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Contos-->AS MIL E UMA NOITES DE UM ÁRABE NO PLANALTO -- 03/10/2003 - 19:08 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

AS MIL E UMA NOITES DE UM ÁRABE
NO PLANALTO


Um conto de João Ferreira
3 de outubro de 2003


Abu-Amrin era um árabe oriundo do Líbano, que vivia em São Sebastião, no Planalto Central.
Tinha um próspero comércio local na cidade. Negociava colchões para todo o Centro-Oeste do Brasil. Viajava. Passava dias fora. Ficava no escritório até altas horas da noite. Zelava suas contas no banco e não encontrava muitas sobras para manter seus negócios. Como libanês, repetia muitas vezes o rifão árabe que diz que “o homem é o jumento da casa”. Para dizer que o homem é o animal de carga da família e a ele compete carregar o peso da luta pela vida. Abu-Amrin se achava assim e trabalhava como doido para manter sua família..
Morava no Brasil havia anos. Era casado e pai de cinco filhos. Nunca utilizou o artigo corânico que lhe permitiria como fiel muçulmano conviver legalmente com quatro mulheres. No entanto, imaginava perfeitamente o que seria se tivesse de alimentar um harém, de quatro ou mais mulheres. Quando pensava nisso, ficava apavorado!!!
Na prática, sua relação com Alah sempre era intermediada pelo profeta Maomé...Como fiel muçulmano não deixava de fazer suas preces e de praticar os devidos rituais em honra de Alah para que lhe abençoasse o caminho da vida.
Como chefe de família, achava que alimentar uma mulher com toda a prole, já não era brincadeira. Imagina se tivesse de cuidar de um harém com muitas mulheres e toda a filharada junta. Estava achando preferível viver dentro dos costumes brasileiros, embora por fora estivesse sempre alerta uma alma árabe fiel e apaixonada pelos costumes de sua terra. Árabe é sensível, sensual e não deixa de viver a vida como ela exige que se viva. Abu-Amarin tinha optado pelos costumes do país de adoção. Era por isso, um chefe de família monogâmica. Penava para mantê-la, é verdade. Mas tinha uma mulher só. Custasse o que custasse, era um brasileiro monogâmico com uma vontade árabe de ser poligâmico.Era casado com Fátima. Tinham cinco filhos todos nascidos no Brasil.
Dois deles estudavam na Faculdade. O mais velho frequentava o curso de odontologia e o segundo havia se matriculado no curso de Agronomia. As três moças, mais novas do que os rapazes, ainda estavam no colégio. Mas todo o mundo estudava. E isso era um orgulho e ao mesmo tempo um “ônus” para nosso árabe de São Sebastião. Teria fotografias para mostrar orgulhosamente lá em Beirute de como venceu no Brasil e como formou uma família próspera e sadia. Por outro lado, era verdade que para manter esta comunidade, Abu-Amrin ralava bastante. Tinha que faturar dia a dia, sem desperdício, e tinha que estar em boa harmonia com o real brasileiro, símbolo de sua própria economia. As despesas eram enormes. Entre elas contavam-se as mensalidades de colégio, livros, transporte, roupa, planos de saúde, mensalidade de clube associativo,remédios, super-mercado, computadores, diversões. Não ficava muito para investir ou para guardar na poupança e Dona Fátima tinha também seu próprio dinheiro que Abu-Amrin dava mensalmente para ela. Encargos de uma classe média meio solta.
Possuía uma casa bem construída com um arco de mesquita árabe. Pedira ao arquiteto para lhe colocar no topo um tipo de almedina, com sua almenara, onde mantinha seu escritório . Ficava num ponto alto da cidade, em pleno morro e dava ares de uma fortaleza. Ali havia oxigênio puro e desfrutava lá de cima de um lindo panorama sobre o vale.
Nem toda a família entendia a luta do árabe pela sustentação da família. Os meninos gastavam como gente rica, dentro de uma mentalidade tremendamente consumista. Deslumbrados com a vida no Brasil gastavam com carros, celulares, festinhas, roupas de marca e saídas com amigos. Todo o mundo era mais ou menos inclinado a gastar mais do que devia. Ora acontece que o consumista que não produz mais-valia nem sempre percebe as dores e trabalhos de um pai para ter as coisas em casa. Muitas vezes Abu-Amrin ficava lá no alto de sua almenara, a torre da casa, onde se situava seu escritório, triste, sozinho e parado, olhando a campina lá em baixo. Os jovens parecia que não entendiam isto.
