

— Começou...

— Começou o quê?

— Começou a comilança...

— Alto lá! Partiu de mim o negócio todo...

Mas Luís foi categórico:

— Vamos abrandar os ânimos, senão, em vez de um irmão a me azucrinar, vou ter dois. Você não me respondeu: é preferível o Espiritismo ou o Catolicismo?

— E eu vou lá saber? Acho que depende do grau de desenvolvimento de cada um. Muita gente há de ficar satisfeita com o que se faz na Igreja. Outras pessoas procuram alguma coisa mais de acordo com suas idéias e necessidades e vão encontrar o que fazer nos templos protestantes, nos terreiros da Umbanda, nas mesquitas, sinagogas e nos centros espíritas.

— Ainda bem que você pensa assim. Então, se eu não for com vocês quarta-feira...

— Lembra-se quando você me avisou de que tinha ficado de boca fechada? Pois agora não queira pôr palavras na minha boca, por favor. Limite-se a assumir inteira responsabilidade perante a sua mulher, porque eu acho que a minha e a do Raul vão cair em cima dela, “forçando a barra” pra que vocês nos acompanhem. Pelo que entendi, desta vez estão muito mais empenhadas, levando as coisas muito mais a sério. Eu mesmo tenho levado umas pancadas, porque não estou me afinando com os conceitos na mesma velocidade da Ana.

Notei que Luís estava, no mínimo, admirado com a minha loquacidade. Ficou por um bom tempo pensativo e eu o deixei a meditar, engolfando-me nas faturas e nos talonários fiscais, a orientar-me dentro da contabilidade, porque fazia questão de não entregar a escrituração a nenhum contador. Era o orgulho de quem ostentava na parede o diploma de “Administrador de Empresas”.

Ao sair, Luís confirmou-me:

— Quarta-feira, vou fazer um caminho diferente, pra não passar diante de nenhum motel.

Assim que saiu, liguei para casa a fim de contar as novidades.



Com Raul:

Na terça-feira, Raul e eu voltamos à academia. Luís não prometeu nada e também não compareceu.

Quando lá cheguei, Raul aguardava por mim na portaria e foi logo dizendo:

— Conversamos, Odete e eu, e achamos que fiz muito mal em provocar o Luís. Agora é que ele vai encontrar desculpas para não nos acompanhar ao centro.

Deixei em suspenso o fato de saber a resposta positiva do faltoso e provoquei os melindres da consciência do advogado:

— Sabe o que eu penso a respeito de sua atitude? Eu acho que você está muito entusiasmado com a doutrina espírita e quer que todo o mundo sinta o mesmo.

Raul, sempre pronto para responder, calou-se, como a esperar que eu terminasse os pensamentos. Prossegui, enquanto íamos para o vestiário:

— É bom que toda a família compartilhe dos mesmos sentimentos religiosos, contudo, cada um tem o seu nível evolutivo. Quando chegar a hora, Luís irá refletir que o saber não ocupa lugar na mente de ninguém.

De novo, Raul silenciou, enquanto fechávamos os armários. Fui um pouco além, já me empolgando com as razões que apresentava ao meu irmão mais velho e mais inteligente, que era como nós todos o considerávamos:

— Se Maria estiver realmente interessada, vai fazer que o marido se mexa. Aliás, falando em se mexer, que foi que você disse pros do centro, que foram correndo falar que os meus negócios com os padres eram especiais?

Não houve jeito. Raul se viu na obrigação de esclarecer:

— Depois que falei com eles, eu me arrependi. Foi como aconteceu com o Luís. Acho que estou precisando me benzer. Se você disser que fez o mesmo tipo de ajuste com o presidente do centro, vou ficar ainda mais convencido de que fazer o bem é complicado, quando se trata de relacionamento comercial.

— Do jeito que você fala, até parece que pretende passar sua comissão na venda do imóvel ao Rodolfo.

— Não vou, mesmo. A minha contribuição foi trabalhar em dobro para conseguir o melhor preço pelo sobradinho.

— Pois eu não vou perder nada, porque a venda que estou efetuando está coberta em todos os gastos, inclusive quanto ao transporte do material, porque eles têm quem faça o serviço. Perco apenas no tempo dos meus empregados. Não acho justo, nem nunca achei, que as pessoas cumprimentem com o chapéu alheio, embora acredite que eles ficaram tão contentes que vão nos ajudar em tudo que precisarmos. Se valer a promessa de responderem às nossas perguntas amanhã, já preparei bem umas quinze.

