Usina de Letras
Usina de Letras
262 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62073 )

Cartas ( 21333)

Contos (13257)

Cordel (10446)

Cronicas (22535)

Discursos (3237)

Ensaios - (10301)

Erótico (13562)

Frases (50480)

Humor (20016)

Infantil (5407)

Infanto Juvenil (4744)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140761)

Redação (3296)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6163)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->A TRANSFORMAÇÃO -- 02/03/2005 - 07:34 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

WLADIMIR OLIVIER













A TRANSFORMAÇÃO











Grupo dos Cometimentos Insólitos


















Edição da CASA DO MÉDIUM

Rua Cinco de Julho, 1184
Indaiatuba — SP



ÍNDICE


Do início ................................................
1. À revelia ................................................
2. Enovelado ................................................
3. Nem tudo o que se quer se consegue .......................
4. Dificuldades médicas .....................................
5. O etéreo se agita ........................................
6. Uma grave deliberação ....................................
7. Com o Doutor Agripino ....................................
8. Primeiras reações ao livro ...............................
9. O centro espírita visto de fora ..........................
10. Como aumentar uma curiosidade ............................
11. Sofia dá as cartas .......................................
12. A entrevista .............................................
13. Discussões íntimas e outras ..............................
14. Amor de pai ..............................................
15. Onda de azar .............................................
16. Um mês depois ............................................
17. Opiniões .................................................
18. Chuvas de pedras .........................................
19. No gabinete de Agripino ..................................
20. Uma reunião feliz ........................................
21. Uma reunião não tão feliz ................................
22. Comentários e deliberações ...............................
23. Etelvino e Glauco se entendem ............................
24. O drama de Beatriz .......................................
25. Norberto medita ..........................................
26. As palavras se cumprem ...................................
27. Episódio final ...........................................



DO INÍCIO

Vamos estimular o nosso companheiro encarnado, ou companheira, com doces promessas de regalias pelo fato de estar atrevendo-se a ler uma obra espírita de cunho mediúnico?
Responda você, caro amigo ou querida amiga, se é esse o posicionamento que espera dos espíritos seus irmãos ou se prefere deparar-se com lições bastante ponderadas a respeito do dia-a-dia que encontrará em seu regresso ao mundo dos espíritos.
Caso a sua expectativa se situe no plano de sua realidade terrena, desejoso ou desejosa de saber qual o melhor procedimento, nesta ou naquela situação para a qual sua segurança ainda está um pouco hesitante, não é verdade que existem tantas obras eminentemente sábias, extraídas ou baseadas diretamente nos ensinamentos de Jesus?
Se demonstrarmos, em nosso Grupo dos Cometimentos Insólitos (que não nos perca tal denominação), bastante equilíbrio, discutindo aspectos novos relativos à doutrina espírita, tal assertiva lhe parecerá um disparate, já que nos denunciamos como alunos da Escolinha de Evangelização, sob a tutela do Professor Otávio?
Pense a respeito da necessidade de um novo atrevimento mediúnico de caráter medíocre, perante a extensa coleção de obras de elevado valor, de procedência indiscutível quanto aos altíssimos padrões morais e de conhecimentos dos mensageiros. Talvez a sua conclusão eleja um aspecto realista, isto é, o de que os necessitados deste exercício que hoje estamos iniciando sejam os próprios autores e transmissores dos textos, ainda mais porque o nosso linguajar se deixa envolver nas teias léxicas, sintáticas e semânticas do cabedal do médium, sempre vigilante quanto às estruturas lingüísticas mais aptas a traduzir sentimentos e pensamentos e que não desabonem os autores e seus mestres.
Nem por isso, contudo, abriremos mão de oferecer o nosso ponto de vista, consignando o mais que pudermos o estilo coloquial, porquanto as nossas personagens não primam pela cultura livresca, nem se deram aos estudos acadêmicos. Quer dizer que resvalaremos pela descortesia de mostrar ao irmão ou à irmã um chulo linguajar? Não. Quer dizer que iremos colorir os nossos diálogos com uma linguagem forte, a transmitir o intelecto das personagens rústicas em sua natural propensão para a expressão verbal que aprenderam e que julgam a que melhor atende ao seu desejo de expor o que lhes vai na alma, ainda que estejam dominadas por intensíssimas emoções.
Trata-se de mais um romance psicológico cuja densidade metafórica estabelece sério distanciamento entre autor e leitor? Em absoluto, trata-se de uma vívida exemplificação das principais leis expostas em O Livro dos Espíritos, atualizadas quanto às fórmulas mais em voga com que são burladas. As conseqüências poderão ser perlustradas, passo a passo, de modo que o nosso leitor ou leitora possa identificar-se ou, se for o caso, descobrir soluções morais rigorosas para problemas semelhantes que esteja vivenciando ou que precise enfrentar em seu contato social.
Qualquer abertura que se preze não deve ir muito profundamente nas intenções do escritor, ou a obra perderá parte de seu interesse. Sendo assim, convidamos a que o caro amigo ou querida amiga dê início à uma leitura que rogamos ao Senhor possa ser-lhe proveitosa.



1. À REVELIA

Norberto não queria atender às sugestões de seus mentores espirituais, que lutavam para que recebesse intuitivamente a advertência de que seu modo de vida não se coadunava com os preceitos cristãos que ele mesmo proclamava dentro da igreja, nos momentos de prece coletiva.
Não que o nosso herói fosse teimoso ou falto de inteligência: é que havia adotado um padrão de bem-estar que o seu ganho mensal de funcionário público não tinha como manter. Por isso, vinha recebendo propinas para fechar os olhos a quanta ilegalidade deveria fiscalizar.
Até aí, a sua consciência o considerava simples garçom ou cabeleireiro, sempre a aceitar o que de boa vontade os clientes reconheciam que merecia. Entretanto, alguns comerciantes estavam fazendo vista grossa à sua presença, pensando que o agente do serviço estatal fosse facilmente enganado, e isso, a seguir os conselhos dos colegas de trabalho, iria redundar na obrigação de um lembrete extorsivo, para o qual a consciência não iria obter o mesmo resguardo.
Norberto iria falir e já se preparava para transformar o confessor em cúmplice moral, porque não via saída quanto a arrepender-se apenas uma única vez. Meditou que deveria postergar ao máximo o início de suas cobranças particulares dos débitos oficiais, para fazê-lo num período bastante reduzido de tempo, de sorte que, se adiasse por uns dois meses o comparecimento ao confessionário, iria receber uma polpuda penitência, fartamente compensada pelo acréscimo de fundos em sua conta bancária.
Etelvino e Glauco, os guias do etéreo, fundiam o cérebro em busca de uma solução para o gravíssimo problema, mas paravam sempre diante de uma porta mental hermeticamente fechada.
Está claro que a intenção de Norberto também foi detectada por alguns seres contumazes na perversão dos que se ajoelham perante o altar, recebem a comunhão e saem iludidos quanto a terem realizado um completo exame de consciência, rejeitando abjurar certos hábitos nocivos, como, por exemplo, gritar com os filhos, acender seus cigarros, tomar uns drinques a mais, cobiçar o homem ou a mulher do próximo, ainda que, em havendo oportunidade, não sejam capazes de cair em adultério.
— Etelvino, será que desta vez Norberto vai dispensar a nossa ajuda?
— É claro que vai, meu caríssimo Glauco, porque já assestou o seu desejo de possuir uma B.M.W., zero quilômetro.
E havia outros itens sobre que não falaram, porque teria sido mera repetição de diálogos anteriores.
Glauco insistiu:
— Não seria o caso de incentivarmos algum dos futuros achacados a tomar a firme decisão de denunciar o mau elemento, preparando-lhe mesmo uma armadilha, gravando conversas telefônicas, marcando as células do peculato, levando uma câmara de vídeo escondida ou um microfone embutido numa pasta de executivo, ou algo semelhante?
Etelvino, que já havia pensado nessa possibilidade, argumentou:
— Não creio que uma luta administrativa ou judicial venha em boa hora. Sou por um paliativo que o ponha mais atento quanto às conseqüências de uma ação criminosa. Por exemplo, que lhe caia nas mãos o resultado de um processo contra algum parceiro acusado e condenado, sem abrir-lhe as comportas para uma reação do tipo: “Comigo vai ser diferente. O cara não se preveniu como devia. Também, já está com a burra cheia. Mesmo que perca o posto, vai viver uma vida regalada. Eu, não. Eu vou tomar o máximo cuidado, principalmente na escolha de sujeitos sonsos, que tenham muito pra perder. Se eu atacar alguém que está começando, é evidente que ele vai se sentir muito mais prejudicado do que aquele que enriqueceu roubando o fisco e que, agora, não vai querer chegar às barras dos tribunais por uma quantia que, pra ele, não passa de uns trocados.”
Glauco admirou-se da contextura do arrazoado:
— Até parece que você gravou o pensamento de alguém nessa situação!...
— Quase isso, meu caro. Eu simplesmente traduzi os pensamentos que um maganão obsessor estava soprando ao ouvido do Norberto, enquanto você foi atrás de nossos orientadores, para saber da oportunidade de se desencadear um ônus físico importante que o impeça de praticar o mal. Aliás, que foi que você conseguiu?
— Bem pouca coisa. Se ele não cair na esparrela de se embriagar e sair dirigindo seu carro velho, batendo numa árvore, mas sem causar um trauma substancial na família, onde o pai pode sofrer uma síncope ou a esposa abortar, o que nos dará uma imensa trabalheira para prevenir isso mais aquilo, apenas uma dor de barriga não será suficiente para afastá-lo de seu desígnio perverso. Temos de pensar noutra coisa.
Entrementes, um colega batia à porta de Norberto, com ânsias de premente necessidade de auxílio técnico e de algumas providências burocráticas.



