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Contos-->Um broto no galho morto - III -- 15/10/2003 - 12:39 (Clóvis Luz da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
No esforço por viver em piedade, temo que tenha concorrido para o meu desânimo uma terrível decepção com minha igreja no tocante à doutrina. Vivíamos em Belém o auge do movimento de renovação carismática ou pentecostal. Minha congregação havia surgido como parte de um outro movimento, não carismático, mas de afirmação dos conceitos de ética e moralidade na religião. Criada uns quatro anos antes de me tornar membro, minha igreja nasceu como fruto da exclusão de seu pastor de uma denominação histórica, da qual saíram outros pastores, que fundaram também outras igrejas. Dita denominação histórica era comandada por um pastor de quem se dizia não ser um crente, um convertido. Dominava a igreja através de artifícios políticos, como colocar nos postos chaves pessoas de sua inteira confiança, às quais podia influenciar, manipular, melhor dizendo. E sempre que alguém, fosse pastor ou um simples membro, questionasse sua autoridade, logo achava um meio de expulsar o atrevido. Era uma igreja “tradicional”, logo, qualquer igreja formada a partir dela seria também rotulada de tradicional. Entenda-se aqui tradicional não apenas no tocante às doutrinas como também nos aspectos formais do culto. Naquele momento, numa igreja tradicional geralmente as músicas eram de hinários, não havia palmas, bateria, danças, gritos de aleluia e glória a Deus.

Para confrontar esse tipo formal de culto, minha igreja adotou o modelo “renovado”, que significava abrir mão parcialmente dos hinos tradicionais, cantando agora os “corinhos”, com melodias e ritmos mais “agitados”, que permitiam palmas, danças, bateria, guitarras, etc. Ou seja, quanto à formalidade, as mudanças foram cosméticas, aparentes. Foi a questão teológica, todavia, a que maior impacto trouxe à minha vida.

O entendimento de que o cristão tinha que ter um relacionamento tão íntimo com Deus a ponto de tratá-Lo quase como um “companheiro”, a certeza de que por causa dessa intimidade profunda todos tínhamos que reivindicar a unção de Deus, a recusa em admitir que o diabo pode fazer cair um cristão, a negação da doença e da pobreza enquanto possibilidades contingenciais para qualquer cristão independentemente do grau de sua fé, a afirmação de uma alegria absoluta mesmo em meio à dor, o que nos tornava “super-crentes”, faziam parte do arcabouço teológico que fundamentou essa onda de renovação carismática em nossa cidade e creio que em todo o país. Tanto que meu querido pastor se recusou a continuar cantando “Sossegai”, que na segunda estrofe anuncia: “Mestre quão grande tristeza me quer hoje consumir...”, porque, como ele sempre afirmava, o crente cheio do Espírito jamais pode estar abatido pela tristeza, pois, dizia ainda, “a alegria do Senhor é a nossa força”.
O mais grave, contudo, foram as “inovações” carismáticas. Não quero entrar aqui no mérito das profecias, das visões, do falar em línguas, do batismo no Espírito Santo, dos arrebatamentos. Havia outros detalhes mais intrigantes, como por exemplo o fato de nosso pastor saber quantas pessoas num domingo à noite iriam aceitar Jesus, quantas seria curadas. Nessas sessões de cura, dizia nosso pastor que o Espírito Santo lhe revelava até mesmo que tipo de doença a pessoa tinha no momento exato em que estava sendo curada. Tudo isso me deixava confuso, pois não achava uma correspondência lógica entre o triunfalismo de nossa igreja renovada e o estado lamentável de algumas vidas dentro da congregação e mesmo no estado geral do bairro e da cidade. Como poderia nossa igreja ser tão “poderosa”, tão cheia de dons espirituais e as vidas de seus membros continuarem tão medíocres no testemunho diário, e o bairro não ser afetado por toda aquela renovação? Parecia ser uma simples maquiagem de cunho misticista, e não porque Deus, de fato, estivesse revelando seu poder às pessoas da igreja renovada mais do que revelava quando era tradicional.

