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Contos-->Um broto no galho morto - I -- 15/10/2003 - 12:23 (Clóvis Luz da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Chamo-me Pedro, e minha intenção ao escrever sobre minha vida não é me justificar diante dos homens, mesmo porque os meus pecados não podem ser atribuídos a nada nem a ninguém, senão à minha própria natureza pecaminosa. Não obstante, quero iniciar esta narrativa voltando um pouco no tempo, para que, quem tiver oportunidade de conhecê-la, possa compreender que um “abismo chama outro abismo”, possa igualmente reconhecer que muitas vezes não sabemos porque o amor de Deus um dias a nós se revelou, e que, para chegarmos a essa compreensão, algumas vezes Deus permite que entremos no mais profundo de nossos abismos, de onde, por Sua infinita graça, Ele nos resgata, chamando-nos para voltar à Sua poderosa mão, de onde ninguém, nem mesmo o diabo, pode nos tirar. Vamos aos fatos.

Faz trinta anos que numa certa manhã de sábado o sol atravessava com seus vigorosos raios as frestas da casa n° 42 da travessa Gaspar Dutra, no Marco, meu lar. Senti no rosto o calor que todos os dias me servia de despertador. O dia de sábado para mim não tinha outro sentido senão o de plena liberdade, já que não teria que ir correndo ao banheiro me lavar com a água geladíssima do poço, escovar os dentes, tomar um café bem paupérrimo e depois ir à escola. Estudava no Grêmio Rodoviário Municipal (ufa! estava de férias!), vaga conseguida por meu pai, um esforçado servidor público do município de Belém do Pará, que trabalhava como gari nos dias da semana e no fim dela como carreteiro, levando as compras dos fregueses da Bandeira Branca até suas casas, ou levando os sacos de farinha dos caminhões até as barracas onde era vendida, nessa mesma feira. Um dia antes havia resolvido que na manhã radiosa do sábado livre iria visitar minha avó, que morava a poucos metros de minha casa. A sua possuía um quintal amplo, com árvores enormes e algumas galinhas mariscando o terreno, atrativos que justificavam a visita, ainda que vovó fosse minha principal motivação, uma senhora bastante carinhosa que sempre me aconselhava quando eu queria mais a rua do que a escola. Findo o o ritual de todas as manhãs, dirigi-me à casa de vovó, encontrando-a no quintal, debruçada de costas, pegando alguma coisa do chão, numa posição que deixava aparente suas intimidades. Eu não quis desviar meu olhar, e esse detalhe iria marcar desgraçamente minha vida dali para frente.
De volta para casa, após ter brincado e conversado com vó Dorica, eu queria ansiosamente encontrar meus colegas da vizinhança para continuar a rotina de sábado, que consistia nas tarefas comuns das crianças pobres, no lazer levado a cabo basicamente com artefatos simplórios feitos de latas de óleo, como no caso dos carrinhos, outros feitos com meias usadas, recheadas de papel e plástico, como no caso das bolas usadas no futebol tão feliz de meninos sem inocência. O fato de o Brasil ter sido eliminado da copa do mundo pela Holanda havia poucos dias parecia ter infundido em nossas mentes o desejo de ser melhores jogadores que aqueles pernas de pau incapazes de deter o carrossel holandes de Cruiff! Antes de conseguir brincar, todavia, eu passaria por outra experiência que a psicologia tentaria explicar ser, juntamente com aquela primeira, as verdadeiras causas dos problemas futuros que enfrentaria quando tivesse que me relacionar com as mulheres, em qualquer nível de relacionamento. Acenando para mim, um jovem conhecido da rua mostrava na mão um objeto qualquer, como que me oferecendo. Curioso e se desconfiar de nada, aproximei-me de Gilvandro. Foi quando ouvi a proposta:

- Pedrinho, eu te dou este ploc se nós formos para debaixo da minha casa. A casa em questão tinha uma base sobre pernamancas que distava do chão coisa de um metro.
- Pra fazer o quê? Indagei, com ares de inocência impregnada de cobiça, sem disfarçar meu desejo de ter aquela goma tão rara de comprar, por tão raramente ter algum dinheiro nas mãos.