2. ENOVELADO

Valdemar foi entrando tão afobado que mal cumprimentou os pais de Norberto, os quais logo perceberam que tinham de ceder seu lugar diante da telenovela, no que foram obstados por ele:
— Pelo amor de Deus, Senhor Raul e Dona Neusa! Fiquem onde estão. Eu vou com o Norberto conversar na cozinha.
Ato contínuo, apanhou o amigo pelo braço e foi arrastando-o para o interior da casa, na maior intimidade.
Na cozinha, Dona Nelma, gorda de sete meses, a lavar os pratos da janta, com a menina Beatriz, jovem empregada doméstica, que, aos treze anos, a dona da casa criava e educava, chamando-a carinhosamente de minha neguinha, pondo atenção em que aprendesse todos os serviços, para os tempos que se preparavam de cuidados especiais por quem vinha chegando.
Valdemar sabia do resultado do exame uterino:
— Nelma, vou levar o pai do Júnior pra um passeio. Precisamos conversar sobre as coisas do departamento. O.k.?
— O café está quente. Espere que eu já sirvo.
— Muito obrigado. Na volta, eu tomo. Até daqui a pouco.
Valdemar, que não havia largado o braço do outro, foi puxando-o para o corredor lateral, acabando por saírem no jardinzinho da frente, ganhando a rua.
— Vamos conversar no meu carro.
— Você está louco, Valdemar? Quer ser assaltado? Vamos ao estacionamento do shopping.
O motorista considerou que prevenir acidente era um dever superior, que a onda de assaltos no bairro estava muito elevado, que bastava muito pouco para os bandidos, quase sempre jovens sob o domínio das drogas, puxarem o gatilho, até quando a vítima caía na desgraça de apenas ser antipática ao meliante, ligou o motor e partiu, cantando pneu no asfalto seco.
— Calma, querido. Jogar o carro no poste não vai ajudar a resolver seus problemas.
Diminuída a velocidade, seguiram calados até o estacionamento. Receberam o tíquete e estacionaram numa vaga no fundo.
— Que é que deu errado?
— Norberto, sabe aquela conversa que tivemos no telefone com...
— Tivemos, vírgula. Você teve. Eu só estava lá porque é onde ganho a vida.
— Mas você ouviu que eu dei dez dias pro cara fazer a grana que eu pedi.
— Ouvi. Mas bem que avisei pra tomar cuidado.
— É, mas a casa caiu em cima de mim. O desgraçado estava gravando tudo e levou a fita à polícia. Agora, vou precisar preparar o processo correndo, juntar os documentos originais, os comprovantes dos débitos, os canhotos das notas fiscais, tudo o que você já sabe. E com as datas certas pra poder dizer que o dinheiro era o da multa já estava lavrada e que eu estava fazendo um favor ao sujeito, dando tempo antes de...
— Você quer que o ajude a forjar tudo, como se fosse um processo que vinha correndo normalmente. Muito bem. Mas não depende só de mim. Nós vamos precisar de carimbos, registros e assinaturas.
— Disso eu cuido na hora certa. O que eu quero é que você corra na frente. Você não tem alguns protocolos em aberto pra isso?
— Eu tenho vários, mas o Tomás controla cada um.
— O Tomás fecha os olhos por quinhentos.
— Amanhã cedo a gente faz tudo, certo, fedelho?
Norberto tratava o companheiro mais novo com estima de compadre, tanto que o Júnior fora prometido a ele para a pia batismal.
— Eu vou lhe ficar devendo mais esta. Amanhã a gente trabalha junto e eu lhe passo todas as datas. Pelo menos, eu tenho anotadas todas as vezes que estive na firma do miserável. Vamos tomar o café da Nelma.



3. NEM TUDO O QUE SE QUER SE CONSEGUE

No dia seguinte, Valdemar procurou Norberto bem cedinho, na repartição, com o fito de combinar o que deveriam fazer para suspender a fúria com que o ministério público iria cair sobre o corrupto. Entretanto, cadê o moço? Norberto não estava e não havia deixado nenhum aviso de que faltaria.
“Por que não me ligou? Que terá acontecido? Mas também eu sou um energúmeno: 2843-372115. Está chamando.”
— Pronto!
— Nelma?
— Neusa.
— Dona Neusa, Valdemar. O Norberto está?
— O Norberto foi levar a Nelma à maternidade. Estourou a bolsa e vai ser preciso fazer uma cesárea. Quer o telefone do hospital?
Um minuto depois, Valdemar conversava com a atendente:
— O senhor Norberto está acompanhando um trabalho de parto. Não podemos chamá-lo agora. Quer deixar recado?
— Como está a paciente?
— O que o senhor é dela?
— Sou irmão.
— É bom o senhor vir pra cá, que pode ser preciso que alguém mais se disponha a ajudar no que for preciso.
— O que pode ser preciso?
— Nunca se sabe. Um remédio, talvez. Chamar outras pessoas da família. Como é mesmo o seu nome?
— Valdemar.
— Não consta na ficha.
— Pois acrescente.
— Valdemar de quê?
— Pode deixar. Já estou indo praí.
Valdemar desligou o telefone com medo de que sua lorota tivesse repercussões desagradáveis. Mas não se afligiu com a situação nem entrou em contato com mais ninguém da família do amigo. Por certo, assim que nascesse o Júnior, Norberto ligaria para a repartição. Nesse meio tempo, iria conversar com Tomás a respeito do protocolo.
— Você está sabendo que a mulher do Norberto está dando à luz?
O negro velho pousou a caneta sobre a mesa e olhou atento para o fiscal, retirando os óculos. Então, manifestou-se:
— Deus sempre está feliz com as pessoas que agem em prol das almas. Que é que você quer de mim?
Foi a vez de Valdemar concentrar-se na fisionomia do velho servidor. Mas esta estava impassível. Então, respondeu:
— Estou precisando abrir um protocolo com data antiga.
— Não existe nenhum.
— Como assim? O Norberto não mantém uma porção deles pra atender às situações de emergência?
— Eu fechei todos. Cancelei. Ninguém deve ofender o Senhor, fazendo coisas erradas.
— Que foi agora? Virou crente?
— Jesus veio falar comigo. Agora estou fazendo tudo que ele manda. E ele quer que eu seja honesto.
— Quanto?
— Quinhentos...
— Está certo.
— Quinhentos pra vender a alma pro diabo. Deus não cobra nada. Mas você pode levar esse dinheiro pro templo, porque lá o Senhor irá atender os seus desejos, porque a sua quantia vai ser aplicada em benefício dos necessitados.
Valdemar sentiu que o outro falava sério. Pensou que tivesse endoidado, mas logo percebeu que havia um profundo sentido irônico em tudo que o outro dissera, talvez nem mesmo do conhecimento dele, porque estaria repetindo o que ouvira na prédica do pastor.
“Se fizerem uma devassa na escrituração, ele vai ser o primeiro a ser envolvido, por tudo quanto fez antes. Mas, se eu ameaçar, ele vai me fazer outro sermão. É melhor ver como é que Norberto se sai.”
Nesse meio tempo, o Doutor Agripino tomava conhecimento de que havia um processo instaurado contra um de seus funcionários e punha o contínuo em ação para localizar o indigitado.



4. DIFICULDADES MÉDICAS

Não bastasse o atropelo da emergência, o médico que acompanhou a gestação de Nelma viajava de férias. O plantonista da noite era um mero residente, apesar de o hospital ser bem conceituado, atendendo a um público seleto da classe média, a maioria conveniada com a própria instituição, sendo que o setor obstétrico primava por atendimento de primeira.
Mas, naquela noite, não havia pediatra disponível e a enfermeira obstetra estava atendendo mais três casos de crianças prematuras. Uma hora mais tarde chegariam os profissionais habilitados, mas já iriam encontrar a cesárea realizada com relativo sucesso.
Em suma, Norberto passou por meia hora de aflição, conquanto Nelma estivesse absolutamente calma. Quando o Júnior, um quilo e oitocentos gramas, foi colocado sobre os seios maternos, ainda lambuzado, já sofreara os vagidos, controlando as cordas vocais.
Chegado o pediatra, ultimou os exames e considerou o trabalho do diligente novato um sucesso.
Eram oito e meia da manhã, quando Nelma foi levada para o seu apartamento, enquanto Norberto se inteirava das providências inevitáveis de um momento de surpresa e correria. Avaliou que havia despesas que seu plano de saúde não cobriria, mas isso era o de menos, que a felicidade de saber bem esposa e filho lhe injetava a coragem necessária para enfrentar qualquer problema.
Despachou o pai, que ficara de sobreaviso a noite toda, para que fosse dormir em casa e solicitasse à mãe que cuidasse de tudo, avisando que não iria almoçar.
Perpassou-lhe pela mente, como uma sombra, o colega e amigo Valdemar, insignificante problema perante o mistério de uma vida que ganhava foros de cidadania.
No quarto, havia uma cama para acompanhante, de modo que o moço ligou para a portaria solicitando que não o incomodassem, encostou a cabeça no travesseiro e dormiu tranqüilo quanto a faltar ao trabalho, porque estava mais do que justificado.
Às onze horas, acordou com um vozerio no quarto, médicos e enfermeiras entrando e saindo, a acudirem a esposa que sofrera uma recaída vertiginosa de pressão.
Ao meio-dia, Nelma passava para o outro lado, pondo Norberto em estado de tremendo desespero.




5. O ETÉREO SE AGITA

Glauco e Etelvino não se surpreenderam com os acontecimentos. Ao contrário, julgaram que os problemas poderiam resolver-se pela dor, porquanto o destino iria parecer por demais amargo para seu pupilo Norberto.
Estiveram presentes no início dos acontecimentos da parturiente, mas foram impedidos pelos respectivos tutores espirituais de Nelma e do filho de interferirem em qualquer das fases do parto, tendo sido chamada para ele uma equipe especializada.
Quando os nossos dois guardiães buscaram saber o que ocorria na verdade, ouviram a seguinte explicação:
— Vocês não devem preocupar-se com a sorte da esposa, nem com os problemas do filho. Cuidem de Norberto, que vai precisar muito de estímulo para vencer a sua própria incompreensão dos desígnios de Deus. Quanto a Nelma, se é isto que os preocupa, não era para voltar tão cedo para cá. Vamos recolhê-la ao hospital e dar-lhe condições de manter a ilusão da vida, porque não merece descorçoar-se da misericórdia do Pai. Vocês sabem que, se não houvesse praticado o bem, se tivesse sido egoísta ou cultivado vícios, saberia distinguir desde logo a sua condição de espírito na erraticidade, revoltando-se e dando acesso às vibrações dos seres das trevas, para onde seria atraída irresistivelmente. Agora, do jeito que se encontra, acarinhando ainda o pequenino ao colo, preocupada, sim, pela necessidade de cuidados especialíssimos, tendo em vista o fato de ser prematuro, mas com todos os planos fresquinhos na mente, não convém de chofre receber o impacto da notícia do desenlace. Vamos dar-lhe um tratamento adequado até que desconfie de que a felicidade pode conter-se nos cuidados que será capaz de dispensar ao filho, a partir do etéreo, na qualidade de protetora. Para tanto, haveremos de envidar esforços no sentido de pô-la a par das condições normais dos espíritos muito apegados aos que se demoram sobre a crosta terráquea.
Glauco queria saber mais, mas Etelvino interceptou sua curiosidade:
— Vamos, meu caro, que temos o nosso serviço a realizar.
E ambos penetraram no sonho de Norberto, um instante antes de ser despertado pelo atropelo do pessoal médico e paramédico.
Era um sonho agitado, vendo-se ele a extrair uma criança do ventre de uma senhora. Eram tão fortes essas vibrações, que o quadro praticamente se formava no plano da espiritualidade, projeção ectoplasmática ao inverso, pela condensação das energias através da força do pensamento. Então Glauco lhe transmitiu uma figura translúcida, que segurava delicadamente a criança e lhe dava um sopro suave, como que a fornecer-lhe um processo de rápido desenvolvimento, de sorte que a criatura imaginária ganhava crescimento acelerado, até um momento em que Norberto é que se sentia diminuto, necessitado do apoio e do carinho daquele ser que o amparava e o sustentava. Entretanto, Etelvino não logrou estabelecer um diálogo entre as personagens, limitando-se a forçar o aparecimento de uma figura de olhar terno e de voz suave, que disse um “Amai-vos uns aos outros e a Deus acima de tudo”, desaparecendo em seguida.
Enquanto Nelma lutava na derradeira hora de sua vida, ambos os protetores limitaram-se a orar, numa tentativa de envolver o rapaz numa bolha fluídica protetora, a ver se conseguiam impedir a penetração das terríveis ondas de maldade que buscavam desintegrar-lhe o equilíbrio mental, fazendo com que as emoções do desespero atingissem o cerne de sua personalidade espiritual.
Quando Nelma faleceu, Norberto já se encontrava nos braços de Dona Neusa e do Senhor Raul.