Um dos episódios mais chocantes em relação à soberba espiritual que caracterizou a conduta de alguns dos expoentes do movimento de renovação carismática em Belém ocorreu quando eu já havia saído da igreja. Estava na cidade para uma palestra sobre avivamento o pastor Erlo Stegen, cuja vida Deus usara para realizar um grande avivamento na África do Sul. No sábado à noite, durante o testemunho do pastor Erlo, encontrei do lado de fora do local de culto o pastor de minha igreja, que, após ouvir alguns relatos do que Deus havia realizado na África do Sul, simplesmente virou para mim e disse:

- Isso é fichinha! Querendo afirmar que as experiências que ocorriam nos cultos carismáticos em Belém eram provas muito mais contundentes da manifestação do poder do Espírito Santo do que as experiências vivenciadas pelos irmãos africanos durante o período de avivamento. É claro que os fundamentos teológicos equivocados estão por trás dessas atitudes renovacionistas mais do que soberbas, beirando à blasfêmia. Lembro-me que quando fui visitar uma das igrejas ditas renovadas, estava pregando uma senhora bastante conhecida em todo o país exatamente por causa da ênfase que dava à intimidade que cada cristão deveria ter com Deus. Afirmou ela à certa altura que era tão íntima de Deus que o pecado não a assustava mais. Sai chocado, pensando em quanta presunção havia naquele coração. O pecado não assustava mais aquela senhora! Eu vivia em crises constantes por causas de meus pecados e ouço alguém dizer que o pecado não é algo assustador.

Nesse período, alguns membros da igreja começaram a ler livros que continham a doutrina reformada, ou puritana. Não me lembro como eles conseguiram ter acesso a essa literatura; sei, porém, que pelo menos dois deles, um casal de namorados, haviam sido impactados pela leitura de tal modo que resolveram sair da igreja porque concluíram estar a mesma completamente equivocada em relação à sã doutrina. Em uma das conversas que tive com eles, afirmaram que a Palavra de Deus não dava fundamentos a muitas da ações praticadas nos cultos, dando como exemplo o “toque de poder”, pelo qual alguns irmãos diziam ter sido arrebatados. A essência da doutrina que esses meus dois amigos haviam encontrado naqueles livros era de natureza calvinista. Consistia sobretudo em negar aqueles malabarismos espirituais que haviam se tornado freqüentes na igreja e afirmar a soberania de Deus seja nas manifestações sobrenaturais seja na salvação dos pecadores. Eles afirmavam ser absurdo e contrário à Palavra de Deus que o pastor anunciasse que “no culto de libertação de sexta-feira, Deus vai libertar e salvar aqueles que estiverem dispostos a recebê-Lo, vai curar suas doenças e expulsar os demônios que os atormentam.”

A partir dessas conversas comecei a viver numa batalha mental, tendo que confrontar minhas antigas (nem tanto assim) convicções teológicas arminianas com as novas doutrinas calvinistas. O tempo todo ouvia que depende do homem a salvação de sua alma no sentido de que, não querendo aceitar a Jesus como Salvador, este homem praticamente decide o seu destino eterno. Tantas vezes nas pregações, pastores da igreja diziam “só depende de você ser salvo...Cristo está de braços abertos esperando você.” Resolvi, então, comprar livros de teologia. Comprei um e li parte dele, o suficiente pra me convencer de que a sã doutrina era a reformada, com base calvinista. Entusiasticamente, comecei a defender os postulados de Calvino. Virei apologeta da predestinação. Certa vez, visitando uma outra denominação renovada, ouvi o pastor dizer em alto e bom som que “a vontade humana anula a soberania de Deus”. Aquilo me soou tão blasfemo que no final do culto disse ao pastor: “Desculpe-me, pastor, mas o senhor está tremendamente equivocado, pois nada nem ninguém pode anular a soberania de Deus”. Não me lembro qual foi a resposta do pastor, só sei que nunca mais voltei para ouvi-lo pregar.

Dias depois, tive um sonho estranho, no qual eu jogava o único livro de teologia que tinha no vaso sanitário. Apesar de não acreditar que Deus falasse em nossos dias por meio de sonhos, aceitei sem questionar que sua vontade para mim era que eu fosse um crente piedoso e não um ardoroso teólogo. Não joguei o livro no vaso, todavia não sei se o lerei por completo algum dia.