Foi então que o desgraçado rapaz pegou minha mão e me levou para debaixo da casa, onde, oculto da vista das pessoas, fez algo a que eu lutaria o resto de minha vida para esquecer. A única razão que me faria menos infeliz sempre que o fato voltasse à mente, era que, apesar do episódio ter se revestido de densas nuvens que me impedem de saber o que realmente aconteceu, dor nenhuma eu havia sentido, e seria essa a garantia de que o intento maligno daquele homem por algum motivo não fora cumprido integralmente. Não posso fugir do passado, sei que fui vítima de abuso sexual. O que me deixa confuso é não saber dizer se aceitei aquele convite inocentemente, ou melhor, iludido pela promessa de receber um bombom, ou se, mesmo sabendo o que Gilvandro tinha em mente, obedeci aos impulsos de minha natureza corrompida, deixando-me à mercê daquela violência. Por alguma razão o abuso não se consumou, porém suas marcas em minha vida são indeléveis e somente Deus sabe o quanto elas têm influenciado minha existência.


Márcia era uma linda jovem morena, cabelos negros, compridos e brilhantes. Tinha vinte anos, e dois irmãos, Alfredo e Mônica. Passava um pouco das seis e meia da sexta-feira e o sol já se tinha ido, inaugurando sua ausência uma noite de lua nova, noite tão negra quanto os cabelos de Márcia. Ela abriu a porta de sua casa, saindo com uma toalha nas mãos. Parou por um instante, olhou para o céu, para os lados, caminhou alguns metros e entrou no banheiro que ficava em frente da casa, fronteiriço à cerca de madeira da casa de cujas frestas eu tudo observava sem ser notado, à semelhança dos leões das selvas africanas que se escondem de suas presas sob os arbustos até que concluam ser a hora perfeita do bote. E assim como um leão somente sacia a fome quando devora sua vítima, eu vivia em busca de saciar a mente obscena e libertina, e isso somente era possível se devorasse a imagem despida das mulheres. Nenhuma força me pressionava mais, impelia mais do que a voz interna que me ordenava furtar a intimidade alheia, numa contemplação oculta e prazeirosa da nudez de quem sequer supunha estar sendo observada, violada em seu momento mais íntimo e particular, quando a única sensação que torna alguém completamente dono de si é estar certo de que é impossível um outro alguém se apropriar, usurpar algo que lhe é inteiramente negado, indiscutivelmente vedado pelas leis dos homens e da consciência. E não se fala aqui das leis divinas porque a mim jamais havia chegado uma semente qualquer do Evangelho que me fizesse de algum modo considerar minhas ações como dignas de condenação e punição eternas. E, obediente à voz que me dominava, outra coisa não fiz senão furtivamente me dirigir à cerca, pendurando-se nela de forma sutil para observar Márcia tomando banho. Eu estava tão certo que a jovem donzela não me havia notado que ali fiquei até a última gota de água percorrer o corpo dela. E neguei veementemente no outro dia quando minha irmã Antônia me inquiriu sobre o fato de Márcia tê-la procurado para reclamar de ter sido observada por mim.

Quando eu tinha quinze anos minha família mudou de bairro. Antônia, com muito esforço, conseguiu financiar uma casa em um complexo residencial bem distante de onde morávamos desde que chegamos em Belém. Foi uma decisão trágica pra mim. Eu vivera a vida toda ali, criara meu círculo de amigos, fortalecera laços de profunda amizade com alguns destes, nos quais se incluía Mônica, a quem eu julgava amar, porque dela recebia alguma atenção quando, sentados em frente à casa de Lúcio, compartilhávamos nenhuma certeza e todas as dúvidas que há no mundo. Eu me sentia muito confortável nessa relação, pois tinha certeza que Márcia nada havia falado com Mônica sobre o fato narrado há pouco, pois, nesse caso, provavelmente a moça criaria tal repugnância em relação a mim que entre nós seria impossível mesmo a amizade compulsória comum entre vizinhos dos bairros de periferia. Esse, porém, não poderia ser considerado o único caso de amor na minha vida, porque, quando tinha dez anos, beijei pela primeira vez uma mulher, na verdade uma criança como eu, a Suely. Pensava que era amor. Com essa idade eu nada sabia de amar, de gostar profundamente, de fazer qualquer coisa para estar do lado de quem se ama. Queria mesmo era cabular aulas, tomar banho na piscina de uma empresa pública perto de minha escola e jogar bola na mesma rua onde a empresa se localizava. Essas lembranças todas vieram à tona quando, dolorosamente, tive que admitir não ser possível reverter a situação, aceitando deixar pra trás amigos, amores reais e imaginários, de tempos em que a inconsciência de alguns pecados me levava a crer que todas as coisas me eram permitidas e o mundo todo estava à minha disposição. Além do que, lamentava minha natureza pervertida, eu não poderia mais observar a irmã de Mônica tomando banho às noites sem lua, tão escuras quanto os cabelos de Márcia.

