Usina de Letras
Usina de Letras
108 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62191 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10352)

Erótico (13567)

Frases (50598)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Um broto no galho morto - final -- 15/10/2003 - 12:48 (Clóvis Luz da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Blaise Pascal, um gênio que dizem ter sido cristão, afirmava que o coração tem razões que a própria razão desconhece. E não sei quais motivos me levaram a entrar num “parafuso” emocional e me interessar por uma outra mulher da igreja, cuja única experiência afetiva na vida tinha sido desastrosa. Casara-se havia alguns anos com um jovem da igreja com quem namorava desde os dezesseis. Tiveram uma filha e se mudaram para outra cidade. Quando ainda em Belém, o marido de Selma parecia ser um jovem cristão promissor, muito interessado na vida eclesiástica, a ponto de tocar violão nos cultos. Era gentil com todos, atencioso e cavalheiro. Após terem se mudado, seu comportamento se transformou numa tortura diária para Selma, porque ele se tornara um marido desatencioso, não se importando se sua esposa e filha estivessem necessitadas de alguma provisão. Passava noites inteiras em companhia dos amigos, voltando apenas no outro dia, sem dar qualquer satisfação à esposa. Inventava meios de justificar suas faltas, sempre apontando as supostas deficiências no papel de esposa de Selma como as razões porque ele se decepcionara com o casamento e passara a se comportar daquela maneira irresponsável. Selma não agüentou tamanhas crises emocionais, tendo que ficar dias inteiros cuidando da filha doente, muitos dos quais sem ter o que comer. Veio pra Belém morar na casa dos pais.

A filha desse casamento, uma linda criança, tinha então cinco anos quando, por freqüentar a casa de seus avós, eu me deixei envolver pela experiência de sua mãe e quis, numa espécie de altruísmo, compensar-lhes o sofrimento, admitindo me casar com Selma para ser o marido que ela não teve e o pai que Heloísa jamais conheceu. Ajudava-me nessa resolução o fato de Valkíria viver fora de Belém, em viagens constantes a outras cidades por conta de seu emprego em uma multinacional. Tais viagens tornavam impossível qualquer relacionamento mais constante entre nós, a partir do qual ela pudesse de algum modo compreender que eu não era aquele poço de instabilidade como provavelmente pensava. Se é verdade o jargão popular, na medida em que meus olhos não a viam com constância, não era possível que meu coração continuasse sentindo por ela com a mesma intensidade aquilo que julgava ser mais que uma simples paixão.

Havia sido aprovado em um concurso público nesse mesmo ano em que decidi ser viável meu casamento com Selma. Isso, contudo, somente seria possível se ela se separasse legalmente do marido. Segundo a lei, se houver comprovação de que um casal já está separado há mais de dois anos, configura-se a separação de corpos, motivo suficiente para uma das partes requerer a separação judicial. Selma já havia entrado com esse pedido. Queria refazer a vida, queria voltar a ter planos, a sonhar com uma família, um lar. Nossa situação não era nada confortável; talvez a minha em particular fosse mais aflitiva que a dela, pois aos olhos da comunidade a situação se tornou estranha, “sui generis”. Um rapaz solteiro, com um bom emprego, cercado por jovens igualmente solteiras, todas dispostas a começar uma relação afetiva, resolve se interessar por uma mulher mais velha, mãe e envolvida num complexo processo de separação. Além do que, por não estar judicialmente separada do marido, continuava legalmente casada. E como foi difícil manter essa relação dentro do padrão de moralidade exigido pela igreja. Não seria aquilo um adultério? Não estaríamos cometendo um grave pecado aos olhos de Deus? Vivia em conflito, pois de um lado sentia vontade de beijar e abraçar Selma, sair com ela de mãos dadas, enfim, manter um relacionamento “normal” como qualquer casal de namorados que querem se casar. De outro, tinha consciência de ser impossível sustentar uma relação como essas sem configurar o adultério. Minha ansiedade chegava a tal ponto que vivia vasculhando as páginas do Diário Oficial para ver se a decisão definitiva sobre a separação judicial saía publicada. Seria um alívio, pois finalmente poderia assumir de vez aquela relação, sem o desconforto até então experimentado de estar sendo objeto de comentários talvez maldosos, com certeza preconceituosos. A verdade é que nunca beijei Selma, nunca lhe de um abraço. Nas raríssimas vezes que saímos nos comportamos como bons amigos, e nada mais.