Raul, todavia, demonstrava o que o trazia preocupado:

— Tenho a certeza de que, se Luís comparecer, vai tornar os estudos mais alegres e mais positivos, apesar do respeito que aquele ambiente impõe.

Não resisti mais e contei a conversa com o Luís:

— Ele me confirmou que vai. Afinal, chegou à conclusão de que você estava certo.

— Que foi que você disse a ele?

— Nada de mais.; apenas fiz referência ao fato de que as mulheres estão indo mais depressa que os homens.

— Não deve ter sido isso. Mas não vou perder tempo tentando descobrir. Amanhã, eu pergunto a ele.

— Não terá sido esse tipo de atitude que está gerando as complicações de seus relacionamentos? Você pensa muito depressa e logo vai despachando as idéias, como se a gente pudesse seguir. Calma, meu caro, que o santo é de barro...

Mas Raul não me deu ouvidos e repetiu:

— Amanhã, eu pergunto a ele.



Com Frederico, na tarde da terça-feira:

Este era um dos calados da reunião. Logo que foi entrando no depósito, eu o reconheci, sem precisar que Raimundo se adiantasse para as apresentações.

Frederico era um homem forte, de aparência bruta, como um desses trabalhadores que a gente contrata para os serviços mais pesados. No entanto, tinha um sorriso cativante, que se abriu, assim que me avistou:

— Boa tarde, “Seu” Cláudio!

— Boa tarde! Veio com o caminhão, pra retirada do material?

— O Raspace deve ter avisado o senhor.

Achei que o tratamento respeitoso convinha naquela circunstância e não reclamei, informando, em seguida:

— O material está separado. Se você encostar o caminhão no fundo do depósito, os peões carregam.

Dito e feito.

Enquanto iam pondo a areia, os pedriscos, o cimento, a cal e os tijolos sobre a carroceria, nós pudemos conversar um pouco. Fui eu que puxei o assunto:

— Você trabalha com transporte?

— Não, “Seu” Cláudio. O caminhão é do Raspace. Eu vou ajudar mesmo é na construção. Mas, sem material, vou ter de ficar olhando os pedreiros, porque a minha parte é ajudar na mistura.

— Quanto estão pagando pra você?

— Três salários.

— Não é muito...

— Pra mim é, que estou desempregado.

— E todo mundo trabalha remunerado, com pagamento?

— Claro!

— Eu pensava que o pessoal fazia os serviços de graça.

— Tem quem vai ajudar no fim de semana. Mas a turma do batente é tudo pago.

Emudeci. O mais que conversamos foi “pro forma”. Eu perguntei se ele estava gostando da reunião, ao que me respondeu:

— Pra mim e pra minha mulher é muito difícil. Eles deram um livro pra ler, mas, se ninguém ajudar, nós vamos ficar “boiando”.

Imaginei que esse tipo de inteligência era mais prática. Eu tinha estado tão envolvido com as leituras que me esqueci completamente de que existem pessoas analfabetas. Passou-me pela cabeça que não deveriam juntar advogados e empresários com serventes de pedreiro. Aí, cometi uma indiscrição de que me lamento até hoje:

— Você e sua mulher pretendem continuar freqüentando o centro?

O bom homem não sabia o que responder, porque não atinava com a razão da pergunta. Para ele, era tão importante ser recebido num ambiente reservado para gente estudada que a minha pergunta ressoou, evidentemente, como um menosprezo. Contudo, foi político ao explicar:

— A minha mulher acha que está vendo coisas. Disseram que tinha de “desenvolver”. Ela teve medo e me arrastou pra lá. Amanhã é a terceira vez que a gente vai. Se a gente não aprender nada, pelo menos conheceu pessoas importantes, que sabem falar bem, pondo cada coisa no devido lugar. O senhor vai à palestra de hoje à noite?

— Não.

Não sabia como remendar mas, sem dar impressão de que tinha percebido a minha “mancada”, ele encerrou a conversa:

— Então, a gente se vê amanhã. Agora nós vamos nos encontrar sempre, cada vez que tiver de encostar o caminhão.

— Diga pro Raspace que não se preocupe com as notas fiscais que você está levando. Amanhã eu acerto com ele.

Frederico abriu de novo a simpatia de seu melhor sorriso e foi embora, cuidadoso com as manobras dentro do pátio. Eu é que dei um encontrão no Raimundo, quando me virei para entrar.

— Desculpe, chefe, mas o senhor está sendo solicitado no balcão.

Nem quis saber se também ele ia à conferência. Tinha a certeza de que sim.