6. UMA GRAVE DELIBERAÇÃO

Rezada a missa de sétimo dia, Norberto ainda não havia voltado ao trabalho. Encontrara-se com Valdemar mas este não se atreveu a relatar tudo quanto havia ocorrido no posto de fiscalização. Dissera apenas que estava tudo bem e fim. Fora discretíssimo e respeitara o luto e o sofrimento do amigo.
Mas Norberto tinha uma responsabilidade: o filho, que permanecera no hospital, dado que o pediatra não quis liberar a criança antes que ganhasse peso. Além do mais, desejava ouvir o médico da família que voltaria dentro de quinze dias de sua viagem.
Nesse meio tempo, Raul e Neusa se inquietavam com a possibilidade de o filho rejeitar o menino, porque vivia dizendo que fora o culpado de Deus ter levado Nelma tão cedo.
Neusa não se conformava:
— Mas, meu filho, quem somos nós para conhecer os desígnios de Deus? Se ele quis assim é porque desejava salvar a alma de minha nora, que jamais me deu motivo para uma simples reclamação. A sua mulher era, ou melhor, é uma santa. Se ela não está no céu, aos pés de Jesus, sob o amparo de Nossa Senhora, quem é que está?
— Como a senhora pode ter certeza disso?
Raul interveio:
— Sua mãe tem razão. Deu tempo para ela receber a extrema unção e a bênção aos moribundos, logrando ser perdoada por todo e qualquer pecado de que pudesse recriminar-se.
Norberto gostava de ouvir o pai, homem de cultura, aposentado como professor universitário, ainda ativo quanto a publicar artigos em revistas especializadas, sempre pronto para atender aos convites para palestras a estudantes e estudiosos em geral a respeito de sua especialidade, a arquitetura de monumentos. Mas, naquela hora, a facilidade de alocução do velho não chamou a atenção do viúvo, a não ser para discordar do ponto de vista exarado:
— Recebeu os óleos santos, sim. E daí? Como é que Deus pode ser tão bom pra com ela e deixar um recém-nascido sem os carinhos da mãe? O raciocínio de vocês peca pelo excesso de fé, ou melhor, pelo excesso de zelo em julgar que a Igreja é dona da verdade.
Neusa fez um gesto ao marido, como a censurar a incontinência vocabular do filho, solicitando tacitamente que o marido interviesse, advertindo. Raul percebeu a sugestão da esposa e imprimiu bastante força na entonação incisiva que pretendeu dar ao arrazoado:
— Não sei se a Igreja é ou não é dona da verdade. Não sei mesmo se a verdade existe tal qual nós a concebemos. Se eu for capaz de censurar os cânones religiosos, é porque estarei acima das exegeses de todos os pais da Igreja que definiram os dogmas e os preceitos que devemos seguir para salvarmos as nossas almas das chamas do inferno. É por isso que nós achamos que Nelma foi para o céu, porque, se ela não tiver feito por merecer esse galardão do Senhor, quem é que irá merecer? Repito: quem é que irá merecer?
Norberto ficou sem saber se Raul se expressava plantando verde para colher maduro, mas a verdade é que precisou reconhecer que ele mesmo não estava fazendo jus a ser recebido no reino de Deus. Perpassou-lhe pela mente a idéia de que, se morresse naquele instante, teria de carregar consigo um pecado de intenção, com certeza venial, mas que o arremessaria nas fráguas do purgatório, pelo menos. No entanto, como precisasse desabafar, ainda afirmou:
— O senhor tem razão em dizer que Nelma merecia o céu. Tudo bem. Mas quem me diz que ela iria descair de seu caráter, de sua moral, se continuasse viva? Ao contrário, cuidando do filho, só poderia acrescentar mais méritos à sua vida, só iria aumentar a quantidade de dons de virtude...
Ao falar das qualidades da esposa, acorreram-lhe à lembrança seus momentos de extrema ternura, mesmo quando recebia brandas censuras ao contar a ela, sempre diminuindo muito os fatos, que havia recebido alguns presentes e que não tivera como rejeitar. Inesperadamente, declarou:
— Eu sei que vocês não acreditam, mas eu vou querer conversar com ela e, se for preciso ir a Uberaba consultar o Chico Xavier, eu vou.
Calaram-se os pais, percebendo que a deliberação estava tomada e que toda a conversa tinha servido para ouvirem aquela conclusão. Mas Neusa logo imaginou que o trabalho de dissuadir o moço caberia ao sacerdote, confessor e amigo, o Padre Tiago, responsável pela paróquia do bairro. Por isso, mudou de assunto:
— Quando é que o Valdemar vai levar o menino à pia batismal?
Norberto ficou uns instantes pensativo, mas respondeu, como se refletisse em voz alta:
— Eu não acho que o meu colega vá fazer questão disso. Depois do que me aconteceu, o batismo não vai ser a mesma festa, com a mesma alegria. Eu acho que vocês dois é que vão ser os padrinhos, porque nem vai ser preciso cursarem as aulas preparatórias. Se meus sogros quiserem, apesar de eles não serem tão apegados à religião, e vocês concordarem, eu passo a responsabilidade pra eles. Mas isso é o de menos. O que nós precisamos acertar é quem vai cuidar do Júnior.
Raul ia fazer uma proposta, mas Norberto não deixou:
— Pai, está na hora de ir ao hospital. O senhor vai comigo?
— Claro que vou! Eu quero ver o meu netinho!
Dona Neusa, mostrando-se aborrecida, encerrou o diálogo:
— Vão indo vocês dois que eu preciso cuidar da casa. A Beatriz anda atarantada. Até parece que perdeu a mãe. Eu acho que ela está com medo de ser mandada embora. Vocês vão indo que eu tenho muito que fazer.



7. COM O DOUTOR AGRIPINO

Finalmente chegou a hora de voltar ao trabalho e Norberto foi recebido pelo chefe:
— Creio, meu filho, que nada que eu possa falar lhe trará nenhum conforto. No entanto, Norberto, creia em meus sentimentos e saiba que eu senti muito a sua perda.
— Muito obrigado, doutor! Aliás, eu devo agradecer a sua presença no enterro e na missa. E também a todos os meus colegas, que eu sei que foram movidos por sinceras condolências. Mas é como o senhor disse: não existem palavras que atenuem a dor...
Norberto havia mais ou menos repetido o que pensara em falar ao chefe e aos companheiros, mas as emoções eram por demais fortes, arrastando-o a um pranto sentido.
Agripino, que estava de pé atrás de sua mesa de trabalho, deu a volta e abraçou o moço, num gesto paternal de grande afeição. No entanto, era sabido que o velho administrador não admitia deslizes, sendo inflexível quanto a punir os subordinados faltosos.
Valdemar, que acompanhara o amigo à presença de Agripino e que permanecera perfilado junto à porta, espantava-se ao ver a atitude daquele que, uma semana atrás, fora tão duro para com ele, exigindo que assumisse a responsabilidade pela falcatrua de que estava sendo acusado, indo junto à procura do comerciante lesado, obrigando que formalizasse um pedido de desculpa e que ressarcisse todas as despesas junto ao poder judiciário e, mais, que denunciasse ao promotor a própria culpa, incondicionalmente. É verdade que lograra indulto, porque a vítima, matreiramente, exigiu uma indenização para que retirasse a queixa, abafando o caso, principalmente porque, projetando sua visão para o futuro, enxergava um corpo fiscal inteiramente à sua disposição, podendo sonegar taxas e impostos à vontade.
O faltoso lembrava-se da argúcia do chefe ao responder como é que ele sabia que o outro não levaria avante a denúncia:
— Esse sujeito quer se aproveitar da situação. Se desejasse ver a gente nas barras do tribunal, teria ido à imprensa.
O que Valdemar não ficara sabendo é que Agripino designara uma equipe de confiança para sondar as atividades do comerciante, para apanhá-lo com a boca na botija.
Isso foi o que Agripino e Valdemar recordaram à vista um do outro, enquanto Norberto se recompunha.
Passados uns instantes, o rapaz já se controlava, reconhecendo:
— Doutor Agripino, pensei muito no que o senhor me falou no cemitério. Se é verdade que ali jazem os corpos porque os espíritos têm outras necessidades e outras sensações, então, me pareceu lógico que os que partiram, caso tenham levado um bom sentimento de amor e de companheirismo, também devem estar com muita vontade de ficar na companhia dos que estão vivos.
— É isso mesmo que eu tenho visto e ouvido nas sessões do centro espírita. Mas eu não recomendo a você que vá até lá, não sem antes saber se está pronto para renunciar a muitos pontos de sua religião, porque os católicos não aceitam que os que morreram venham conversar com seus entes queridos, muito menos através de pessoas que chamamos de médiuns e que dizem que têm esse poder.
Para Valdemar aquelas informações eram puras novidades. Ele mesmo cultivava um catolicismo de fachada, mas recebera o impacto de uma séria advertência do confessor, pois fora atrás de apoio moral para ver se se recuperava da lambança que sofrera e trouxe de volta, como penitência, a necessidade de cumprir uma promessa que faria a São Judas Tadeu de ir nove vezes acender um círio em ação de graça por haver saído ileso do episódio.
Fora do escritório, Norberto trazia na mão um livro que o chefe fizera questão de lhe dar, com a advertência:
— Esse é o livro que abriu caminho para a divulgação do espiritismo. Leia com muita atenção e medite sobre a possibilidade de tudo aí estar certo, pensando do ponto de vista de sua falecida Nelma. O Livro dos Espíritos, como você verá, é uma reflexão sobre a existência do ponto de vista da espiritualidade.