Toda vez que ponderava sobre minha relação com Selma, pensava num bilhete que lhe entreguei com o seguinte pensamento: “a soberania de Deus não se submete à lógica das expectativas humanas”. Queria dizer com isso que, inobstante a lógica dizer que eu deveria me casar com uma moça nos moldes há pouco descritos, mantinha a disposição de me casar com Selma. Esqueci-me de ponderar sobre o fato de o nosso coração fazer planos mas ter que se aceitar, sem discutir ou questionar, a resposta que vem da boca de Deus. E um pouco tempo antes de sair a publicação da separação judicial entre Selma e o marido, a impressão de que Valkíria não sairia jamais do meu pensamento me levou a terminar o relacionamento com Selma. Não poderia me casar com uma mulher e viver o resto de meus dias assombrado pelo fantasma de outra. Eu não consegui esquecer Valkíria e seu sorriso amplo como o universo, lindo como os lírios do campo, envolvente como a mais suave brisa do mar.

Não diz a Bíblia que não devemos acordar nem despertar o amor antes que ele o queira? Valkíria jamais quis saber de mim. O que poderia fazer para que ela gostasse de mim? Mandaria flores? Toda mulher gosta. Escreveria cartas imensas, revelando o meu sentimento? Opção clássica e sempre eficaz. Ou oraria, pedindo que Deus tocasse no coração daquela jovem fazendo-a gostar de mim tanto quanto gostava dela? Diante dos fatos, essa parecia ser a mais segura opção, ainda mais porque aprendi que não há coração tão duro que Deus não possa tocar. Queria o amor de Valkíria. Nada havia no mundo que eu desejasse mais, com que sonhasse mais. Valkíria se tornou quase uma obsessão, um vício; tanto que temia estar colocando-a no lugar de Deus. Ele deveria ser o centro de minhas atenções, o único objeto de minha devoção. Temia estar desenvolvendo uma relação patológica de dependência emocional, um amor platônico, idealizado, inatingível. Não queria isso, queria poder viver normalmente, sem pressões absurdas do meu coração, que pudessem me fazer esquecer que o amor de uma mulher não pode substituir o amor de Deus. Nenhuma relação é mais importante do que a nossa com Deus. Até quando iria suportar a indiferença de Valkíria?

Todos anos uma editora evangélica promove uma conferência à qual afluem crentes de várias igrejas de todas as partes do país, e nela ministram a palavra vários pregadores renomados, muitos dos quais vindo de fora do Brasil. Além da oportunidade de crescer no conhecimento de doutrinas importantes para a fé evangélica, os irmãos têm também a chance de conhecer outras cidades e outras pessoas. Haveria um conferência dessas em São Luís, para onde foram muitos irmãos daqui de Belém, dentre eles, Valkíria. Não havia notado, durante os dias que antecederam a viagem, nenhuma mudança no comportamento de Valkíria que justificasse achar estar ela começando a sentir alguma coisa por mim. Ela sempre fora muito discreta, reservada. Em nenhum de nossos raros e curtos diálogos deixou transparecer que nutria alguma expectativa a meu respeito diferente daquelas já mencionadas e que a faziam querer distância de mim.

Abrindo mão de qualquer prudência, e sabendo que em São Luís morava um rapaz com quem ela namorara quando tinha dezoito anos, dos tempos em que viajava para fazer treinamentos relativos às atividades que exercia na empresa onde trabalhava, no dia marcado para os irmãos retornarem, depois de várias consultas a listas telefônicas, descobri o telefone do hotel La Ravardierei, onde estavam hospedados.