Com a família:

Por muito estranho possa parecer, passei o resto da tarde da terça-feira com a impressão de que à noite iria ao centro. Várias vezes, precisei vencer a tentação de ligar para Ana, porque me compenetrava de que as decisões que envolvem outras pessoas devem ser tomadas com tempo hábil, de preferência debaixo de ponderações na presença delas. Em resumo, andava de um lado para o outro dentro do escritório, saía para a loja, cruzava o pátio do depósito, ia até o armazém do fundo, sem me dar conta de que os empregados me observavam. Ao se retirar, Raimundo ainda me perguntou:

— O senhor vai ao centro hoje?

— Não pretendo, mas até que a idéia está na minha cabeça.

Ele se foi e eu fiquei a martelar na mente a confissão que não se havia delineado claramente.

Cheguei um pouco mais cedo em casa, talvez com a intenção inconsciente de dar tempo a Ana de providenciar alguém para tomar conta das crianças. Mas não fiquei a papear com ela, habituado a tomar banho depois do trabalho. Em dias de ginástica, banhava-me na academia. Mesmo assim, fui ao escritório, com a desculpa de ler os livros que recebera dela, e me pus a meditar a respeito da crescente necessidade de participar da vida comunitária no centro espírita.

Passaram-me pela cabeça muitas idéias fantasiosas que não vale a pena citar, mas devo dizer que a influência daquele imponderável desejo acabou por me adormecer.

Uma hora mais tarde, senti leve vibração no ombro. Era Ana a me acordar:

— Querido, vamos jantar?

Acordei um tanto acabrunhado, sôfrego, buscando ver que horas eram. Quase oito. Não dava mais para ir ao centro. Respirei aliviado, como a demonstrar ao espírito que as coisas não são tão ruins quando não acontecem conforme sua premência psicológica.

Ana, porém, saiu-me com uma que eu não podia esperar:

— Sabe, Claudinho, eu passei o dia todo pensando em ir ao centro pra ouvir o palestrante das terças.

— Você acreditará se lhe disser que eu também?

Olhamo-nos fixamente dentro dos olhos, como a tentar enxergar a alma.

Tentei explicar o meu sono:

— Como não estava querendo ceder à tentação de convidá-la, fugi de você e vim pensar sobre tudo o que tem acontecido comigo desde que me comprometi com o centro. Acho que dormi por influenciação do inconsciente, pra não ficar aflito por permanecer em casa. Que está acontecendo? Serão os espíritos que estão infiltrados em nossa auréola espiritual?

— Pode bem ser que os benfeitores da gente estejam sugerindo que devemos ir ao centro. A acreditar na existência do mundo dos espíritos, temos de aceitar que eles participam ativamente de nossas existências.

— Você tem certeza do que está falando?

— Não completamente, mas tudo me leva a crer em que o plano espiritual está relacionado com o nosso. Você está supondo que eles querem que a gente vá ao centro. Pra mim, pareceu outra coisa. Vamos ver se você adivinha.

Por mais que a minha imaginação trabalhasse, não pude pensar a não ser no desejo de receber um passe e de beber da tal água fluidificada.

— Não é nada disso. Eu preparei a mesa da sala pra gente fazer o evangelho no lar. Não lhe parece que é a solução pras terças-feiras?

— Genial, desde que não desperdicemos o tempo com religião em lugar de ficar brincando com as crianças. São eles que precisam de nós.

— Pois os dois podem ficar com a gente. Assim, o Lucas vai aprendendo a respeitar os livros e o Mateus vai se acostumando com certas conversas edificantes, sem a televisão ligada. Ou você faz questão de assistir ao jornal?

Decidimos que iríamos jantar em seguida, deixando a leitura de O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, de Kardec, para depois. Assim, enquanto comemos, vimos o noticiário, o qual nos deu diversos temas para discutir, como o da violência urbana e o da ganância das pessoas que desconsideram que o dinheiro do governo é de todo o povo. Só não vou relatar como foi a nossa sessão de estudos porque, então, deveria transcrever todas as maravilhosas ponderações do Codificador a respeito dos temas morais, além, é claro, de reproduzir as passagens dos Evangelhos que lhe serviram de base. Basta assinalar que abrimos o livro ao acaso, conforme sugeriram no centro, porque, dessa forma, os espíritos poderiam interferir na escolha do texto. Intimamente, eu desconfiava que era mera superstição, mas, como não custava, aceitei que fosse desse jeito. Por coincidência, abrimos no capítulo nono, “Bem-aventurados os mansos e pacíficos”, onde se trata das injúrias e violências, com destaque para a afabilidade e a doçura.; a paciência.; a obediência e a resignação.; e a cólera.

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