A nossa nova casa era bem melhor que a anterior. Trocaram-se as tábuas, as frestas e os cavacos por alvenaria e telhas de barro. A água do poço foi trocada por água encanada. O único quarto onde dormiam seis pessoas se trocou por dois, agora para abrigar sete familiares, já que o companheiro de uma de minhas irmãs foi morar conosco na nova casa. Mudaram também os aspectos urbanos e sociais. As linhas mal formadas das ruas do bairro, cortadas por valas feitas pelas águas da chuva, deram lugar a uma geometria perfeita, com ruas largas, todas com igual dimensão, e retas, próprias de um planejamento jamais visto por mim em meus quinze anos de existência. Ou seja, aquele amontoado de casas, uma quase em cima da outra, separadas às vezes por becos de um metro onde mal passava uma pessoa, deu lugar a um desenho equilibrado de formas tão incrível que eu pensei estar em um outro planeta. De todas essas mudanças, contudo, a que mais me afetou envolvia as relações humanas. Se no antigo bairro as pessoas quase se tocavam quando tinham que ir para suas casas, naquele outro lugar eu mal podia ver alguém andando nas ruas. Se antes conhecia todo mundo pelo nome, falava com todos, tinha centenas de amigos, na nova casa os dias pareciam não ter fim, pois a melancolia por não poder conversar com outras pessoas além daquelas com quem me relacionava o dia inteiro, parecia querer me levar à loucura. Não demorou muitos dias para que essa tristeza absoluta variasse para alguma alegria quando os primeiros vizinhos começaram a chegar. O conjunto residencial era novo e muito distante dos bairros centrais de Belém. Era imenso, quase uma outra cidade.

Numa dessas famílias que chegaram no bairro havia uma senhorita de quem me tornei amigo. Seu nome era Gercelinda, e sua aparência fazia jus parcial à segunda parte do nome. Tínhamos a mesma altura, e ela não era tão formosa de rosto quanto o era de corpo. E foi lá pelas tantas, num dos dias em que estávamos sentados num banquinho em frente ao pequeno arvoredo plantado por meu pai, que lhe falei:

- Alguém já disse que tu és muito bonita?
- Tu achas, Pedrinho? Reagiu a senhorita, com ares de quem achou a proposição indevida, não tanto porque se julgasse feia, e sim porque aos seus olhos verdes eu não tinha o perfil ideal de alguém com quem ela quisesse namorar, e mesmo aquele galanteio tão meticulosamente engendrado nada poderia alterar em seu coração que sonhava encontrar um jovem bonito, rico e gentil. E eu, das três condições, malmente conseguia atingir a última, e não era para conquistar aquela donzela minha aparente gentileza, mas para, no momento oportuno, tornar real aquilo que eu já planejava havia algum tempo. Os frutos do mal ainda cresciam em minha mente obscena. Hoje me pergunto como conseguiria refrear um ímpeto sendo ele fruto absolutamente coerente com a primeira semeadura, afinal, havia nascido em iniquidade. Ainda mais quando a água que regava as sementes tinha como fonte o meu coração, donde procedem todos os maus desígnios, dos quais obviamente não podia fugir, da mesma forma como é impossível ao leão faminto rejeitar a carne fresca de um cervo, ou um sedente caminheiro a um pouco de água. Minha carne tinha que ser satisfeita de algum modo.