- Por favor, a Valkíria. O recepcionista demorou alguns segundos, e ao retornar a ligação disse-me:
- Desculpe-me, senhor, eles não estão mais no hotel.
- Tem certeza?. Depois de um instante de silêncio, a resposta:
- Espere um pouquinho, por favor, parece que eles estão no ônibus prontos pra iniciar viagem. Ele foi e chamou Valkíria; todos os presentes no ônibus (me diria ela depois) fizeram comentários constrangedores, perguntando: “Hei...Val, é o teu namorado?”. Com o coração quase fugindo pela boca, ouvi a doce voz de Valkíria perguntado quem era. Não tive coragem de dizer outra coisa senão perguntar como tinha sido a conferência, se havia conhecido alguém, etc. Ela insistiu em saber quais as verdadeiras razões porque liguei, já que, ponderou, ninguém se esforça tanto pra descobrir o telefone de um hotel em outra cidade apenas pra perguntar: “Como foi a viagem?” A lógica de suas palavras me deixou sem ação. Tive que admitir ter ligado para lhe falar de um assunto que estava me deixando confuso e abatido, e que precisava resolver logo a questão. “Que questão?” Insistiu Valkíria. Foi então que lhe disse não ser a hora oportuna de falar sobre o assunto. Sua insistência me levou a confessar que não conseguia ficar sem pensar nela, e que seria maravilhoso se ela admitisse namorar comigo. Ouvi um silêncio abismal tomar conta dela. Quando conseguiu falar, asseverou que o melhor momento, realmente, pra falar sobre o assunto era quando estivesse em Belém. E assim acertamos.
Como chegaram às onze da noite em Belém, não tinha como eu ir até a casa de Valkíria. Mas não agüentava de ansiedade e tão logo soube que estava em casa, peguei o telefone e liguei. Era uma sexta-feira, treze, e no momento em que perguntei se aceitava namorar comigo, Valkíria prendeu o fôlego, suspirou e disse: “aceito!”

No outro dia à noite, fui visitar Valkíria. Ela tinha acabado de voltar do trabalho. Meu coração parecia que ia explodir de tanta emoção. Os pensamentos queriam encontrar serenidade para eu poder avaliar a forma como deveria me comportar, o que dizer, como dizer. Parecia inacreditável que estivesse me dirigindo para me encontrar com a mulher por quem minha alma tanto anelava. Ao nos vermos pela primeira vez depois do “sim”, um sorriso em nossos lábios revelou que os olhos encontraram àquilo que buscava o coração. Não podia haver engano naquele fato, não havia espaço para dúvidas. Não podia ser sonho ou ilusão a alegria que nos dominava naquele momento. Ela estava linda, vestida com uma camisa de algodão e uma longa saia jeans. Seus cabelos, recém saídos do banho, ainda estavam úmidos e o seu cheiro chegou ao meu nariz como se eu tivesse desembrulhado um buquê de mil flores das mais perfumosas do mundo.

Não cheguei a entrar em sua casa, pois ela veio até mim. Lembro-me que era noite de lua cheia, e, ao nos abraçarmos pela primeira vez, vi o reflexo da luz da lua em seus olhos negros, parecendo duas pérolas brilhantes onde eu podia ler palavras de amor por tanto tempo guardadas naquele coração tão sedento de amor quanto o meu.

Era incrível como a mente estava resolutamente convencida de ser ela para mim e eu para ela a perfeita junção de partes que queriam se unir, de anelos que se queriam realizar, da vida que queria ser vivida. Se é verdade que cada alma busca uma outra que lhe seja gêmea, Valkíria e eu estávamos absolutamente seguros de que nossa decisão era a única possível, admitir que nascemos um para o outro não parecia absurdo ou fruto de uma romantismo juvenil. Não. Sabíamos que Deus estava no controle da situação. Sabíamos que Ele tinha Seus planos para mim e ela, e se, incrivelmente, Valkíria começou a gostar de mim sem que eu agisse ostensivamente para isso, tal fato somente poderia ser atribuído à soberana vontade de Deus, que quis no unir, quis aproximar de uma vez para sempre nossos jovens corações.
E outros pensamentos não tínhamos senão que, a partir daquele início, o caminho a ser pavimentado seria o que nos levasse ao altar. Tínhamos bons empregos, níveis culturais similares, éramos cristãos, nada, portanto denunciava contra nossa legítima aspiração ao matrimônio. E foi assim o início de nosso namoro.

Durante os primeiros meses nosso namoro avançou bem. Fazíamos planos para o casamento. Nossas diferentes personalidades aos poucos iam se moldando. Não queria repetir com Valkíria os mesmos erros que observei em outros namoros em nossa igreja. Num desses, o rapaz era tão dominador que parecia anular totalmente a personalidade de sua namorada, a tal ponto que a família dela fez de tudo para acabar o namoro, o que conseguiu para o alívio de todos, inclusive dos dois namorados! Valkíria se aborrecia muito facilmente com minhas falhas. Era muito sensível, metódica. Não quero dizer que ela via o mundo pelo buraco da fechadura, dando importância demasiada a pequenos detalhes, seja no meu relacionamento com ela seja no trato com as demais pessoas da igreja. Se, por exemplo, eu não lembrasse do dia do seu aniversário ela só faltava morrer de ódio. Mesmo depois que eu lhe fizesse um mimo, a raiva continuava durante o dia todo. Ainda bem que ela não deixava o sol de pôr sobre sua ira, e à noite tudo já estava bem.