Os dois jovens que me apresentaram à doutrina reformada, por não suportarem mais o espetáculo de milagres, curas e prodígios ao seu ver frutos de “meninice espiritual”, pediram sua carta de transferência para uma outra igreja, coincidentemente da mesma denominação de onde saiu o nosso pastor, uma denominação histórica e tradicional. Se o leitor ficou confuso, deixe-me esclarecê-lo. Há no Brasil denominações A, B e C. A têm vários segmentos, assim como B e C. Digamos que algumas igrejas da denominação A não concordem mais com a doutrina ou linha política de sua denominação, elas então formam um novo segmento, ministério ou presbitério, porém não abrem mão do nome de sua denominação, entenderam? Pois bem, a nova igreja de meus dois amigos também fazia parte do mesmo ministério da igreja daquele pastor de quem se dizia não ser convertido, lembram-se? E o novo pastor deles também fora expulso daquela denominação, indo congregar nessa igreja, que juntamente com outras formaram um novo segmento, ministério, presbitério, como queiram, tendo-se tornado pastor algum tempo depois de ter chegado na igreja. Cerca de um ano depois deles terem saído, saí eu, indo para a mesma igreja. Dentro de algum tempo fui integrado ao grupo musical, tocando contrabaixo. Entreguei o lugar, afirmando ao pastor que hipocrisia não combinava com a vida cristã. Não é difícil de o leitor concluir a que hipócrita estava me referindo.

Não foi a igreja a única mudança que ocorreu em minha vida nesse momento. Decidi que era hora de fazer vestibular. Incrivelmente, eu que antes nada queria saber de assuntos políticos, por julgá-los desnecessários a um cristão, agora estava tão crítico, tão apto a questionar a realidade de meu país, e tanto que resolvi prestar vestibular para Ciências Sociais. Queria ser cientista político. Talvez fosse uma reação natural ao fato de, em meus momentos de alienação política, ter votado em Collor para presidente!
Como trabalhava e podia pagar, resolvi fazer vestibular em uma universidade privada. Consegui aprovação. Novas amizades, novas influências. “As más companhias corrompem os bons costumes” tornou-se uma verdade naquela minha primeira experiência acadêmica. Como disse alguém, não me lembro onde nem quando, “todo homem dotado de potencialidades, cedo as descobre”. E minha potencialidade tinha a ver com a imensa capacidade de esquecer o que havia aprendido na igreja, de optar pelas novas amizades em detrimento das antigas, de entregar-me de corpo e alma a algo que até pouco tempo abominava. Ainda no primeiro semestre haveria eleições para o centro acadêmico. Fui inscrito em uma chapa de oposição. A chapa concorrente, da situação, tinha o apoio da reitoria. Num dos debates dentro de sala de aula, o líder da chapa, hoje um advogado famoso na cidade, destruiu meus argumentos sobre como sua chapa não havia respeitado os acordos para a utilização dos muros da universidade na campanha. Minha primeira disputa, e saí derrotado, feito um cachorrinho que foge com o rabo entre as pernas. O meu consolo foi ter ouvido de uma colega que se ela pudesse teria jogado uma cadeira na cabeça do meu opositor! Se havia deixado o pastor arminiamo sem palavras ao defender a soberania de Deus, desta feita a habilidade política do jovem acadêmico de direito engoliu minha intrepidez, deixando-me paralisado diante de meus caros colegas.

Sabia, apesar além da imensa capacidade de ser influenciado pelas novas amizades, que também tinha certos atrativos que chamavam a atenção da classe. O maior deles, sem dúvida, era meu esforço em aprender. Único aluno da sala a tirar dez em todas as provas de filosofia, ouvi certo colega perguntar: “como tu consegues?” E em relação às mulheres minha experiência não se alterou um milímetro. Tive todas as chances de encontrar uma namorada. Creio que a graça de Deus me guardou mesmo nesses momentos de profunda apatia espiritual. Certa senhora, que congregava em uma igreja pentecostal, parecia se sentir atraída por mim. Num dos momentos em que conversávamos, ela comentou que estava com frio. Perguntei se podia apertar sua mão para lhe dar um pouco de calor, e tenho convicção que não havia malícia nem outras intenções na oferta. Simplesmente ela me respondeu: “se quiseres, podes esquentar meu corpo inteiro!”. A senhora em questão, pelo título que lhe dei é fácil concluir, era casada!