Gercelinda era inteligente, e muito teimosa também. Numa noite qualquer sua mãe ordenou que ela voltasse para casa às dez da noite, ameaçando deixá-la na rua caso desobedecesse a ordem. Gercelinda ainda argumentou que naquela noite passaria um excelente filme na Tv, o que a impediria de cumprir o mandamento materno. Parece que a genética não privilegia os filhos apenas com os traços benéficos dos pais, pois a mãe de Gercelinda era tão teimosa quanto a filha. E como esta teimou e ficou até às onze na minha casa, assim que bateu na porta de sua casa ouviu de sua mãe:

- Volta nessa mesma pisada e vai dormir na casa de Pedro...Não te falei pra voltar às dez? E assim aconteceu de naquela noite Gercelinda ter que dormir na sala de nossa casa. E na madrugada daquela noite, eu, como tantas vezes, deixei que a voz do meu coração me determinasse as ações, não me importando com a possibilidade de magoar uma jovem tão meiga, que me confiara uma preciosa amizade, dessas que de tempos em tempos surgem, e que perduram pelo resto da vida dos que se fizeram amigos mais chegados que certos irmãos. Como explicar que eu encontrasse tremenda satisfação em apenas tocar as partes de uma mulher? Ou de observá-las tão somente? Poderia ser minha extrema feiura a causa? Ou a timidez dela decorrente? O que me levava a ações tão sórdidas, a obscenidades que me rebaixavam a uma condição de asco aos olhos das mulheres que porventura soubessem os meus segredos? Tornaria-me para elas a escória do mundo, um homem de quem nenhuma delas guardaria boa recordação; pelo contrário, minha imagem em suas retinas lhes causaria pelos resto de seus dias uma repulsa somente equivalente à que se observa em magnetos de pólos opostos, sendo impossível que as partes contrárias mantenham espontaneamente um mínimo relacionamento. E quando toquei em Gercelinda, ela abriu levemente os olhos, e eu jamais soube se ela me viu de fato, ou se aquela foi apenas a ação reflexa do organismo da moça, que se manifestou involuntariamente sem que o seu cérebro tivesse recebido uma ordem previamente estabelecida na mente e, portanto, Gercelinda provavelmente estivesse sob sono profundo quando levantou as pálpebras e no outro dia de nada se lembrasse. Faltava-me a consciência de quanto pecador eu sou. E nada me amedrontava.

Dentre tantos amigos que fiz no novo bairro, havia um grupo menor, selecionado sabe-se lá como, do qual era o membro mais admirado, não porque fosse um líder, talvez por saber, de forma polida, apaziguar os ânimos dos mais exaltados quando o assunto era definir quanto se comprar de maconha, xarope, ou quantas meninas teríamos que “quebrar” na pipoca dançante do “Sambão”, único clube da redondeza, e no qual qualquer um podia entrar, desde que pagasse a entrada, logicamente. Como quase nunca a turma tinha dinheiro para esses fins supérfluos, ficávamos todos a noite inteira em frente ao clube, de braços cruzados, ouvindo “I Want Break Free”, “Billie Jean” e “Like a virgin”, dentre outros hits do momento, esperando a festa acabar para assaltarmos algum “bebum”, de quem esperávamos extrair o suficiente para comprar a maldita droga, mesmo que o dinheiro tivesse que aparecer pela venda do tênis e do relógio furtados do infeliz. Nossa turma fazia parte da segunda geração da malandragem local. Quando ali cheguei, já havia em outros locais do complexo residencial uma turma mais velha, com integrantes maiores de idade, que não admitiam a entrada de elementos “de menor”, porque, como diziam os maiorais das turmas, os mais jovens “pisavam fofo” sempre que uma “bronca” maior acontecia.

Naqueles tempos adolescentes e de trevas era natural que a empáfia nos dominasse, levando-nos a mentir e alterar os dados reais apenas para aumentar nosso prestígio diante dos conhecidos. Por exemplo, em uma festa no famoso Carrossel, pelas tantas da noite encontrei um colar hippye encardido de tanto ser pisado pelos dançantes. Naldo, ao me encontrar com o objeto perguntou:

- E aí, Pedro, de quem esse colar?
- Foi uma “mina” que me deu...
- Ih! Olha lá o cara, tá se dando bem.
Minutos depois, quando viu o colar imundo, deduziu que eu havia mentido somente pra que eles acreditassem ter eu arranjando uma paquera para passar a noite. Por causa dessa habilidade infernal de mentir como se falasse a mais cristalina verdade, eu era um caso interessantíssimo de alguém que soube, até certo momento, enganar a todos os parentes e vizinhos. De um lado, havia o jovem estudante, gentil e atencioso, de outro, o malandro que fumava maconha e tomava vidros de “Tussiflex” às escondidas. Nunca havia participado efetivamente de um assalto, ficando apenas observando as atitudes marginais de meus amigos. Quando decidi que era hora de participar mais efetivamente dessas atividades criminosas, dois fatos revelaram (agora sei) o quanto Deus nos guarda, mesmo sem termos ainda consciência do Seu cuidado. No primeiro desses assaltos fui preso, acusado de ser o vigia de outros dois malandros que entraram no supermercado que ficava atrás de minha casa, onde os policiais encontraram, no dia seguinte, uma máquina de calcular. Não fiquei preso mais que um dia. No outro assalto a providência divina se mostrou mais evidente. Como todos os meus amigos já haviam assaltado alguém decidi que chegara a hora propícia para o meu primeiro assalto. Na alta madruga da noite escolhida para esse ritual de passagem macabro, surgiu um casal na esquina. Peguei uma faca de um dos companheiros, deixei-o chegar mais perto e...

- É um assalto! O casal, paralisado, nada disse nem esboçou qualquer reação por alguns instantes. Todavia, num lance rápido, o homem deu um pulo para trás e puxou um revólver.
- É um assalto?
- Não faz isso, é brincadeira. Não vai te sujar por isso! Quis ajudar um amigo. O rapaz não ligou, e apesar da mulher, desesperada, puxá-lo pelo braço, ele não recuou e puxou o gatilho. Ouviu-se apenas um estalo. A pólvora estava fria, o que impediu que fosse detonada, ou não havia bala na agulha. Novamente o rapaz atirou e dessa vez se ouviu o estampido. Nessa segunda tentativa o revólver estava apontado para cima. Na primeira vez, o revólver estava a dois metros da minha cabeça...E essa lição me serviria muito dali a alguns anos.

O resultado imediato dessas ações impensadas foi que meus pais e amigos não marginais descobriram um jovem preso a vícios e amizades destrutivas, inexplicáveis quando pensavam em quanto eu recebia de atenção e carinho dentro de meu lar, em nada se justificando que buscasse nos crimes e nas drogas uma felicidade jamais possível se permanecesse na condição em que me encontrava. Todavia, o que poderia fazer pra mudar minha própria natureza? Afinal, quando se é jovem, o mundo parece ficar restrito a algumas poucas realidades, que se transformam na essência de tudo o que nos importa ser e querer. As minhas realidades eram futebol, música e vadiagem. Como meus amigos, gostava de fortes emoções. Estávamos dispostos a viver plenamente nossa juventude. E para nós, viver plenamente era ficar o tempo inteiro à disposição dos impulsos juvenis, que nos empurravam para o vício, o furto e mulheres. Nossa linda juventude... Eu não nasci de óculos... Será só imaginação?!!! Não, nada vai acontecer comigo. Posso ver meus amigos saindo das festas, drogados, com más intenções e outras menos prejudiciais e nada disso me comove. As más intenções se materializavam nas inocentes vítimas dos assaltos que praticavam. De vez em quando uma voz, mui tímida, questionava se não bastava roubar o tênis do sujeito, ainda tínhamos que espancá-lo? E se esse homem fosse pai de família, voltando para casa depois de uma árdua noite de trabalho? Sua vida eqüivalia a um par de tênis? Era esse o preço da vida humana?

Um dos elementos da primeira geração da malandragem local havia se convertido ao cristianismo fazia alguns meses. Ele morava a três quarteirões de casa. Nós nos conhecíamos das tardes em que os jovens do local se reuniam para jogar futebol. Quando soube daquele fato, fiquei curioso e jamais admiti a nenhuma pessoa que, desde tenra idade, uma impressão de um dia ter que me encontrar com Deus me visitava a mente sempre que estava pensando em meu destino. Eu tinha a noção exata de que o meu destino é a morte. Mas...e depois, o que vem? Valério, o malandro que se convertera, convidou-me para visitar um igreja evangélica. E fomos. Nada aconteceu naquela igreja, a não ser o susto de quando um certo homem, de paletó e gravata, puxou-me pela mão dizendo: “Jovem, o Senhor está falando contigo. Por que não te entregas a Ele?” Nada respondi e um silêncio aterrorizante me dominou. Fugi daquele lugar, certo de que não seria daquele jeito que me entregaria a Deus. Era aquela a primeira vez que ouvia um sermão evangélico. Nos dias seguintes nenhuma palavra das que tinha ouvido restou na mente. Contudo, creio que naquele momento em meu coração foram lançadas as primeiras sementes do evangelho, e mesmo que eu recusasse pensar naquilo que ouvi, em algum canto do terreno endurecido do meu coração poderia haver uma parte de terra boa, onde novos frutos pudessem surgir. Algumas de minhas ações pareciam dizer o contrário. Eu mantinha meus desejos, vícios e libertinagens. Meus amigos continuavam os mesmos. A única coisa que mudou foi a absurda elevação dos índices de abstinência, pois, de maneira espantosa, algumas vezes me neguei a fumar maconha, dizendo estar com dor de cabeça. E a abstinência chegou a um limite tal que numa das vezes em que acompanhava o grupo apenas por costume, já que não tinha outra coisa a fazer durante as tardes, um dos meus melhores amigos me disse: “Escuta, Pedro, tudo bem que tu não quer mais fumar maconha...Mas, por favor, não vem com esse papo de Deus, não!”

Eu não entendi por que meu amigo falou aquilo. Por alguma razão os antigos companheiros começavam a notar mudanças no meu semblante. Talvez não soubessem definir exatamente o que se passava comigo, visto que nem mesmo eu sabia. A evidência de que alguma coisa estranha acontecia em minha mente era a sensação de vazio que a partir de um determinado momento passou a me rondar. O sentimento de que a vida estava perdendo seu significado, sua razão de ser, e que as coisas que mais me davam prazer já não me satisfaziam como antes, a tal ponto de pensar estar enlouquecendo, levou-me a um estado de total melancolia. Às vezes pensava estar em um pesadelo, do qual desesperadamente queria acordar. Havia perdido a alegria de viver; as músicas que tanto amava, as conversas que tanto me atraíam, os filmes pornográficos que ia ver no Ópera, a submissão aos valores correntes da juventude da qual fazia parte, os modismos, nada, enfim, satisfazia-me como antes, parecendo um mosaico de elementos perdidos e sem sentido lógico no espaço vazio e escuro de minha mente jovem.

Tais dias de profunda depressão aumentaram a certeza de que Deus estava me chamando. Chamando para quê? Tão jovem e já iria morrer? Era isso? De tão inútil minha vida, Deus queria que eu me suicidasse? Desse cabo naquela existência fútil e mesquinha, de alguém que a ninguém era valoroso? Que a ninguém ajudava? Que a ninguém amava? Aquela pergunta que todo homem faz: “Por que eu existo?” parecia uma espada penetrando em minha cabeça, espada que a cada dia, instante, átimo de tempo, tornava-se aguda, pungente, insuportável. O que fazer? Eu queria minha antiga vida de volta, suspirava em acordar no dia seguinte com o coração e mente aliviados, certo de que a depressão havia chegado ao fim, que poderia continuar sonhando os mesmos sonhos, planejando as mesmas coisas de sempre, ouvindo “I Wish you were here”; sim, desejava profundamente que voltasse minha antiga felicidade, minha antiga paz de espírito, meu antigo consolo mental.

- Pedro, esse aqui é João, ele veio te convidar para ir à igreja onde congrega. Era Valério, que voltava a falar comigo algumas semanas depois do culto na sua igreja. Eu sabia que a voz que internamente me compelia a fazer todas as coisas que tivesse vontade estava em uma árdua batalha com uma outra voz que me dizia ser necessário abrir mão de tudo, das velhas amizades, dos vícios, das mentiras, de tudo enfim que até então caracterizava minha existência, caso quisesse ter paz de espírito, e ter de volta o sentido da vida, cuja falta não suportava mais.
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