Valkíria morava com seu pai, sua irmã e a sobrinha, filha de uma outra irmã cujo marido havia se envolvido num crime involuntário, pelo qual cumpria pena. “Quem está de pé, cuide para que não caia”. Não é essa a advertência bíblica para os cristãos? Infelizmente minha vida espiritual continuava gélida. Não era nem quente nem frio. Estava com a alma congelada. Meus pés andavam perigosamente à beira do abismo. Não estava mais orando, lendo a Bíblia. Ia para os cultos como mera obrigação, para satisfazer a consciência. E como não estava cuidando para não cair, veio a queda. Minha irmã havia comprado uma pequena casa em um balneário próximo de Belém.

Nas férias do meio do ano toda a família para lá se dirigiu. Foram meu pai, mamãe, minha irmã Antônia, minha namorada Valkíria, Cristina e a sobrinha Isabel. Era um sábado e todos aproveitamos bem o dia. Tomamos banho de praia, comemos peixe assado. À noite vimos televisão, conversamos alegremente e, cansados, fomos dormir. Alta madrugada, acordo. Minha rede estava na sala, Valkíria dormia numa rede ao lado. Cristina e Isabel dormiam em pequenos colchões sob minha rede. Imediatamente veio o impulso e, esticando meu braço, toquei em Cristina. Depois, toquei em Isabel, que imediatamente reagiu, perguntando: “O que é isso?” Imediatamente o pavor me dominou, ainda mais quando a ouvi comentando com Cristina o que tinha acontecido. Meu pavor era que elas contassem pra Valkiria e terminasse o nosso namoro por causa desse fato lamentável.

No outro dia, o medo continuou. Agora não agia mais com naturalidade, e o tempo todo a sensação de que a qualquer momento elas iriam chamar Valkíria para lhe contar o episódio me deixava em suspense e profunda aflição. E, óbvio, tinha consciência que havia cometido um grave pecado, e que, viesse a saber, Valkíria teria todas as razões do mundo para acabar nossa relação. Não sei por que razões elas não falaram nada do acontecido, e voltamos para Belém. O suspense e o medo continuaram. Elas nada disseram nos dias seguintes para Valkíria. A única coisa que mudou foi que daquele dia para frente elas não me tratariam mais como antes. Sempre brincávamos, sempre sorríamos juntos quando Isabel ou eu contava alguma piada. Quebraram-se a confiança e respeito que elas tinham por mim. Até quando guardariam o segredo?

Minha outra irmã, Josefina, havia financiado uma casa no mesmo conjunto onde nós moramos. Essa casa foi o seu presente de casamento para mim e Valkíria. Antônia nos presenteou com uma linha telefônica, à época uma fortuna. Depois de três anos de namoro, finalmente tínhamos tudo pronto para o casamento. Compramos os móveis, a casa havia sido reformada. Faltava o chá de casa. Era abril, e as senhoras e moças da igreja organizaram o chá. Valkíria ganhou muitos presentes. Estava radiante. Não se agüentava de feliz. Dali a dois meses seria o casamento. Os poucos detalhes estavam sendo verificados. Valkíria tinha se mudado com sua família para uma outra casa, um pouco maior que a anterior. Finalmente chegou o mês de julho. As providências todas tinham sido tomadas. Falamos com o pastor da maior igreja de nosso presbitério, na qual cabiam os trezentos convidados que supúnhamos iriam se fazer presente à cerimônia. O decorador, o buffet, tudo foi verificado com antecedência. Nem mesmo a famosa e às vezes constrangedora visita ao ginecologista ficou de fora. Fomos lhe falar de nossas expectativas quanto à vida conjugal. Antes tínhamos lido o mais que obrigatório “Ato Conjugal”. Tudo ok! O fato de Valkíria ser virgem não espantou o médico. Podia não ser coisa do outro mundo, mas ainda é motivo de galhofa uma moça permanecer virgem até os trinta anos!