Mas era verdade. Ele pensava muito, mas mesmo muito, na segurança da família. Não tinha especial fortuna nem dinheiro no banco, além de um capital rotativo para o negócio dos colchões. E na sua solidão a voz que se plantava em sua cabeça era a de que era um burrinho de carga. Ou mais vivamente, como diziam lá no Líbano, como homem trabalhador, considerava-se “o jumento da casa”. Não esquecia nunca isto... Eram palavras honradas de seu povo, lá do Líbano. E não tinha como não acreditar. Era ele o único, o exclusivo motor aceso para manter em atividade a casa onde havia ele, uma mulher e cinco filhos, todos estudando e gastando com raras limitações...Eis a razão porque não era raro ouvi-lo concentrado em sua almenara repetindo para si mesmo: “já que não tens dinheiro de sultão do petróleo, tens de tirá-lo desses colchões...”. Era, no fundo, um aplicado trabalhador.
Com estes pensamentos, Abu-Amrin muitas vezes sentia inclinação a se acovardar. Em certas ocasiões quase desanimava. Tinha medo da vida. Porém, outras vezes, bem ao contrário, invocava a coragem guerreira de Abdulaziz, seu patrono árabe.
Ocorre, porém, que no decurso de uma vida, há sempre lances, que dão tons diferentes à trajetória do quotidiano. Também aconteceu com Abu-Amrin.
Um dia em que muitas coisas ameaçavam seus negócios e a angústia tentava se apoderar de seu espírito batalhador, teve de pegar o carro e partir para Gioânia onde tinha negócios importantes. Partiu de casa já de noite para ter um encontro com empresários em Goiânia para contratar grandes negócios no ramo dos colchões. Nesse dia estava realmente cansado. Sentia-se mais uma vez o burrinho de carga da família. Talvez nem sua mulher nem seus filhos poderiam entender a carga emocional que estas operações e compromissos perigosos descarregam em cima de um homem. Era o preço da doação a que se entregara. Desejaria que um dia pelo menos seus filhos pudessem entender que a vida de sacrifício é toda a base do sucesso. Assim lhe ensinava Maomé. Fosse jumento ou não, burrinho de carga ou fidalgo nobre da corte do Príncipe, teria de ficar frio e enfrentar os problemas comerciais urgentes em Goiânia. Tinha de comprar trezentos colchões e pagá-los em trinta dias, vendesse ou não. Eram os riscos do negócio. Já na estrada, os problemas bailavam em sua cabeça. O que faria, como faria. Como vender, onde vender. Como receber. Já a meio do caminho, cansado de dirigir, sentiu vontade de parar um pouco. Não era depressão. Era cansaço mesmo. Os ponteiros do relógio tinham assinalado duas horas de viagem. Havia que parar mesmo. Embora não soubesse bem o que fazer naquela hora, tinha a certeza de que não era prudente teimar em prosseguir a viagem. Levou o carro para o estacionamento que estava ali perto. E olhando melhor, descobriu que estava no estacionamento de uma boate onde piscava intermitente uma luzinha vermelha. Não tinha nenhuma intenção de parar ali, não trazia nada planejado de São Sebastião. Não tinha vontade de nada. Mas estava ali. E agora ia ver como descansaria e aliviaria um pouco a cabeça.
Fechou o carro, saiu vagarosamente e deu uns passos em direção à entrada principal. Diante daquela luzinha vermelha e misteriosa, sentia-se tímido, algo perplexo. Era a primeira vez que fazia isto. Sempre foi homem de família. Burrinho de carga. Agora nascia um momento novo. Estava pondo o pé numa estrada que não conhecia nem sabia onde começava nem onde acabava.
Logo no hall de entrada, notada a presença do visitante, uma dama de insinuantes formas e bem vestida, de elegante túnica, o recebeu com um sorriso doce e o tomou pela mão. Antes que ele pronunciasse alguma palavra, disse:
-Vem descansar um pouco. Meio atônito ainda, Abu-Amrin, que nunca tinha saído de seu lar doméstico para se divertir nem tinha conhecido uma mão feminina diferente da de Fátima, entrou em sobressalto e meio desconfiado, como se fora um caboclo dos barrancos da Amazônia. Mas aceitou automaticamente a mão de sua condutora. Neste gesto, sentia amorosidade. E na amorosidade, um alívio profundo Ao mesmo tempo percebia que estava caminhando na direção de um destino que não conhecia ainda, sem saber o caminho por onde seria conduzido.