Na nova igreja não iniciei nenhum relacionamento afetivo, pelo menos não que pudesse ser considerado um namoro. Havia mais mulheres do que homens, coisa comum em nossas igrejas. Havia mais jovens do que senhoras. E mais rapazes do que senhores. Era uma igreja grande, com mais de cento e cinqüenta membros. Tinha uma tendência conservadora em relação ao casamento, quero dizer, não estimulava um namoro sem que os envolvidos tivessem condições de pensar no casamento. Condições materiais, mais até do que emocionais ou espirituais; pelo menos era essa a minha impressão, fruto de haver tão poucos casais de namorados na igreja, inobstante haver tantos jovens solteiros já em idade de pensar no assunto. Aos poucos fui compreendendo que, dentro de uma lógica puritana, a igreja privilegiava um comportamento ponderado, equilibrado, que não permitisse a tomada de decisões precipitadas, das quais pudéssemos nos arrepender no futuro. Se um rapaz manifestasse interesse em alguma moça, ele tinha que apresentar aquelas condições que o consenso da comunidade estabelecia como fundamentais, e, como já disse, tinham a ver, por exemplo com o fato de o rapaz ter um emprego, estar estudando, etc. Pra que despertar o amor antes que este o queira? Por isso não me aproximei de nenhuma menina da igreja.

As antigas amizades da outra igreja foram mantidas, e do grupo de amigos mais próximos quase todos permaneciam na mesma igreja, outros saíram do país, alguns voltaram para o mundo, outros foram para outras igrejas. E sempre que o tempo permitia, nos encontrávamos para atualizar nossas expectativas quanto ao futuro. E a maioria delas, acreditem, tinham a ver com casamento, com filhos; quase nenhum com empregos ou estudos. Sônia, João, Valério, Júnior, Vera, Alfredo. Num dos dias em que estava conversando com Sônia em frente de sua casa, eis que chega sua prima Dalva, vinda de Abaeté. Era crente, branca, tão branca que, mais na frente, brincou dizendo que ao tomar café sem leite dava pra ver o líquido escorrendo dentro da garganta! Nos apaixonamos. E quão boas foram as viagens semanais que fazia na balsa que me levava para os braços de minha amada. Eram quarenta e cinco minutos de ansiedade sobre as águas barrentas do rio Guamá, de pensamentos sobre como nossos filhos seriam lindos. Não durou muito. Certa vez, ao chegar em sua casa, fui tratado friamente por Dalva. Nesse dia conclui que ela não me amava de verdade e decidi terminar o namoro. Não sei o que pensavam as meninas de minha igreja pelo fato de eu ter iniciado namoro com alguém de tão longe, tendo tantas meninas bacanas tão perto de mim. O namoro terminara, por que os lamentos?
Sônia casou alguns anos depois, tem dois filhos. Júnior foi embora para os EUA; parece que entrou em uma comunidade judaica. Vera teve uma filha com Valério, mas não se casaram porque a mãe dela não permitiu. João, que um dia se apaixonou por Sônia, virou missionário no Japão. Alfredo se casou, tem uma filha. E Valério é também um missionário, morando na Inglaterra com suas duas filhas, a que teve com Vera e a mais nova, fruto de seu casamento com Tina. Dalva se casou com um missionário, e ainda hoje tenho uma foto, na qual aparece sentada nas pedras à beira de um rio que fica nas terras onde foi ser missionária.

Não fiquei muito tempo nessa outra igreja. Não...não fui para uma outra denominação. Descobri, quase que por um acaso, que havia uma igreja do mesmo presbitério no bairro onde moro. Ainda estou nessa igreja. Outra mudança significativa nesse período: decidi fazer novo vestibular, só que desta vez para a universidade pública. Fui aprovado novamente em Ciências Sociais. Na universidade tomei conhecimento de um grupo de irmãos que se reunia às quartas-feiras para orar e ler a Bíblia. Confesso que não estava muito interessado, porém, pela insistência de sua líder, fui a algumas reuniões. Esse grupo, conhecido como universitários de Cristo, promoveu neste mesmo ano um encontro em Belém de universitários cristãos. Veio gente do Amazonas, do Piauí. Como palestrante veio do Amazonas um irmão muito piedoso. Era negro, alto, calvo, fala mansa, tranqüila. Não me lembro de suas palavras nesses encontros, mas sei que inspiravam reverência, como se sua postura cristã merecesse nossa admiração, sendo digna de ser imitada. Fui escalado para ser um dos guias dos visitantes quando fomos visitar o museu Goeldi. Edna parecia ter se interessado por mim. Eu me interessei por ela. Tinha os cabelos negros e fartos, lindos dentes brancos e o sotaque piauiense inconfundível. Ao final desse passeio, deu-me seu telefone. Depois que voltou para Teresina tentei falar com ela por diversas vezes, nunca consegui.

Minha insistência no curso foi premiada por uma nova desistência. As teorias marxistas, humanistas, haviam me imprensado contra a parede. Como conviver mentalmente em harmonia se havia o choque entre aquilo que aprendi na igreja sobre Jesus, Deus, a Bíblia, e as torrentes de doutrinas materialistas que negavam toda minha fé? Não consegui avançar com medo de me perder definitivamente em meio a manifestos comunistas, estruturalismos e outros ventos de doutrinas ateístas. E aconteceu de me interessar por uma jovem da igreja, que à época estudava matemática na universidade. Foi, todavia, uma impressão passageira do meu coração solitário e desesperadamente carente; sequer cheguei a conversar com ela sobre o assunto. Tempos depois, segundo me revelou uma pessoa que soube do episódio, ela teria dito que “gostaria que tivesse dado certo”. A vida nessa outra igreja continuava igual como antes. Novas pessoas, novas amizades, os velhos pecados me atormentando, a mesma apatia espiritual, e o caminho para a ruína continuava se sedimentando pelas constantes quedas, seguidas de tentativas frívolas, porque insinceras, de voltar a ter a mesma alegria e vigor dos primeiros tempos; ainda suspirava pela possibilidade de ter de volta o entusiasmo do primeiro amor.

Tinha conseguido uma certa estabilidade na vida espiritual, tanto que no começo do ano fui nomeado diácono, um oficial da igreja. Achei muito intrigante o fato de meu pastor, um homem inteiramente voltado para o ministério, piedoso, dedicado ao estudo e pregação da palavra, ter avalizado a escolha. A igreja tem um conselho responsável pelas decisões mais importantes da vida eclesiástica. Desde a compra da casa ao lado para ampliar a igreja, passando pela decisão de criar uma escola evangélica para suprir a carência desse tipo de instituição no bairro, até a confirmação do nome dos oficiais, depois da escolha por votação na igreja, tudo é decidido por esse conselho, formado pelos presbíteros e o pastor. Minha surpresa pela escolha devia-se ao fato de não me julgar apto para o cargo, que exigia uma vida de testemunho irrepreensível, seja no serviço seja na vida diária. Ou seja, alguém cujo testemunho fosse duvidoso, sobre quem as demais pessoas não podiam se referir como sendo um crente em Deus, amante de Sua palavra, submisso aos padrões bíblicos de comportamento, jamais poderia ser colocado em uma posição de autoridade. Seria uma afronta à santidade de Deus. Seria um judas cuidando da bolsa das ofertas!

Havia observado, logo após ter chegado à igreja, que havia duas jovens que sempre entravam e saíam juntas dos cultos. Eram as irmãs Valkíria e Cristina. Confesso que me interessei logo por Cristina, que à época também estudava na universidade, cursando contabilidade. Valkíria estudava economia na mesma universidade privada de onde saí por não poder mais pagar as mensalidades. Exatamente como aconteceu nas outras vezes em que pensava estar gostando de alguma mulher, aquele meu interesse por Cristina era, como se diz, “fogo de palha”, principalmente porque, sendo ela uma jovem extremamente arredia e exigente, logo descartou qualquer possibilidade de namorar comigo, já que concluiu ser eu um rapaz completamente inseguro e instável, cujo coração se movia de um lado para o outro, dominado por paixões tão fulminantes quanto inconsistentes, à semelhança de uma folha lançada de um lado para o outro pelo vento.

Meus olhos, então, repousaram sobre a face de Valkíria. A partir do momento em que comecei a observar aquela jovem mais detidamente, meu coração foi nutrindo por ela algo que não digo ter sido uma paixão da mesma natureza das anteriores, se é que seja possível haver distinção entre um e outro tipo de paixão. O que posso dizer é que a cada dia admirava mais o jeito seguro e ao mesmo tempo sereno de Valkíria. Era uma jovem belíssima, talvez a mais bonita que tenha conhecido desde a primeira vez que coloquei os pés na minha primeira igreja. Valkíria tinha os cabelos negros como as asas da graúna, tomados de cachos que pareciam pérolas negras em movimento constante; seu sorriso era enorme e contagiante, além de muito alto, a ponto de todos ouvirmos quando soltava uma de suas gostosas gargalhadas. Feito um animal arisco, ela sequer olhava pra mim, sequer me cumprimentava. Parecia mesmo sentir alguma repulsa toda vez que me encontrava, tanto que se esforçava para não cruzar seu caminho com o meu. Isso, é óbvio, surtiu em meu coração um efeito totalmente inverso ao que ela talvez intentasse com sua evidente resistência à minha pessoa. Cada vez mais me convencia que o meu sentimento por ela era inteiramente diferente de todos os outros que alimentei por outras mulheres.
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