Chegou o grande dia. A ansiedade parecia maior que o desejo de casar. “Fulano, falou com a moça do bouquêt?”. “Ciclano, os refrigerantes já foram comprados?” “Que horas chega a maquiadora?” Esses detalhes comuns a todos os casamentos não pareciam nos incomodar. Eu estava na casa de minha família. Valkíria da sua. Eu queria que tocasse o “Cânon” de Albinoni. Somente havia um CD com a música. Valkíria insistia em que fosse tocada ao vivo. “Não há tempo pra ensaiar”, dizia-lhe eu. “Não importa...em CD eu não aceito”, retrucava ela. Resultado: tive que convidar um amigo que tocou ao vivo no teclado uma música romântica muito conhecida. Não foi o cânon, mas pelo menos foi ao vivo! Terminada a cerimônia, cumprimentamos os convidados, tiramos dezenas de fotos e fomos viajar extenuados, para a ilha do Marajó, em uma mais do que aguardada lua de mel.

Como todos os casais, eu e Valkíria nos primeiros meses de casamento enfrentamos dificuldades de adaptação àquela nova situação. Nada mais natural do que estranhar o fato de estar agora vivendo ao lado de uma outra pessoa. Você não tem mais os mesmos privilégios de quando era solteiro. Não há mais papai e mamãe pra fazer o seu prato de comida, pra arrumar a sua cama, para lhe dizer: “É hora do banho”. “Por isso deixará pai e mãe...,” não é pra qualquer um. Os votos feitos no altar também não. Eu prometi amar, respeitar, honrar, ser fiel na doença e na saúde, na pobreza ou na riqueza, prometi cuidar da Valkíria até que a morte nos separasse o que Cristo nos viesse buscar. Ela descobriu em mim muitos defeitos que não havia percebido durante o namoro. Eu também descobri defeitos que não tinha visto antes. Nada mais natural também, não é? Afinal, mesmo que vivamos cem anos ao lado de uma pessoa não chegaremos a conhecê-la plenamente.

Por isso mesmo a desculpa da tal incompatibilidade de gênios para a separação não passa de uma desculpa esfarrapada, sem qualquer fundamento. O estranhamento pela descoberta de fatores que nos desagradam no parceiro não pode ser maior do que a satisfação da vida a dois, dos momentos de carinho e cumplicidade, do falar baixinho na cama, que é, segundo o cantor, “privilégio de quem ama”.

E o amor entre mim e Valkíria parecia superar todos os obstáculos. Mesmo diante de tantas decepções pelo fato de às vezes eu não ser “homem” o suficiente, seja em relação aos cuidados que devia ter com ela, enquanto vaso mais frágil, seja em relação aos assuntos do lar, Valkíria assumia uma postura corajosa de manter viva a chama do nosso amor. Ela me incentivava a melhorar, a ser mais crente, a assumir o papel de cabeça do lar. Mesmo minha pouca disposição de manter a regularidade do ato conjugal não a impedia de se declarar apaixonada por mim. E foi de uma dessas relações que veio ao mundo nossa linda filha Vitória. Fazíamos tabela, e como Valkíria tinha sido demitida de sua empresa, acordamos não ser a hora propícia para ter um filho. Contudo, a tabela furou e eis que num belo dia, Valkíria começou a sentir enjôos. A menstruação não veio dentro de uma duas semanas e o alerta foi aceso. Compramos um teste de farmácia. O resultado foi positivo. Ela estava grávida! Sua gravidez não foi fácil. A placenta era anterior e baixa, o que significa que o bebê estava atrás da placenta, quando deveria estar na frente. Qual o drama oriundo do fato? Ora, Valkíria, pela idade, não poderia ter um parto normal. Tinha que ser cesariana. O risco era que, na hora do parto, o médico cortasse a placenta e a hemorragia comprometesse a vida da mãe e da filha. Graças a Deus, depois do sexto mês a placenta se moveu o suficiente para permitir um corte seguro no momento de vir à luz Vitória.