8. PRIMEIRAS REAÇÕES AO LIVRO

Valdemar julgou-se diminuído perante o desvelo do chefe pelo amigo. Mas logo desfez a má impressão, pensando em que a perda da esposa deveria comover o coração ao outro e, num caso tão doloroso quanto esse, ele também receberia como presente um livro. De qualquer modo, interessou-se pelo grosso volume, tomando-o da mão do parceiro para dar-lhe uma folheada.
Ambos sorriram compreensivamente, sendo a primeira vez que tal manifestação se dava a Norberto após o falecimento de Nelma.
Então se travou entre os dois o seguinte diálogo:
— Valdemar, que você está pensando a respeito desse livro?
— Norberto, eu estou pensando que você deve ler e me contar o que leu, porque aqui tem muita coisa escrita.
— Falando sério. Você não acha que o Agripino desta vez exagerou? Onde se viu fazer uma tentativa tão declarada de me convencer a aceitar uma seita que é a dele, sabendo que eu pertenço a outra religião.
— Ainda mais sabendo que ele esteve na igreja acompanhando o ofício da santa missa em memória de sua mulher.
— Tem muita gente dizendo que isso é mera cortesia; um simples ato social.
— Você ia notar se ele não fosse?
— Teve muita gente que não foi.
— É isso aí.
— Isso aí o quê?
— Você reparou que teve gente que faltou ao compromisso da amizade.
— Eu senti a falta de muita gente. Mas nem por isso me aborreci. Se o Agripino não tivesse ido, ainda mais agora sabendo que é espírita, eu até que tinha ficado satisfeito por ele ter ido ao cemitério.
Glauco e Etelvino acompanhavam o diálogo vazio, analisando as alterações íntimas de ambos, vendo claramente que estavam muito mais curiosos a respeito da existência dos espíritos do que as suas convicções católicas lhes estavam permitindo declarar.
Etelvino gostaria de ouvir Norberto falar a respeito da esposa e insuflou-lhe a imagem dela na mente. Mas foi Valdemar quem trouxe, de novo, a figura de Nelma, desta vez como que atendendo à solicitação do protetor:
— Será que a Nelma também contou quem esteve presente no cemitério ou na missa?
— Você acredita que a alma dela está pairando por aí, sem eira nem beira? Eu acho que, se ela estiver em algum lugar, vai estar cuidando do Júnior. Ou fez alguma recomendação muito especial ao anjo da guarda do pequeno pra vigiá-lo na maternidade. Sabe qual é o meu maior medo? É que ele contraia alguma infecção hospitalar.
Mas Valdemar estava mais interessado no assunto do livro:
— Se você não quiser ler logo, eu levo pra casa e trago de volta depressinha.
— Deixe de ser muquirana, mão-de-vaca! Eu compro um desses pra mim. Fique com esse.
— Mas este tem uma dedicatória. Olha aqui o que Agripino escreveu: Ao meu amigo infeliz, para que saiba que o sofrimento está nos planos de Deus, porque é um dos meios de a gente superar a frágil condição humana. E isto foram os espíritos que escreveram e Kardec comentou. Não despreze a sabedoria que nos vem da outra esfera, pondo-se de bem com a verdade da existência, sob as luzes do evangelho do Cristo. Quero saber onde é que você pretendia comprar outro exemplar.
Norberto não entendeu quase nada do que o outro leu, mas apanhou o volume, respondendo:
— Vou comprar um exemplar pra você numa banca de jornal, simplesmente.
— Tão fácil?
— Pois é.



9. O CENTRO ESPÍRITA VISTO DE FORA

Os dois amigos evitavam tocar no tema do insucesso de Valdemar perante a esperteza do comerciante. Mas esse silêncio incomodava o viúvo, porque estivera a pique de cair na mesma esparrela. Norberto achava que, se falasse a respeito, seria o mesmo que escarafunchar os mistérios de sua infelicidade matrimonial.
No entanto, ambos desejavam muito tirar a limpo a possibilidade de os mortais conversarem com os defuntos, principalmente agora que havia alguém tão próximo, cujo testemunho seria decisivo.
Eis como Norberto sentia o problema:
“Se for verdade que Nelma possa vir falar comigo, quem sabe ela me diga como é que devo proceder pra criar o nosso filho. Por exemplo, se ela quiser que a mãe dela assuma a responsabilidade, vai ter de definir algumas coisas fundamentais, como posso contribuir sem ser acusado de estar ausente. Nesse caso, será que ela será capaz de perceber que estou muito atrapalhado com a situação? Será que ela vai dizer que já pensei em arrumar um outro casamento, pra atribuir a função a uma possível madrasta?”
Era um ponto delicado que deixaria o pobre envolto em profundas vergonhas. Indo nesse diapasão, acabou Norberto pensando em que, em havendo um guia para o centro, talvez ele pudesse revelar o seu intento de ferir os princípios morais no trabalho, concluindo:
“Seria mais fácil ainda declarar o que aconteceu ao Valdemar, principalmente se o centro for aquele freqüentado por Agripino, porque talvez ele tenha dado com a língua nos dentes.”
Foi esse raciocínio que resultou em uma decidida opinião de que deveria abrir o jogo com o amigo. Sendo assim, após haver procurado inutilmente um exemplar de O Livro dos Espíritos em diversas bancas de jornais e revistas, cujos funcionários indicavam a existência de serviços de vendas por correio e até pela Internet, havendo um informado que em quase todos os centros espíritas existe uma livraria e uma biblioteca, podendo o consulente emprestar a obra, caso não queira comprar sem conhecer, Norberto, na hora do almoço, pegou o amigo pelo braço:
— Precisamos conversar.
— Venha almoçar comigo, lá em casa.
— Não posso. Minha mãe faz questão de preparar almoço e janta. Se eu não for e ela souber que almocei em sua casa, vai ficar sentida.
— Ela guarda o almoço e não vai precisar preparar a janta.
— Diga isso a ela.
— Eu entendo, porque minha cara consorte não vai me perdoar se eu faltar especialmente hoje, quinto aniversário de nosso casamento.
— Mas já, Valdemar?! Parece que foi ontem mesmo.
— Cadê o livro que você me prometeu?
— Não encontrei. Mas eu acho que você não vai gostar. Eu estou começando, mas os assuntos são muito técnicos. É um tal de dizer que o espiritismo não é isso nem aquilo... Em suma, estou no começo, na introdução. Vamos ver no que dá. Acontece que, se a gente for a um centro, lá eles vendem esse e outros livros.
Valdemar teve uma idéia:
— Ora, eu passo na frente de um centro. Paro lá e compro o livro.
— E você pode perguntar a que hora tem sessão. Que tal?
— Deixe comigo.
O assunto que formigava no cérebro de Norberto estava difícil de dizer. Por fim, despedindo-se, acrescentou:
— Pense no seguinte: se os espíritos estão ao redor da gente e acompanham o que fazemos e o que pensamos, será que não vão falar a respeito das propinas que recebemos por baixo do pano?
Valdemar foi surpreendido, mas, apressou-se, informando apenas:
— Vou pensar a respeito. Se der, à tarde a gente conversa mais um pouco.
Em casa, Sofia, a esposa de Valdemar, estranhou que o marido estava ainda mais estranho que nos últimos tempos. Quando isso ocorria, ficava na dela, caladinha, porque o moço se agastava com pouco. Mas foi Valdemar quem puxou assunto:
— Que sabe você a respeito do que se passa nos centros espíritas?
O catolicismo folgado na mente da jovem senhora deu uma encolhida, mas nada que sufocasse uma resposta:
— A dar ouvido ao Padre Frederico, é um antro de perversão. Por que a pergunta?
As explicações iriam até o final do intervalo para o almoço, de sorte que, quando Valdemar saiu de volta, ainda sem o livro, porque o centro estava fechado, levava a certeza de que Sofia conhecia bem mais do que confessara.