Notando o olhar pacífico mas espantado de Abu-Amrin, a mulher experiente sabia exatamente como tranqüilizar aquele homem que além de tudo tinha vivido um dia de angústia, de aflição comercial e de cansaço na estrada. Ela sabia como fazer. E não pensou duas vezes. Sempre segurando amorosamente sua mão, conduziu-o para a parte interna da casa, mais especificamente, para seus aposentos.
Era uma câmara bonita, bem arrumada, como convinha à rainha da colméia. E dividida em duas partes. De um lado, um reposteiro com escritório e mesa engalanada como se fosse ali um lugar de consulta de cartas ou búzios ou leitura de mãos. Do outro lado, uma cama nupcial perfumada, com dossel de rainha, convidando à tranqüilidade e ao amor. Já no interior da câmara, a dama deu a Abu-Amrin seu sinal de identificação. Pode me chamar de Afrodite, disse. E de imediato, para tê-lo sempre à vontade, indicou a Abu-Amrin o lado do reposteiro onde se engalanava o ar oriental de um consultório de cartomante. Afrodite olhou Abu-Amrin, que ia descontraindo aos poucos, sorriu e sentou-se em sua cadeira matronal. Sem pronunciar qualquer palavra, tomou as mãos de Abu-Amrin, acarinhou-as com muita habilidade, voltou a olhar para ele, desta vez mais intensamente e retirou as mãos. Passou depois a jogar as cartas. Enquanto ela trabalhava e dispunha geometricamente as cartas e as levantava para saber a ditadura da sorte, o libanês ia sentindo acalmar-se o espírito, ia despertando e achando tudo um sonho. Para ele, era quase um milagre o que lhe estava acontecendo ali. Em nenhum lugar do mundo, nem no Líbano nem no Brasil, nem na mesquita de Meca sentiu a maravilha deste sobrenatural que estava acontecendo pelas mãos de uma mulher.
Assumindo já solenemente o ritual de cartomante, Afrodite tirou a primeira carta. Virou-a e leu-a silenciosamente. Depois disse para Abu-Amrin. Esta carta diz para você: encontrarás uma princesa que te indicará o caminho luminoso de tua vida. Pela cabeça do árabe passaram figuras de odaliscas e rituais de danças do ventre, festas sensuais de Beirute e todo o esplendor erótico das tradições do Médio Oriente. A figura de uma princesa nascia e desaparecia em sua cabeça. De longe e de perto a fantasia criava figuras. Mas talvez a princesa da carta estivesse diante dele.
Afrodite se concentrou ainda. Sabia que um possível vendaval erótico tivesse agitado a cabeça de seu cliente. Treinada nas cartas e na psicologia masculina, prosseguiu sem alterar seu semblante. Embaralhou as cartas de novo. Sacou. E anunciou: carta número dois. Olhou, interpretou e disse: Esta carta número dois anuncia: “Apesar de forte guerreiro não tens dado descanso à tua alma sonhadora”. Este anúncio era o que faltava a Abu-Amrin. Sentia-se apenas um burrinho de carga, um batalhador. No fundo sem qualquer compensação. Lá do alto de sua almenara, em São Sebastião, nada tem encontrado que alivie sua angústia. Agora, está avisado que o sonho tem de partilhar também de sua vida. Que o sonho deverá ser a muleta misteriosa para aliviar seu stress quotidiano.
Demonstrando tranqüilidade, doçura e habilidade, Afrodite, puxou a terceira carta. E disse: “Aceita a mão da Princesa para que te conforte em teu destino”.
Em rigor, terminava aqui a sessão das cartas. Mas o efeito da leitura de Afrodite estava exercendo um efeito transmutador na cabeça e na emoção de Abu-Amrin. A última carta o convidava a aceitar a mão da Princesa para que o confortasse em seu destino. Bem pensado, a conclusão diria: está tudo neste local, neste espaço, onde me encontro. Tudo na mão.Era Afrodite a Princesa. Era Afrodite aquela que lhe era enviada, nesta noite de solidão, de angústia e de pressão psicológica! Aquela que lhe daria o conforto necessário para prosseguir amanhã na sua luta em Goiânia no grande negócio dos colchões.
O árabe estava porém sem saber se Maomé pediu a Alah por ele nesta angústia ou se o próprio destino solto da vida lhe proporcionou este encontro. De uma maneira ou de outra, ele estava aqui. Bem acompanhado, nas mãos de Afrodite, um símbolo de deusa que lhe vinha trazer e despertar alguns mistérios que ainda não conhecia.
Começava a se reencontrar Abu-Amrin. Estava se sentindo bem. A voz de Afrodite era maviosa. E num momento destes parece que a racionalidade de Abu-Amrin emigrara para longe. Estava mais do que tudo emocionado. Diante do altar de Afrodite, conjugando o mistério com a ansiedade e a surpresa, os humanos se rendem e se inscrevem nos cultos da deusa. A leitura das cartas foi o bastante parra Abu-Amrin dar uma girada em sua cabeça.
Dando fim ao ritual das cartas, Afrodite levantou-se. Voltou a tomar a mão do libanês que se levantou também e passaram para a outra ala dos aposentos.
Em todo o cenário, Abu-Amrin era invadido por pensamento intenso que lhe revolvia os miolos.
-Até aqui, dizia para si próprio, lamentavas que eras o burro de carga e o jumento da tua casa... E agora. Agora? Tens que pedir a Alah que te abra o caminho da vida com mais clareza, que te ajude a mitigar tuas angústias... para seres um servo de Alah cumpridor e fiel.
Já na sala dos aposentos, onde emergia o solene leito coberto de real dossel próprio dos leitos principescos, Afrodite, sorridente e doce, pede licença ao árabe e entra numa porta misteriosa, ao lado. Amrin sentia-se meio enlevado, sonhador, já disposto, mas ainda nebuloso atingido pela calmia da sedução. Alguns minutos depois Afrodite reaparece. Desta vez, vestida de transparentes sedas em camisa de dormir.E dá sinal a Abu-Amrin para que entre também, se prepare e volte para o cerimonial da deusa do amor.
O árabe obedeceu. Entrou na sala de banho e voltou de rosto descontraído e alegre para subir até ao leito nupcial debaixo de um dossel protetor e acolhedor. Estava flechado de amor este árabe. O sono e as angústias tinham ido embora. Se ele fosse um verdadeiro brasileiro ter-se-ia lembrado de Macunaíma e diria que esta hora que se lhe oferecia era para brincar a valer com a pomposa dama que o acolhera e que lhe preparara estes aposentos mágicos.
Com Abu-Amrin flechado por Cupido, a dama assumiu dirigir todo o cerimonial. Era da casa. E profissional. E sabia por isso que a essência e o segredo do estar assim era o encantamento. Estava certa Afrodite. Abu-Amrin depois de lidas e interpretadas as cartas teria de passar pelo cerimonial do encantamento que é uma parte essencial da sedução. A primeira parte consistira na atração. Vencida essa etapa, Afrodite passaria a fasciná-lo.Lentamente se descobriu e aplicou todas as artes encantatórias, sensuais e eróticas em cima do árabe, que pouco a pouco foi se transformando no colaborador necessário às artes de Afrodite. Lembrou a primeira leitura das cartas: Uma princesa te indicará o caminho luminoso da vida. E a terceira: aceita a mão da princesa para que te conforte em teu destino.
-É isso mesmo, reagiu o árabe quando já estava debruçado sobre os peitilhos de alabastro da misteriosa dama.
É isso mesmo. As cartas estão certas e eu passo a fazer parte da leitura destas cartas e elas passam a fazer parte de minha vida. A noite se prolongou animada na companhia de Afrodite. Em determinado tempo, derrubado entre perfumes e sensualidades, Abu-Amrin caiu lassamente feliz ao lado de Afrodite. Cheio de gozo e de felicidade. Como se um ente sobrenatural tivesse invadido sua mente e o levasse a parar no lugar certo, em sua viagem a Goiânia. Uma marca fantástica e mágica que não se apagaria de sua vida.
Ao outro dia, depois de deixar um generoso presente em reais nas mãos de Afrodite, Abu-Amrin retoma a viagem para a capital goiana. Tudo mudou. A estrada está leve. O carro veloz. A disposição é total. Não há cansaço, nem angústia nem depresssão.
A reunião com os empresários lhe trará muitas vantagens comerciais.
Não sentirá mais em sua cabeça o peso de ser um burrinho de carga.
Por hoje está tudo bem, Abu-Amrin.
O que não sabemos ainda é como tu vais te desculpar com teu profeta Maomé nem como vais te explicar diante de tua mulher, se ela descobrir que dormiste com a cartomante.


João Ferreira
3 de outubro de 2003
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