Eram duas e meia da madrugada quando Valkíria me acordou, com um ar de espanto e surpresa no rosto.
- Pedro! Pedro! A bolsa estourou! Imediatamente ligamos para o médico. Em meia hora estávamos na maternidade. O médico chegou quarenta minutos depois, quando Valkíria já estava na sala de cirurgia. Vi tudo pela câmera de Tv. Vi o rosto iluminado de Valkíria, o rosto seguro do médico, e dentro de alguns minutos, via o rostinho enrugado, lindo e ouvia o choro estridente de nossa filha. Nossa Vitória havia chegado. Glória a Deus!

Era um sábado. Vitória, tinha um ano e cinco meses e acordara muito cedo. Valkíria teria que lavar nossas roupas acumuladas de uma semana. Ela precisava de tempo pra lavar tudo. Peguei Vitória e fomos ao supermercado. Voltamos já perto do meio dia. Quase todas as roupas tinham sido lavadas. Almoçamos. Descansamos um pouco. À noite, fui à casa da família de Valkíria entregar um remédio que seu pai me havia pedido pra comprar. Ao chegar, o portão estava aberto. Entrei. Sentei na sala, esperando que alguém chegasse, já que ao olhar nos quartos não vi ninguém. De repente ouvi o barulho de água caindo. Tinha alguém tomando banho. Aproximei-me e ouvi a voz de minha sobrinha Isabel cantando uma música. Minha primeira reação foi voltar e sentar novamente no sofá da sala. Como não chegava ninguém, os pensamentos foram se dirigindo para o banheiro, e meu olhar também. Foi então que não resistindo à tentação peguei uma cadeira e coloquei junto à porta, subindo nela para observar Isabel. Tão logo fiquei em um nível que me permitiu olhar para ela, Isabel imediatamente gritou: “Que falta de respeito!” De uma feita, pulei da cadeira e fui embora para casa.

No outro dia, tão logo nos levantamos, o telefone tocou. Era Isabel. Valkíria atendeu. Em seguida me disse que Isabel queria lhe falar. Saímos mais cedo que o habitual. A escola dominical em nossa igreja começa às nove da manhã. Saímos quinze para as oito. Na casa de meu sogro, Isabel chamou Valkiria para o seu quarto, trancou a porta, e lá permaneceram por alguns minutos. Tinha esperança que Isabel decidisse não contar o ocorrido para minha esposa. Ao sair, Valkíria estava com um ar de peso no rosto e uma tristeza profunda no olhar. Pediu que voltássemos para casa. Tão logo chegamos, Valkiria, enfurecida, disse-me: “Como pudeste fazer aquilo? Eu estou enojada de ti”. Isabel contou não apenas esse episódio como o da casa da praia. Valkiria, transtornada, deu-me um tapa no rosto, e me chamou de monstro. Disse que se restava algum respeito por mim, naquele momento deixava de existir. Disse que a minha máscara iria cair. Imediatamente ligou para a casa de minha irmã e contou tudo. Todos que souberam do fato ficaram estarrecidos, chocados. Valkíria determinou que eu dormisse no quarto de Vitória, até que decidisse o que fazer.

No momento em que termino de narrar esses lamentáveis fatos, questiono-me se é possível que alguém que se julgue um crente em Jesus Cristo possa se comportar como eu. Não tenho certeza se meu casamento com Valkíria continuará. Ela confessou à minha irmã que seus sonhos haviam escorrido pelo ralo. Ela está completamente decepcionada comigo. Desde então somente fala comigo o estritamente necessário. Não tenho brincado com minha filha. Todas as noites tenho dormido sozinho. Vou trabalhar com o coração em pedaços. Quando estive com minha irmã, admiti que estava me sentindo um criminoso, que não tinha condições de olhar nos olhos dos familiares de Valkíria. Antônia disse que Deus havia salvado a minha vida um dia, e que nenhuma situação é impossível de ser revertida. Disse que se eu pedir perdão Deus vai me fazer voltar a ter comunhão com Ele.