10. COMO AUMENTAR UMA CURIOSIDADE

Deixemos de lado as inúmeras hesitações e vamos às recriminações dos padres Tiago e Frederico às confissões dos dois amigos, quando declararam interesse em ouvir o espírito de Nelma pela voz de algum médium ou de ler alguma mensagem dela.
Tiago, conversando amistosamente com Norberto, condoído de seu sofrimento moral, aconselhou-o a esquecer a esposa, afirmando:
— Que poderia ela dizer a você que você não possa deduzir sozinho? Ainda que seja verdade o fato de que os espíritos são as almas dos mortos, como boa católica que era, ela só poderia vir dizer-lhe para cuidar de seu filho, para ser bom e generoso para com as pessoas e para com a Igreja, para evitar burlar as leis dos homens, liberando-o, inclusive, para que se case de novo, se essa for a sua vontade, porque ela agora sabe mais do que nunca que os laços matrimoniais adquiridos perante Deus se rompem com a morte, caso contrário, as mulheres piedosas de maridos perversos haveriam de padecer no paraíso, conforme a conhecida poesia, enquanto os homens amados ficariam a tostar no fogo eterno do inferno. Se você quiser ler algo mais edificante do que essa filosofia barata do espiritismo, leia as vidas dos santos, as biografias dos beatos, esses, sim, dignos de respeito. Mas é bom saber, eis o meu aviso mais sério, que as pessoas dos centros espíritas são muito hábeis em arregimentar correligionários quando estão enfraquecidos por dores tão profundas quanto às suas, pessoas que perderam parentes, que têm viciados ou doentes graves na família e que a medicina comum não consegue curar. Você vai ver (espero que não veja) que eles dizem que não pedem dinheiro, mas vão oferecer-lhe muitos livros para comprar, muitos convites de eventos beneficentes, mensalidades e contribuições avulsas, com o acréscimo de dizer que os padres e pastores é que são gananciosos e que estabelecem o pagamento do dízimo como obrigatório. Na verdade, se você somar tudo, vai verificar que lá o dinheiro que se deixa é muito maior, sem que se reflita em nenhuma construção de orfanato, hospital, escola ou simples creche. No máximo, e isto é bem raro, eles dão uns cursos para gestantes carentes, sem qualquer apoio científico, médico ou mesmo de alguma enfermeira obstétrica. Sabe como é que eu sei disso tudo? Porque muitos irmãos nossos, como você, se interessaram e foram ver de perto o que acontece dentro dessas casas e desses cultos, voltando decepcionados e contando tudo o que lá viram e sentiram. Não caia nessa, eu lhe peço. Mas, se cair, apesar de todos os meus avisos, prepare-se para voltar ao seio da Santa Madre Igreja com muita humildade e arrependimento.
A lengalenga só não foi mais longe porque Norberto ficava a se lembrar de Nelma ajoelhada junto ao altar para receber a comunhão, parecendo-lhe vê-la na longa fila dos que buscavam receber a hóstia consagrada, e suas lágrimas inibiram a fogosidade do padre e amigo.
Quanto a Valdemar, Frederico foi muito mais contundente mas menos prolixo:
— Você costuma errar em seus cálculos. Não vá entrar nessa fria, nessa geladíssima. Ou melhor: leia o livro de Kardec que quiser e depois venha discutir comigo todos os princípios que lá você encontrar dignos de nota. Pelo menos, você me dará condições de enfrentar o demônio que estará tentando você. E não adianta dizer que Sofia já leu esses livros, porque eu tirei da cabeça dela as idéias absurdas de um deusinho preocupado em cuidar de cada feridinha física ou moral de suas criaturas. Deus é um espírito perfeitíssimo que julga o que é bom e o que é ruim nas pessoas e que faz que os que praticaram o bem ou que se arrependeram de ter praticado o mal e cumpriram com o coração contrito todas as penitências que seu confessor lhe prescreveu passem para o seu lado direito, mandando os maus, os degenerados, os ladrões de coração empedernido para as profundezas dos infernos. Como eu sei que você não quer isso para você, vou confiar em que todas as suas tentações terminem em meu confessionário. Vá em paz, esqueça essas idéias funestas e reze três vezes o credo, cinco padre-nossos e dez ave-marias.
Quando os dois amigos contaram os sermões que ouviram um ao outro, ficaram ainda mais interessados em verificar se os espíritos que ditaram as mensagens que Kardec distribuiu por suas obras tinham objeções plausíveis àquelas colocações.
Norberto adiantou:
— Sabe como é que se iniciaram, no século dezenove, as comunicações entre os mortos e os vivos?
— As pessoas começaram a falar sem parar sobre fatos que desconheciam.
— Nada disso. As pessoas se punham em torno das mesas e ouviam pancadas dentro ou fora do móvel. Aí alguém inventou um sistema de sim e não, dando início às conversações. Está lá na introdução do livro. Se você não tiver medo de torrar pela eternidade só porque foi visitar um lugar proibido pelos padres, sabendo que vai receber o perdão deles quando se arrepender de ter ido, peça pra Sofia deixar você sair esta noite...
— Se eu falar que vou a um centro, acho que ela vai querer ir junto.
— Melhor ainda. Quem sabe ela se encontre com pessoas conhecidas naquele centro perto de sua casa.
— Ficamos assim: você me pega em casa às sete e meia.
— Combinado.



11. SOFIA DÁ AS CARTAS

Precavido, Valdemar ligou para casa. Queria colocar a esposa a par das deliberações tomadas:
— Amor, Norberto e eu planejamos ir ao centro espírita esta noite. Estou ligando pra ver se você deseja ir junto.
Do outro lado da linha, Sofia se abespinhou:
— Essas decisões a gente não toma sozinho. Há três anos, quando eu quis que você fosse comigo ao centro, o que foi que você disse?
— Eu disse que você podia ir...
— Você disse pra eu ir sozinha, que você não queria complicação com o Frederico.
— Não foi bem assim...
— Foi exatamente assim, sim, senhor. E digo mais, quando o padre ficou sabendo dos livros que eu tinha em casa, quem foi que denunciou?
— Eu achei que você estava perdendo sua alma...
— Você achou que eu estava saindo à noite, tanto que me seguiu...
— Escute, Sofia, pelo telefone, não! Por favor.
— Está certo! Mas me fazer entregar os livros ao Frederico...
— Foi ele quem mandou. Eu só queria que você fosse comigo à missa.
— Santo de pau oco! Santinho de pau oco! Santarrão...
Valdemar precisou engolir a ofensa. Mas se defendeu como pôde:
— Já me arrependi, me confessei, cumpri a penitência e prometi ao padre e ao chefe que nunca mais...
— Está certo, querido. Desculpe! Mas você sabe se o centro abre pro público esta noite? Foi lá perguntar?
— Posso telefonar.
— Não é fácil. Quase sempre o número é particular de algum membro da diretoria. É neste centro aqui perto que vocês estão pretendendo ir?
— É.
— Então, eu vou ver no quadro de avisos e depois devolvo a ligação. Certo?
— Está bem!
Enquanto Valdemar embarafustava miolo adentro a ver se encontrava um meio de aplacar a fúria serôdia da esposa, esta procurava, nos antigos endereços, um número que pudesse ligar para não ter de sair. Encontrou vários. Por sorte, na primeira tentativa, contactou uma companheira daqueles tempos que soube informar que a atividade da noite se restringia a trabalhos internos e reservados. No entanto, poderiam comparecer que haveria uma pessoa encarregada das entrevistas e para orientar os neófitos.
Sofia estranhou o termo:
— Neófitos?
— Os pleiteantes ao noviciado, como nos ensinaram ontem em nossa reunião de estudos da doutrina. Estamos estudando O Livro dos Espíritos.
— Dá pra pegar o bonde andando?
— Como?
— Dá pros neófitos participarem?
— Perfeitamente, porque o curso é pra principiantes, e estamos bem no começo.
Quando Sofia ligou de volta para o marido com as novidades, encontrou-o arredio, ressabiado com a possibilidade de um revide. No entanto, tranqüilizou-se ao notar o entusiasmo com que a mulher lhe comunicou o resultado de suas pesquisas, acrescentando, com um tom de reservada ironia:
— Não tenha medo que não vou contar nada ao Frederico. Ao menos enquanto não me vir obrigada pela consciência. Quanto à sua, você se avenha com ela.
Às sete e meia, pontualmente, Norberto buzinava chamando o casal. Às sete e quarenta, desvencilhando-se do trânsito que já amainava, Norberto parava diante do prédio do Centro Espírita do Amor Fraterno de Jesus. Na porta, toda sorrisos, Dona Clotilde, a informante de Sofia:
— Estava ficando aflita, porque as nossas atividades estão pra começar, e só eu estou faltando. Sendo assim, eu vou levar vocês pro Claudiomiro, que irá explicar tudo direitinho. A Sofia não quer assistir à reunião de desobsessão?
— Fique à vontade. Eu não estou preparada. Aliás, quero estar presente à entrevista do Norberto.
Foram entrando na primeira saleta à esquerda de um pequeno corredor, enquanto a anfitriã se dirigiu à porta do fundo que dava para um auditório.
Claudiomiro era um senhor de meia idade, que foi logo buscando mais uma cadeira para acomodar os três, enquanto ia fazendo um rápido comentário a respeito das atividades do centro.



12. A ENTREVISTA

Claudiomiro colocou uns formulários sobre a mesa e começou a tomar nota dos dados pessoais dos três amigos.
Sofia fez notar que já preenchera, há alguns anos, um daqueles, mas foi informada de que era melhor fazer uma nova ficha, pois alguns elementos poderiam estar alterados.
— Por que vocês estão procurando a nossa casa?
A pergunta pegou os informantes de surpresa, mas Norberto se antecipou:
— A verdade é que me disseram que eu poderia conversar com minha falecida esposa, coisa que eu gostaria muito.
— Por quê? O senhor acha...
— Trate-me por você, por favor.
— Então exijo o mesmo tratamento, apesar de minhas cãs, ou seja, de meus cabelos brancos.
Sofia demonstrou certa intimidade:
— Cabelos brancos nos homens dão um certo charme...
Valdemar completou:
— E, nas mulheres, eles só envelhecem, como diz minha mãe.
O entrevistador observou:
— Vocês estão afinadinhos.
E, retomando o curso dos pensamentos, acrescentou:
— Você acha, Norberto, que sua mulher está à disposição pra matar-lhe a curiosidade? Sabe por que estou dizendo isso? Porque, se ela tem necessidade de estar consigo, ela já está soprando em seus ouvidos, ou melhor, diretamente em sua mente ou em sua consciência, tudo o que ela deseja transmitir-lhe. Por exemplo: quem me diz que não foi ela quem sugeriu intuitivamente que você deveria procurar a nossa casa? Que me diz disso?
Norberto olhou com certa aflição para Valdemar e Sofia, como a pedir ajuda, mas, à vista do silêncio deles, arriscou:
— Eu entendo o que o senhor, você está sugerindo. Às vezes, eu sinto que estou sendo como que empurrado pra...
Ele queria dizer que havia uma força íntima que o impelia para o centro espírita, mas resumiu seu pensamento de modo diferente:
— Eu sinto como que uma necessidade de saber se os padres estão certos quando dizem que é o diabo quem vem nos dizer pra fazer coisas erradas.
— O que a sua mulher (Claudiomiro procurou o nome dela na ficha), Nelma, poderia dizer que o espírito ruim não pudesse dizer?
Sofia se preocupava com o rumo que a conversa tomava, pensando que a provocação pudesse repercutir mal na mente do viúvo. Então, se pôs a orar, pedindo aos protetores, que deveriam estar presentes naquele ambiente sagrado, ainda mais que ali ao lado estavam atuando na ajuda dos irmãos sofredores, que olhassem também pelo bom andamento da entrevista.
Quanto a Valdemar, que gostava de desafios e que, ultimamente, andava meio ressabiado com a vida pelos fracassos nas investidas dos malfeitos, com a economia doméstica abalada pelos gastos com o ressarcimento que Agripino lhe obrigou a efetuar, estava achando o desenvolvimento da conversa sumamente interessante. Pensou até que, se fosse com ele, responderia que o diabo nem sempre era tão feio quanto o pintavam, mas quedou suspenso na expectativa da resposta do amigo.
Norberto olhava fixamente para Claudiomiro, querendo descobrir em sua fisionomia vestígios de sarcasmo que a tonalidade da voz não denunciara. Levou algum tempo escrutinando o outro, também para dar-se um tempo para reflexão, até que respondeu:
— Se eu fosse considerar a minha fé católica, diria que Nelma poderia dizer tudo aquilo que meu anjo da guarda impediria o demônio de saber, porque eu acho que, existindo duas forças espirituais, uma pro bem, outra pro mal, é lógico que sairia vencedora a que brande a espada da verdade, com perdão de minhas palavras empolgadas.
Os que o ouviram ficaram admirados com a imagem poderosa expressa nos dizeres imprevisíveis do modestíssimo fiscal. Contudo, Claudiomiro não deixou esfriar o ferro, martelando por sua vez:
— Pra nós, espíritas, essas forças espirituais se põem à disposição das pessoas pra defendê-las ou obsidiá-las de acordo com a tendência moral que apresentam. O protetor, guia, guardião, mentor, amigo da espiritualidade, qualquer nome que se dê ao espírito que orienta os mortais, tem a função de mantê-lo longe das tentações, desde que o seu protegido tenha no coração e na mente a intenção de praticar apenas o bem. Qualquer vibração negativa vai atrair um espírito infeliz ou inferior, que irá se aproveitar da brecha que se abriu pra invadir o castelo com as lanças da maldade.
Ao dizer as últimas palavras, assenhoreou-se das mãos de Norberto, como a compartilhar-lhe as idéias e sentimentos. E todos sorriram francamente.
Aí o entrevistador quis saber:
— Meu caro amigo, você está lendo alguma obra espírita? Digo isto porque me parece que as minhas palavras encontram eco em seu cérebro.
Daí até o fim, a entrevista deslanchou, estabeleceu-se um clima de cordialidade e os três interessados receberam um convite formal para freqüentarem o curso sobre O Livro dos Espíritos, como ainda para comparecerem às palestras seguidas de distribuição de passes magnéticos, cuja explicação Claudiomiro fez questão de ministrar:
— Trata-se de um tipo de mediunidade de cura de caráter bastante geral, em que um elemento treinado e preparado moral e espiritualmente busca estabelecer um contato extrafísico com a pessoa que está sendo atendida, segundo as suas necessidades mais prementes no plano das vicissitudes do dia-a-dia, quer através das forças espirituais que possui, quer das que arrecada dos irmãos desencarnados de boa índole que o assistem.
Aí Sofia se viu obrigada a dizer:
— Até parece que estou ouvindo o irmão Claudiomiro quando nos deu uma aula há tantos anos atrás.
E o interlocutor completou:
— Existem certos conhecimentos que a gente não pode exprimir de qualquer jeito. Pelo menos um pouco de cuidado com as palavras é preciso ter, ou o ouvinte acaba se atrapalhando com os conceitos. É por isso que certos dados eu tenho de cor, ou seja, eu trago no coração.
Ao saírem do centro, Norberto e Valdemar tinham a certeza de que naquele ambiente havia muita paz, porque os seus corações e sua mentes estavam totalmente tranqüilos, sem nenhuma penitência para cumprir.



