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Contos-->Berenice -- 10/09/2003 - 14:10 (FLAVIO DOS SANTOS FERREIRA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
BERENICE


I

Berenice esqueceu que dentro da mulher há um conto de fadas ainda não escrito pois, sem achar o caminho de volta, viu-se presa em uma gaiola sem arejamento e sem luz. Não podia ser outra coisa aquele vento assombroso que aconteceu no parque da cidade que levantou sua roupa por uma eternidade e bagunçou o longo cabelo. A cilada – como ela julgou – se passou perante todo mundo. Do jeito que aconteceu, parecia uma prostituta e da pior espécie pois estava em lugar público e à luz do dia.
Ainda lembra dos assobios histéricos dos rapazes que pediam para ela baixar a calcinha branca e tirar o comprido vestido também branco. Além dos assobios, lembra de alguém tê-la chamado de vagabunda de pernas gostosas que possuía duas montanhas mais bonitas do que o Pão de Açúcar. Xingou e berrou até se cansar.
Só em lembrar, sente um calafrio que vai e volta. Nunca passou por tamanho constrangimento. Logo ela uma mulher recatada e discreta. Não fosse o guarda do parque estaria desmaiada até agora na área próxima da academia. O parque cheio de pessoas de todas as idades, e ela no meio de toda aquela gente se expondo nua e contra a vontade. Estuprada por um vento sacana.
Sobreviveu a madrugada com tranqüilizantes. Mas estranhou quando, no espelho do banheiro, se viu dando um bom dia cheio de exuberância. As maçãs do rosto eram provam disso. E as mãos demoradas nos cabelos como se somente agora percebesse que tinha aqueles fios pretos que iam até a bunda? Devia estar reprovando o infortuno e não rindo. Não é possível que o sorriso sem vergonha no espelho seja seu. Tenta destruir o sorriso de vagabunda e não consegue. Os músculos da boca não querem obedecer.
Toma café e outra descoberta. Sentou-se com as pernas bem abertas. Seu marido é quem senta assim. Se surpreende outra vez. Cadê o soutien? Cadê a calcinha? Se dá conta de que preparou o café toda nua. Quase meia hora andando nua. Meu Deus! Alguém na rua ou de outro prédio podia muito bem tê-la visto sem roupa já que as janelas estão abertas e com as persianas arriadas. Correu para se vestir. Se os homens do sacolão lá embaixo tiverem visto sua nudez não teria ânimo para comprar lá.
Berenice está preocupada. Ir ao parque sozinha foi precipitação. Jamais foi sem o esposo que está viajando. Na segunda-feira, dia mais tranqüilo no parque, aconteceu a tragédia que não devia acontecer. O culpado é o vento. Se o precursor da tempestade tivesse ocorrido em lugar que não tivesse gente, não estaria sentindo o tormento de uma mulher estuprada. E mais. Não teria dormido nua e teria feito o café com toda a decência.
Olha para o bifê e se olha no espelho. Humm! Se admira com o corpo que tem. As pernas realmente são bonitas embora não seja freqüentadora de academia. Faz tempo que o esposo esquecera de lhe dizer estas palavras. As pernas bonitas devem ser por causa da caminhada diária vendendo os produtos da avon. Aperta a barriga e não vê dobra. Barriga igual a de modelo. Alguém do parque tinha razão. Realmente os seus seios são estupendos. Eles não são caídos para uma mulher quarentona e têm os bicos levantados.
Desistiu de se vestir. Está sozinha mesmo. O café-da-manhã é se tocar. Cada toque é um despertar de células e de coisas não costuradas porém gostosas e perigosas. Geme com cada toque. Imagina beijando o guarda do parque. Ele tocando em cada pedaço do seu corpo. Por que não o esposo? Se apavora com os pensamentos que violam sua vida de fidelidade. Fidelidade consigo mesma. Pensa em se abrir com alguém. Mas talvez ninguém a compreenda o que está sentindo.

II
Berenice se veste abruptamente. Se despir e se tocar por muito tempo sem toque de homem é coisa do pecado. Com arrependimento afastou-se do espelho. Percebeu o telefone tocando depois de algum tempo. Era o esposo falando do retorno para amanhã.
Se prometeu não andar mais nua pela casa. Quem sabe se fizer as compras durante a tarde, as assombrações vão embora. Não queria era ficar sozinha. Com o retorno do esposo, com certeza readquiriria a paz. De repente pensou no vento. E se o vento novamente acontecer? Quando ele aparece, se não derruba casas, como nos Estados Unidos, o vento faz lembrar que é superior ao que não queremos. Preocupação boba porque está de calça. É folgada. O vento não vai levantar.
Berenice sabe que o problema não é tanto o vento. É o que ele fez com o que pensa. O vento estuprou a sua virgindade. Antes era uma mulher sem ambições sensuais. Contentava-se com o dedicado esposo e vestia-se discretamente. Mas neste momento a incerteza é o terreno pantanoso onde pisa. O vento está apagando a estrada da harmonia feita em quinze anos de casamento. Está apaixonada pela idéia de usar roupa com decote. Ou melhor. Roupa para mulher devassa. Imagina andando com pouca roupa atraindo os olhares dos homens e ser tocada por eles. Precisou sentar em um banquinho de uma lanchonete para agüentar o calafrio novamente. Pede água mineral e vai embora.
Puta! É isso que já é. Se corrige. Não é uma puta. Puta é aquela que se vendeu aos demônios da fraqueza. O demônio do corpo e o da mente. Ela ainda não vendeu o corpo. Se ainda não é, é porque está se transformando.
Tanta confusão fez mudar o semblante sereno que tinha. Ela chega em casa chorando. É coisa demais fervilhando na cabeça. Se quebrasse o espelho talvez as coisas melhorassem. Precisa tomar aspirina para acalmar a cabeça. Por enquanto prefere ser puta só na mente.
Novamente em casa e sozinha. Como atraída por um imã, assim a vontade de ficar nua. A resistência somente durou a tarde. Não resistiu ao espelho. Tinha que tirar a roupa. Em pouco tempo, estava sem nada. Apertava cada pedacinho do corpo. Como é sutil o caminho do prazer! Cada aperto era um gemido preso nestes anos todos. Pensava no guarda do parque e nos vendedores do sacolão que funciona no térreo do prédio. Eles certamente iam sarar a ferida que o vento abriu.

III

A noite foi uma insônia insistente. Suava e quando abria a janela o tempo estava frio. Se angustiava pela manhã que não chegava. Quando os galos do sacolão começaram a cantar, levantou-se e tomou banho de água fria. Tinha que ser água bastante fria para esconder a preocupação. Mas só foi reencontrar a paz quando o esposo chegou.
Entre os braços do marido, pressentia que escondia algo para ele. O sentimento de culpa se impondo. Como contaria coisas que nem sabia ao certo o que são. Às vezes fazia menção de que ia contar mas temia pela felicidade de ambos. Ela mudou muito nestes três dias. Isso é que era perigoso.
A manhã toda teve a companhia dele. Percebeu que o sexo com o marido é inferior ao sexo com os fantasmas do desejo. Com o grandalhão, o sexo é agradável mas o sexo com os fantasmas geme cada célula do corpo. Ele foi trabalhar. Assim que o velho saiu, ela despiu-se toda. O sangue de puta se impondo novamente. Está adorando ficar nua para os amantes – amantes invisíveis. Somente assim é uma devassa.
Embora atemorizada, Berenice senta no sofá e olha para a parede branca, limpa de ornamento. Ela sente necessidade de encontrar a chave da gaiola. Deve haver alguma chave para abrir a porta. Dói a cabeça por saber que experimentou várias mas nenhuma serviu. Demorar ali dentro (e quanto mais demorar é pior) somente vai cumprir a profecia do medo, pois por ela mesma é impossível abrir buraco nas duras paredes da prisão.
Por que ficar nua e ser uma puta? Eis aí o que preocupa a dona de casa. Não foi o vento que a mudou. Ele deu apenas uma ajudinha. Foi preciso um fenômeno climático para desnudar o que já estava sem roupa. Ela estava sem roupa há muito tempo. A puta estava dentro dela germinando. Se o vento não tivesse agitado...Bem, ela olha mais uma vez para as paredes e não vê fresta de luz. As paredes são de concreto maciço, onde a única janela pelo qual o ar se renova mantendo-a viva é uma janelinha que está dentro da própria Berenice.
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Comentários: flaviosf@tcu.gov.br
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