Sinto minha alma afundada no mais profundo abismo. Como disse Davi, sinto minha alma envolta em angústias do inferno. Não tenho convicção de que possa voltar a ter comunhão com Deus e com Seus filhos. Estou sem vontade de ir para a igreja. É lá o lugar dos pecadores arrependidos. Nosso pastor sempre diz que o pecado embrutece o homem. A estupidez me conduziu ao erro. Tinha tudo, pregações edificantes, irmãos carinhosos. Uma esposa fiel e uma filha maravilhosa. Tinha comida espiritual da melhor qualidade. Havia à minha disposição verdes pastos nos quais poderia descansar. Ontem mesmo li a parábola das cem ovelhas. O que faz um pastor que tem cem ovelhas e perde uma delas? Vai atrás da que se perdeu. Eu estou perdido. Tenho cometido pecados grosseiros. Nunca traí minha esposa com outra mulher. Os prazeres transitórios do pecados valem tanto assim? Valem o meu casamento, os meus sonhos, a minha vida? Corro o risco de perder minha esposa, minha filha. O que será de mim? Há alguma possibilidade de essa situação ser revertida?
Ontem à noite fui ter com as duas envolvidas. Esse foi o momento crucial do episódio. O que falaria a elas? Pediria seu perdão? Dir-lhes-ia que estava profundamente arrependido, que se pudesse não teria feito o que fiz? Contei-lhes de como tenho lutado a vida inteira contra esse espinho na carne. Disse-lhes que tinha esperança, no fundo do meu coração, que Deus usasse o episódio para me fazer voltar para junto d’Ele.

As experiências espirituais que narrei não podem ter sido meras fantasias da minha mente. A vida que um dia pensei ter vivido, a alegria que julguei ter experimentando, a paz que achei ter encontrado meu coração não podem ser frutos de minha imaginação. Se o pecado havia me impedido de crescer na graça e no conhecimento do Senhor Jesus Cristo, quem sabe o fato de as pessoas que mais amo e que me amam terem descoberto tudo aquilo que lutava por manter em sigilo, possa ser usado por Deus com uma espécie de libertação, pra que minha alma possa continuar o vôo rumo à santidade, rumo à plenitude de vida. Se as amarras do pecado mantinham meu coração preso às trevas, agora quem sabe a luz do Espírito Santo possa me conduzir a um nível de comunhão com Deus jamais experimentado até aqui.

Disse a Cristina e Isabel que elas estavam justamente magoadas comigo e que eu não esperava ouvir de seus lábios a declaração de perdão, mas que pedissem que Deus lhes revelasse o propósito de tudo o que aconteceu.

- Pedro, se a partir desse fato nós percebermos mudanças na tua vida, sem dúvidas nós vamos entender o propósito de Deus para tudo isso. Essa foi a reposta de Cristina. Isabel não conseguia falar nem olhar em meus olhos. Em casa, pedi perdão também para Valkíria. Não sei se ela me perdoará. Não sei se um dia nosso casamento será como foi no início. Disse-lhe exatamente o que disse para sua irmã e sobrinha. Disse-lhe que me encontro profundamente abatido e que essa semana foi a pior semana de minha existência. Sei que o meu pecado foi grosseiro aos olhos humanos. Sei que os irmãos, se um dia dele tiverem conhecimento, provavelmente concluirão que todas as minhas atitudes foram falsas, todos os meus momentos de devoção foram mentirosos, todos os meus conselho, vãos, toda minha ajuda, inútil.
E Deus, o que estará pensando disso tudo? Terá Ele algum bom pensamento a meu respeito? Eu pequei contra Sua santidade. Fiz o que era mau aos Seus olhos. Pratiquei atos abomináveis. Haverá em Seu coração o desejo de me receber de volta, à semelhança do pai que recebeu com alegria o filho pródigo? E se nunca fui Seu filho, poderá Sua graça ainda me alcançar de modo que eu me torne um filho Seu? Tenho esperança de voltar a pensar em Deus como um filho amoroso pensa em seu querido pai. Porém, no estado em que me encontro me questiono se ainda é possível que Deus faça brotar vida em mim, faça meu coração sentir o amor dos primeiros dias, quando Ele era o meu bem supremo, o Ser em Quem minha alma se deleitava profundamente.

Quando o apóstolo Paulo pregava no Areópago, em Atenas, fez referência a alguns poetas gregos, os quais diziam ter sido gerados por Deus. Se Deus me gerou para ser uma árvore frutífera, para dar frutos que glorifiquem o Seu nome, e por não cuidar para não cair, o pecado conseguiu me transformar em um galho seco, morto, separado de Deus, tenho a esperança que o Senhor, por Sua misericórdia, permita que eu O encontre novamente, e, como disseram os poetas de nossos dias, que nesse encontro eu ache novamente a vida, “a vida que nasce na morte...um broto no galho morto”
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui