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Artigos-->Visionária e missionária -- 30/06/2002 - 19:39 (Rodolfo Araújo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A riqueza de Dançando no Escuro rompe o campo de análise corriqueiro e permite ao espectador, no mínimo, duas vias de interpretações e dissecações. A primeira delas segue o eixo da individualidade humana diante de suas limitações e sensações, com ênfase na participação de tais elementos como chaves influenciadoras da trajetória de vida. O outro caminho permite o aprofundamento não somente na figura humana, mas também em sua participação e relevância diante de um contexto opressor, como ocorre no filme. A adoção deste ângulo abre espaço para uma caracterização da personagem principal como um agente incumbido de uma “missão” face às circunstâncias descritas ao longo do longa metragem.

Partindo, de forma restrita à condição do indivíduo esmagado pelos infortúnios, pode-se notar a relevância das sensações para o ser humano. Selma, ao passo que, progressivamente, perde a capacidade física visual, inicia uma relação de dependência do som, que lhe serve como fuga e elemento constituinte de realidades paralelas às cinzentas vividas por ela. O elemento musical cumpre mais do que uma função digressiva na produção: há, em cada inserção do gênero, uma transcendência do enredo e da trivialidade. São viagens homeopáticas, nas quais Selma pode sonhar de olhos abertos. Porém, a queda das nuvens é rápida e seu caráter nefelibata faz-se efêmero com rapidez. Em um dos versos que canta, a protagonista menciona a importância de cruzas fronteiras: “olhe para mim e transcenda”.

O universo sensível adquire uma nova configuração para Selma à medida que perde a visão, pois sentidos como a taquicardia representam mais do que, como visto em uma das passagens, uma simples visão da Torre Eiffel. Outro trecho que denota tal condição é o detalhe da ausência dos óculos nos olhos de Selma em seus momentos de extrema penúria e, também, nas oportunidades em que era confidente e também revelava histórias junto a Bill, um de seus algozes. Seu instrumento conectivo com a realidade do senso comum era o par de lentes, que funcionava como uma “fantasia” que tornava possível a relação de Selma com o “mundo de convenções”.

No que se refere à adoção de Selma como parte integrante de uma condição humana supra-individual, pode-se remeter à idéia de “missão” da mesma dentro do contexto industrial, de onde derivam elementos como a opressão em nome do lucro e “numerização” do homem.

Isto pode ser constatado, em primeiro lugar, no momento em que Selma, ao versificar em um dos musicais, menciona que “não há mais nada a ser visto”. Tal afirmação leva a crer que a consciência da personagem a respeito de si mesma era inabalável e incontestável.

Além disso, emerge também a questão da preservação do filho. Selma comanda seus atos veementemente a favor da “salvação” de Gene, preparando-o para um futuro que ela, certamente, não teria.

No final, após a execução de Selma, as cortinas fecham-se, como se aquele tivesse sido o verdadeiro espetáculo do qual a mesma deveria participar. Finalizava-se ali, ainda que tragicamente, uma missão cumprida, um “sacrifício pelo amanhã”, como retrata Laymert Garcia dos Santos, em O Cinema Utópico de Lars von Trier.

Dançando no Escuro propicia, ademais, a visão alienadora que o maquinário impôs à sociedade urbano-industrial, sobretudo nos últimos dois séculos. Com enquadramentos trêmulos e caóticos, exprime nervuras à percepção do espectador, que, com os olhos, também vive a tensão contra o tempo, a necessidade de acúmulo de capital e, por fim, contra o que se pode chamar de “realidades paralelas”.

Elas aparecem no enredo sob diversas facetas. Uma delas consiste na alegoria criada por Selma para sustentar o objetivo de conseguir a operação para o filho. Seu apreço pela música fez com que ela pudesse tornar seu pai um dos ídolos nos palcos.

Outra manifestação paralela ocorre nos próprios musicais, que, por mais fugazes que sejam, alimentam-se da história e correm junto a ela até perderem as forças de realização. Entretanto, o que podem exprimir no que tange à relevância das sensações na existência humana é fundamental. As digressões musicais são os grandes pontos de reflexão da protagonista a respeito de si mesma. Nestes momentos, ela é totalmente livre para poder externar o que pensa sobre o mundo e sua inserção dentro do mesmo.

O casamento de seu vizinho, Bill, também tomou corpo de pura aparência: no julgamento de Selma, o promotor afirmava seguramente que o casamento do policial era sólido e feliz, o que não era a real expressão dos fatos concretos. A própria promotoria criou mais uma realidade, sendo esta útil para incriminar por completo a ré.

O filme cumpre uma função provedora de elementos de abstração crítica dos efeitos no humano do contexto e práticas capitalistas em suas expressões mais exploradoras e indiferentes. O espectador tem a oportunidade, caso queira, de mergulhar em suas tormentas individuais ou refletir sobre sua real importância dentro do atual panorama sócio-econômico mundial. Aliás, a economia, talvez, nem deveria ser um dos elementos centrais das relações humanas. Em suma, as ferramentas são várias para que se adquiram novas percepções sobre a questão das sensações e “realidades paralelas”, além da aplicação de maior severidade às análises sobre o capitalismo, que não devem ser apenas predatórias, mas, por que não, utópicas.

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