13. DISCUSSÕES ÍNTIMAS E OUTRAS

Já com um exemplar de O Livro dos Espíritos, Valdemar podia avançar no conhecimento teórico da doutrina espírita. Mas aquele desejo intenso inicial de conhecimento se deixou solapar por um temor intrínseco de quem se acostumou a executar atos deliberados contra as leis, a moralidade vigente e os mandamentos religiosos, mas delegando a responsabilidade da recuperação do bem-estar a um confessor plenipotenciário quanto a ministrar incondicional perdão.
Os espíritos começaram a lhe parecer forças da natureza capazes de forçá-lo a uma ação deletéria ou a orientá-lo na senda do bem, atribuindo-lhe, contudo, integral responsabilidade pela aplicação das diretrizes saudáveis que o haveriam de levar a um aperfeiçoamento.
Meditou:
“Se é verdade que o que estou a ler proveio dessas entidades que furaram o bloqueio da matéria pra ensinar aos encarnados, por que é que isso não ocorreu com todo o mundo? Se foi tão universal o sistema de batidas e sons espontâneos dentro dos móveis, por que é que isso não se encontra mais hoje em dia? Será que esses chamados efeitos físicos ou materiais se reproduzem nas reuniões em que são chamados ou evocados os irmãos que permanecem na espiritualidade? Talvez eu tenha de perguntar a Sofia a razão de ela ter freqüentado o centro espírita pra depois abandonar tudo, mantendo-se fiel à Igreja Católica. Ou estará fingindo pra obter um equilíbrio doméstico, dado que eu a encostei na parede, quando descobri que ia pôr de lado a crença antiga, já desinteressada de receber os sacramentos da confissão e da eucaristia?”
Chegadas nesse ponto, as reflexões ganharam tonalidade fantasiosa, imaginando-se o pobre diabo o pior dos maridos, a vergastar umas chibatadas na escrava em que transformara Sofia. Aí desviou suas preocupações para o fato do momento:
“Quando estou a divagar, perdendo o rumo das considerações objetivas, será que existe algum espírito obsessor causando-me esse mal-estar íntimo, pela acusação que me obriga a fazer de que sou um vilão e de que minha esposa me trai por pensamentos, uma vez que não me confessa com clareza e coragem tudo o que lhe vai na alma? Sinto apertar meu coração no peito e, quando penso que poderia estar agora com um bom dinheiro no bolso, se não fosse...”
Aqui sufocou uns impropérios contra o seu denunciante, mas sem agradecer as providências de Agripino que o haviam livrado de uma conseqüência mais grave. E prosseguiu:
“Tenho que admitir que a minha situação está definida. Quando a gente está no remoinho da ganância e da corrupção, parece que a mente se concentra na prática do maior número de atos contra o patrimônio do próximo, não dando tempo nenhum a que o cérebro oponha razões de caráter moral à vontade de agir mal. Agora que me vejo meio solto pra pensar com desafogo, já começo até a imaginar que o pessoal do centro pode se constituir em um grupo de pessoas com problemas, pessoas que vão em busca de conselhos ou de saídas pra seus dramas. Aposto que lá não vou encontrar ninguém em processo de degeneração, porque todo o mundo deve estar querendo progredir. Eu vejo Sofia retornando a esse tipo de atividade e imagino que ela tenha dado um tempo pra mim, já que precisava evitar que eu caísse nas malhas da polícia, pelos crimes que estava cometendo.”
Glauco e Etelvino se congratulavam com o fato de estarem conseguindo insuflar na mente do protegido ao menos alguns raciocínios de caráter edificante. Um pouco mais tarde trocariam as seguintes idéias:
— Você percebeu, Etelvino, como é que se processam os sedimentos iniciais da doutrina? Sentiu, como eu, que Valdemar põe, sutilmente, em dúvida sua possibilidade de melhoria, desejoso de configurar uma religião de fé irracional, por haver percebido o trabalho que irá ter para desenvolver todos os itens que leu, aleatoriamente, em um ou outro capítulo de Kardec?
— Claro, querido Glauco. E digo mais: sem o apoio de Sofia e de suas suspeitas a respeito dos pensamentos e intenções dela, certamente o nosso Valdemar iria intentar alguma vingança contra o seu desafeto. Vamos esperar para ver. Enquanto isso, é trabalhar com afinco para mantê-lo nesse estado de expectativa quanto à reunião no centro.
Entrementes, Norberto se via às voltas com o problema do Júnior, porque estava chegando a hora de o médico dar-lhe alta. Contava, evidentemente, com a ajuda dos pais, muito embora o aspecto financeiro não o preocupasse. Mas, de qualquer modo, precisou ceder ao casal o próprio quarto, onde ficaria o berço do recém-nascido, concretizando a idéia de que precisaria construir mais um dormitório no fundo do terreno, onde havia um quartinho de despensa que estava sendo transformado em dormitório para Beatriz, convocada para dar atenção à família vinte e quatro horas por dia.
Essas providências, na verdade, eram puramente fictícias, uma vez que, ao expor suas intenções aos pais, já no dia seguinte Raul saía com Neusa para tornar realidade as idéias do filho. Foi assim que, após distribuir os pertences pessoais de Nelma entre os familiares, a maior parte aos pais da falecida, e de haver doado o que restou à paróquia para oferecer aos necessitados por alguns trocados, avaliaram o enxoval do bebê, completando-o com o que faltava. Foi assim também que compareceu um arquiteto para o rascunho da reforma do prédio, sugerindo que melhor seria procurar em sua imobiliária uma residência nova à venda, mais adequada para o tipo de família que se formara de repente, lembrando, intencionalmente, que entre o viúvo e o antigo solteiro, só havia uma criança e que essa criança não seria obstáculo para a constituição de um novo lar.
Se Norberto tivesse estado presente a essa exposição de motivos, talvez tivesse mandado o arquiteto às favas. No entanto, Raul relatou ao filho só o que respeitava aos aspectos técnicos da moradia, sugestionado pela esposa, que estava com medo de que o filho, tal como começava a deixar a religião, acabaria por deixar o filho com os pais, montando um apartamento que logo transformaria em garçonnière.
Quando estavam deliberando sobre qual era a melhor decisão, foram chamados ao hospital: o Júnior estava com uma infecção hospitalar.



14. AMOR DE PAI

No caminho para o hospital, estando Raul a dirigir o carro, Norberto pôde concentrar-se em pensamentos soturnos a respeito dos últimos tempos de sua vida:
“Que fiz eu de tão terrível pra merecer tantos sofrimentos de uma só vez? E se o meu filhinho morrer? Não sei se vou agüentar calado mais esta tragédia. A morte de Nelma foi muito esquisita. Bem que me aconselharam a colocar advogado em cima da administração e dos médicos. Agora essa de infecção hospitalar é a confissão pública de negligência, de falta de cuidado e de higiene. Que sei eu?... A verdade é que os jornais estão cheios de casos de bebês prematuros que morrem nos centros de terapia intensiva e os hospitais têm de pagar indenizações... Que indenizações, qual nada! Eu acho que nunca nenhum pagou nada a ninguém, a não ser o governo que esbanja o dinheiro do contribuinte e que não está nem aí se perdeu esta ou aquela causa. E quanto advogado do estado a gente não fica sabendo que facilitou as coisas aos queixosos... Até juízes estão sendo processados por calcularem e embolsarem verdadeiras fortunas, formando quadrilhas...”
Norberto percebeu que se desviava da dor que lhe premia o coração e se pôs a orar, entrecortando os pensamentos com soluços íntimos de profunda frustração.
Não conversaram pais e filho no caminho. Assim que chegaram, Norberto desembarcou na frente do hospital com a mãe, enquanto Raul ia em busca de uma vaga para estacionar. Mas Dona Neusa estava fadada a ficar para trás, tão afoito Norberto foi em busca do elevador, mal dando tempo para se identificar para o guarda que fazia a segurança da portaria. O filho estava no terceiro andar, de modo que logo optou por subir as escadas, deixando a mãe definitivamente para trás.
Antes de chegar à janela de vidro através da qual via o filho na incubadora, foi barrado pela enfermeira no balcão de atendimento do berçário:
— Seu Norberto, por favor!
— Que é que está acontecendo com meu filho?
— Fique calmo. Ele está bem. O Doutor José Carlos está cuidando dele e achou melhor avisar a família. Sendo assim, o senhor precisa ir conversar com ele, porque pode precisar de uma autorização do pai pra uma transferência pra outro hospital.
— Onde o médico está?
— Eu levo o senhor até lá.
— Antes eu quero ver o meu filho.
— Ele está no isolamento. Lá o tratamento é bem melhor.
— Moça, por favor, sem comentários. Eu quero conversar com o médico.
A moça já havia dado a volta no balcão e começou a caminhar na frente de Norberto, indo na direção do fundo do corredor, onde estavam os elevadores destinados ao público. Foi onde encontraram Dona Neusa, que estava pálida e trêmula.
— Mãe, o Júnior está no isolamento. Vamos conversar com o Doutor José Carlos.
— Coragem, filho! Deus sabe o que faz. Tenha confiança nele!
Mas Norberto nem prestou atenção àquelas palavras. Toda a sua atenção estava concentrada em ouvir o que o médico tinha para dizer, repercutindo-lhe no ouvido ainda a necessidade de transferência do pequenino enfermo.
Subiram mais três andares. Antes que chegassem, já Dona Neusa havia advertido a atendente sobre encaminhar o marido à mesma sala.
O médico estava à espera de Norberto e logo o atendeu, deixando-o entrar imediatamente numa saleta de consulta, solicitando à enfermeira do andar que cuidasse do paciente que ele estava examinando.
— Então, doutor, o que se passa?
Solícito, José Carlos apontou para as cadeiras, respondendo concomitantemente:
— Vejo que vocês estão transtornados. Não é para tanto. Seu filho adquiriu uma virose que está recebendo tratamento. Se ele não fosse prematuro, eu nem me preocuparia. No entanto, não posso mantê-lo com os outros recém-nascidos, nem ocupar um lugar no isolamento, porque ali ele está correndo o risco de adquirir outras doenças. Sendo assim, acho melhor que ele se trate em casa, se possível, com o revezamento de duas ou três enfermeiras, tudo por conta do hospital, inclusive todo o instrumental necessário. Eu mesmo faço uma vistoria e vejo se o local é conveniente, se não apresenta nenhum perigo quanto a...
— E se ele morrer?
Dona Neusa correu em auxílio ao médico:
— Norberto, essa pergunta não se faz!
José Carlos interveio:
— Ele não corre nenhum risco de vida. Está ganhando peso normalmente e, se não fosse essa superveniência, dentro de no máximo uma semana, ele iria para casa com alta.
— Mas o senhor está dando alta...
— Veja bem, eu não estou dando alta. Estou transferindo a criança para outro ambiente por medida de prudência, mas com as mesmas ou maiores garantias que o hospital pode oferecer. Não é que o ambiente hospitalar não seja adequado; é que as moléstias decorrentes de locais que agasalham os mais diversos microorganismos pode tornar-se um risco para quem está com o sistema imunológico precário.
— Eu nunca ouvi falar numa coisa dessas, doutor.
— Este é um recurso de terceiro mundo. Em países mais adiantados, os bebês nessas condições vão para setores totalmente isentos de contaminação. Você já deve ter até visto na televisão ou nas revistas crianças que permanecem dentro de bolhas de plástico. Aqui, quem tem esse tipo de problema dificilmente sobrevive. Então, a nossa alternativa é envolver a família, pelo amor e pela responsabilidade nos cuidados profiláticos, cabendo ao corpo médico do hospital acompanhar e interferir em caso de necessidade.
— Quer dizer que, se ele ficar aqui, vai morrer.
— Você não está acompanhando o meu raciocínio.
— Estou, sim, tanto que eu quero saber quem mais aqui da administração está de acordo com essa maneira de se livrar da responsabilidade.
José Carlos, dando mostras de ter passado mais vezes por situações semelhantes, não demonstrou enfado nem zanga, mas, querendo colocar Norberto mais à vontade, esclareceu:
— Não se trata de transferir responsabilidade. Estamos recomendando, para o bem da criança, que ela fique num ambiente mais seguro quanto à incidência de moléstias oportunistas. Na verdade, havendo boas condições, nós transformaremos o quarto em que ele vai ficar em sua casa num verdadeiro isolamento, numa espécie de bolha imunológica. Vocês não terão que assinar nenhum formulário. Ao contrário, nós lhe daremos uma espécie de contrato, com uma cláusula de seguro, em que assumimos inteira responsabilidade pelo tratamento do bebê.
Nesse momento, a enfermeira deu acesso a Raul, que chegou meio esbaforido.
O médico avaliou o nervosismo do avô e se preparou para repetir todas as informações. Enquanto isso, Norberto se postou junto da janela a observar o movimento dos faróis e das lanternas vermelhas dos automóveis que iam e vinham indiferentes ao drama de sua alma. Quando percebeu que o pai já estava a par de tudo, volveu ao seu lugar, declarando:
— Doutor, perdoe-me o meu nervosismo. O senhor não merece passar por momentos tão difíceis, porque eu tenho certeza de que está fazendo o melhor pro meu filho. Mas eu preciso ouvir outros médicos. O senhor está de acordo com isso?
— Claro! E eu quero que eles venham conversar comigo, porque aí eu posso explicar tudo com as palavras médicas adequadas. Mas, é preciso que venham logo, que a demora pode ser prejudicial no sentido que eu lhe falei.
Raul apertava a mão da esposa denotando preocupação, mas falou conciliador:
— Vamos levar o meu netinho para casa. Tudo que for necessário, nós faremos por ele, inclusive, se for preciso, internar noutro hospital.
A ameaça aborreceu o médico, mas não deu sinal de que sentira a agulhada, mesmo porque Raul falara o que disse com o coração na mão, sem intenção de ferir sua susceptibilidade.
Na manhã seguinte, após rigorosa vistoria do quarto em que ficaria a criança, Norberto Dias Júnior chegou de ambulância, dentro da incubadora, que foi ocupar o antigo quarto dos avós, desalojando o pai, sem outros móveis, nem cortinados, nem tapetes, a não ser um pequena mesa e duas cadeiras que vieram do hospital.



15. ONDA DE AZAR

Norberto solicitou e conseguiu de Agripino permissão para que faltasse naquela manhã. Dada a movimentação dentro de casa, não percebeu que Raul estava rodeando-o, havendo-se aproximado diversas vezes, dando alguns dedos de prosa, quase sempre sem nenhuma necessidade.
Quando o Júnior adormeceu sem febre, tendo mamado uma boa quantidade de leite trazido do banco de leite humano do hospital, e o Doutor José Carlos se retirou, deixando a criança sob os cuidados de uma enfermeira, pôde o pai puxar o filho para a cozinha com a desculpa de que estava na hora de um café.
Pacientemente, Raul aguardou que o filho comesse, porque estava alimentando-se muito pouco, tanto que emagrecera bastante, para dizer-lhe o que vinha afligindo-o:
— Norberto, ontem à noite, quando fui estacionar no hospital, bati o carro.
O filho fixou os olhos no velho, querendo maiores informações. O professor aposentado sabia colocar as palavras:
— Estava aguardando abrir uma vaga e a pessoa que saía de ré bateu na minha frente. Ainda bem que ambos os carros têm seguro, de modo que a viatura policial de plantão logo registrou a ocorrência. Não se preocupe com o boletim: eu mesmo vou atrás dele. Só que, para consertar a frente que amassou, vamos ter de esperar autorização da seguradora, após termos levado a uma funilaria autorizada. O pior de tudo é que você vai ter de ficar sem carro por uns tempos. Eu bem que falei para não vender o da Nelma.
Norberto não tugiu nem mugiu; foi ver os estragos e ficou bastante apreensivo com o fato de estar com o pára-choque avariado, tendo o cofre sofrido um deslocamento, bem como o pára-lama esquerdo.
Voltou-se para o pai:
— Sabe que eu não percebi nada de noite? Quando for a hora, eu acho que o Valdemar quebra o meu galho. Caso contrário, vou ter de andar de táxi, porque outro carro eu não vou comprar.
— Você pode alugar um.
— Vou pensar nisso.
— Eu pago.
— Pai, não se preocupe. Se todo o mal do mundo fosse esse, aposto que a humanidade já teria deliberado andar a pé e seria completamente feliz.
Raul insistiu:
— Eu não estou brincando: eu pago o aluguel.
— Está certo. Se for o caso, eu aceito. Pronto.
Ao meio-dia, tendo acompanhado a visita de outro médico que veio para examinar o pequerrucho, encontrando-o reagindo bem à medicação, despediu-se dos pais, recomendou atenção à enfermeira, deu um voto de confiança para Beatriz e foi trabalhar.
Notou que o carro tinha algum problema no amassado e parou na oficina de que era freguês. O mecânico observou que era um pequeno raspão do pneu na lateral, pegou um pé-de-cabra e afastou a lataria, sem dó nem piedade da pintura, juntando à ação algumas palavras:
— Traga o carro que nós trabalhamos pro seguro. Se precisar, dou um jeito de consertar no mesmo orçamento aquele risco na porta.
Norberto estava esperto:
— Nem precisa. É pouca coisa. Eu pago à parte.
— Você é quem sabe.
Ao sair da oficina, Norberto prestava atenção ao desempenho do carro, mantendo o vidro abaixado para verificar se havia algum contato entre o pneu e pára-lama. Andou assim até o farol que distribuía o trânsito para a avenida principal. Ali foi obrigado a parar para atender à luz vermelha do semáforo.
Estava distraído, mergulhado nos acontecimentos recentes que haviam modificado o rumo de sua vida, quando sentiu o frio de um cano na cabeça:
— Se reagir, leva chumbo. Deixa pegar o relógio.
Como se houvesse sido assaltado muitas vezes, Norberto não se afobou. Sem virar o rosto, estendeu o braço, sentindo que o relógio desaparecia de imediato. De quebra, o ladrão tirou-lhe a aliança que estava solta com o dedo mais magro. Como um raio, imaginou que o outro poderia cortar-lhe o anular se houvesse alguma dificuldade.
— Passe a carteira.
— Está no bolso de trás. Posso me mexer pra pegar?
— Veja lá, tio, o que vai fazer.
Norberto voltou a pôr a mão esquerda no volante e com a direita sacou a carteira e passou ao ladrão, solicitando que lhe devolvesse os documentos.
— Vê se te cuida, cara! Passa a maleta.
— Só tem papelada...
— E eu quero lá saber? Vai esquentar?
Norberto pegou a maleta pela alça, mas, quando foi entregar, percebeu que havia uma correria lá fora. Alguém na campana deu o alerta e três bandidos correram em três direções diferentes. Logo, atrás dele, começaram a buzinar, mas Norberto desligou o motor e permaneceu onde estava. Queria ver se a polícia iria aparecer.
De fato, menos de dois minutos depois, com o maior transtorno para os carros atrás dele, chegaram dois policiais a ver o que estava acontecendo.
— O senhor bateu? Onde está a outra viatura?
Norberto percebeu que eles não tinham visto o assalto.
— Eu não bati. Eu fui assaltado. O cara me levou o relógio a aliança e a carteira.
— O senhor estava com o vidro aberto?
— Infelizmente.
— Como era o sujeito?
— Eu não olhei pra ele. Sei que é branco e está com uma camisa de um clube de futebol.
— Que clube?
— Uma camisa branca. Pode ser do Santos, do Corinthians, do Vasco, do Atlético de Madri. Como é que vou saber? Isso é relevante?
— Facilita a perseguição. Enquanto eu passo um rádio, vai dando as informações pro soldado Jurandir.
O soldado bateu uma leve continência:
— Os documentos, por favor.
— O ladrão levou com a carteira.
— Então, vou ser obrigado a apreender o veículo, enquanto o senhor providencia uma segunda via...
— Eu tenho xerox de tudo em casa e no trabalho. Se vocês me seguirem, eu mostro tudo.
— O senhor vai desculpar, mas nós estamos proibidos de fazer serviços a domicílio.
— Então, eu vou ligar pro meu chefe, explicar o que aconteceu e pedir pra ele mandar alguém trazer tudo aqui pra mim.
Ato contínuo, Norberto pegou seu telefone celular e discou para a repartição.
Enquanto se entendia com Agripino, chegou o cabo que o atendera antes, após haver confabulado com o colega. Sem esperar o término da ligação, fazendo de conta que não tinha visto que a vítima fazia uso do telefone, foi perguntando:
— Seu Norberto, onde é que o senhor trabalha?
— Um momentinho Doutor Agripino, que o guarda quer falar comigo. Pois não?
— Onde o senhor trabalha?
— Na Secretaria da Fazenda. Eu sou Fiscal de Rendas do Estado.
O outro se perfilou:
— Então, eu vou deixar as anotações em suspenso e o senhor poderá apresentar queixa na delegacia do bairro, munido das cópias dos documentos. Não retire ainda, doutor, a segunda via. Eles levaram o talão de cheques ou o cartão de crédito?
Não tinham levado, porque, prevenido, sem ter necessidade, ele deixava tudo isso em casa.
— Vá com Deus! Se a gente achar os documentos, eu ligo pro seu número do celular. Em todo caso, daqui a uns dois ou três dias, procure na agência central dos Correios ou na Companhia do Metrô. Lá eles têm serviços de achados e perdidos. Boa sorte, doutor!
Norberto dispensou o auxílio do chefe e só então percebeu que as cópias dos documentos do carro ele só deixava em casa.
Quando chegou à repartição, notou que estava alagado de suor. Mesmo assim, sua primeira preocupação foi ligar para casa. Queria saber como estava o filho.



16. UM MÊS DEPOIS

Norberto e Valdemar haviam abandonado a antiga fé. Freqüentavam o curso de espiritismo a que foram admitidos no Centro Espírita do Amor Fraterno de Jesus e fizeram muitas amizades. Dentre estas, para surpresa de ambos, lá estava o soldado Jurandir, ativo auxiliar de todos os grupos de trabalho, sempre pronto a cobrir ausências, oferecendo seus préstimos dentro e fora da instituição, tanto que diligenciou para a recuperação dos documentos originais roubados, alcançando pleno êxito.
Glauco e Etelvino congratulavam-se por estarem os pupilos começando a distinguir o que era fruto de seus próprios pensamentos das sugestões advindas do etéreo, muito particularmente quando se encontravam sob o resguardo das forças espirituais constituídas pelos guias e protetores do centro e de quantas pessoas de bem lá existentes.
Nem é preciso dizer que o Júnior superou as dificuldades físicas e já se encontrava disposto a pleitear atenção e carinho dos familiares.
Os médicos se desobrigaram de sua responsabilidade, oferecendo alta ao petiz, elaborando minucioso relatório ao colendo corpo administrativo do hospital, onde se incluiu, como tópico relevante, a resistência do pai no primeiro instante em que recebeu a notícia da transferência do filho para tratamento no lar.
O carro foi devidamente cuidado, recuperando seu aspecto primitivo, faltando apenas a última fase de recebimento do cheque da seguradora para pagamento da oficina de funilaria e pintura.
Naquela tarde de domingo em que Norberto se deixara ficar em casa, após receber forte pressão materna para voltar a freqüentar a missa, resolveu espairecer, enquanto o filho dormia, passeando pelo bairro. Havia poucas pessoas na rua, mas o fiscal de rendas, ensimesmado, não prestava atenção sequer aos cumprimentos de alguns passantes que, inegavelmente, não reconhecia.
“Nada como um dia após o outro. Se Durvalina, tão faceira e solícita, continuar se insinuando pro meu lado com ares de quem entende a doutrina espírita tão bem, vou ser obrigado a olhar pra ela com um interesse menos santo quanto requer o ambiente de estudos e de trabalhos espirituais do centro.”
Durvalina era uma antiga freqüentadora do centro espírita, onde animava a parte social. Norberto desde logo ficou sabendo que era divorciada e que, médica com consultório no bairro, havia estabelecido um dia de consultas gratuitas, desde que os clientes portassem uma identificação fornecida pelo centro, que atestava a impossibilidade de a pessoa efetuar pagamento. Não havia nenhuma condição quanto à fé religiosa, conquanto fossem pouquíssimos os evangélicos e mesmo os católicos que a procuravam.
Consultado a respeito, Claudiomiro esclareceu aos dois amigos que os pastores e os padres se viram forçados a criar um ambulatório para cada templo ou paróquia do bairro, porque a propaganda da fé espírita era por demais patente, muito embora estivesse cuidando do corpo e não da alma.
Mas Durvalina era moça, dois anos mais velha que Nelma e um mais nova que Norberto, de modo que a faixa etária não seria empecilho para um possível romance. Empecilho estava sendo o centro de interesse profissional de ambos e o receio de Norberto de ofender o espírito da esposa.
No trabalho, os colegas solteiros tentaram atraí-lo para a sua roda folgazã, de certa libertinagem. Entretanto, o viúvo não se colocou nenhuma vez à disposição, sempre altamente concentrado no filhinho. Mas, depois de algumas semanas do passamento de Nelma, já começava o organismo a reclamar da continência sexual a que não estava habituado, principalmente porque sua castidade datava do quinto mês de gravidez dela.
Esses eram os pensamentos do rapaz, todos muito entrecortados e sob o impacto de um sentimento geral de impotência perante a vida, dado que, naquela semana, recebera de um dos médiuns amigos a comunicação de um dos guias do centro de que Nelma estava bem mas sem condições de comunicar-se pessoalmente. Enviava algumas palavras saudosas, encorajando o ex-marido, mas deixava bem claro que iria manter-se à distância dele e do filho, para, como lá estava escrito, não se tornar um espírito obsessor. Desejava boa sorte e prometia reencontrá-lo mais tarde, por ocasião de sua desencarnação, se fosse possível.
Norberto punha em dúvida a origem mediúnica da mensagem, primeiro, porque não havia nenhuma característica da linguagem de Nelma nem qualquer informe particular que dissesse respeito apenas aos dois; segundo, porque era evidente para todos que Durvalina não perdia oportunidade de se aproximar do neófito praticante da doutrina espírita. De qualquer modo, porém, isso o aborreceu, pois nenhum outro médium iria ousar dar comunicação com diferente teor. Tanto ficou chamuscado emocionalmente que teve uma reação bastante natural de repúdio da nova fé, pensando seriamente em realizar os desejos dos pais, aliás da mãe, porque Raul não dizia nem sim nem não.
Mas a lembrança de Durvalina, obviamente, pesou para dar mais uma oportunidade ao centro, mesmo porque Sofia e Valdemar estavam muitíssimo entusiasmados com o desenvolvimento das aulas, com as palestras que iam respondendo a muitas de suas dúvidas e, especialmente, pelo fato de estarem contribuindo bastante para com as atividades assistenciais dos fins de semana.
Ao se lembrar disso, Norberto imaginou que poderiam estar no centro espírita mas não se empenhou em direcionar seus passos para lá. Sua concentração mental nos fatos mais importantes de sua vida íntima era um poderoso meio de pôr os pingos em vários is. Além disso, a Doutora Durvalina poderia se achar lá e sua visita apenas significaria um interesse para além dos que o aprendizado da doutrina justificaria.
Menos de vinte minutos depois, estava ultrapassando a soleira da casa de atendimento espiritual, cumprimentando alegremente os conhecidos, dando uma atenção especial a Claudiomiro e a Jurandir.
Ao vê-lo, Durvalina abriu um sorriso de inequívoco contentamento. Valdemar e esposa lá não se encontravam, mas Norberto esticou a visita até o momento em que a médica se desocupou e lhe propôs uma carona para voltar para casa, onde desceu para observar o desenvolvimento do Júnior, aproveitando para travar conhecimento com Dona Neusa e marido. Beatriz, que estava no quarto da criança, sorrateiramente, esgueirou-se junto à parede e desapareceu da vista dos presentes.



17. OPINIÕES

Agripino achava que fora muito importante a sua participação no episódio da conversão dos dois subalternos para a doutrina espírita. No entanto, quando soube que estavam freqüentando algumas sessões de estudos e outras tantas de palestras, limitou a apoiar decididamente essa atitude, sem procurar dar asa a que os pombinhos que se empenavam pudessem voar livremente pelos céus da teoria, incentivando-lhes positivamente os aspectos práticos, em particular do casal, cuja vocação altruísta lhe pareceu muito significativa para firmar sua convicção.
Jurandir ergueu muitas preces em agradecimento por Norberto havê-lo inscrito em sua lista de amizades, parecendo-lhe que sua postura de caráter se coadunava com a educação superior de quem recebeu os policiais, após sofrer uma violência da bandidagem da rua, com toda a dignidade e respeito, confiando em que o cumprimento das leis humanas não era mais do que o reflexo da aceitação e da submissão às leis de Deus. Acima de tudo, agradecia aos protetores a oportunidade de ser útil a alguém que poderia fazer uso da máquina administrativa para pôr um ponto final, através de uma resposta de mesma intensidade de violência, só que segundo um padrão bem diferente, conforme ele mesmo a todo o momento testemunhava na própria corporação policial a que pertencia, a começar pela imposição hierárquica do cabo com quem patrulhava as ruas e que se utilizava de um poder discricionário para arbitrar a respeito de cada situação de enfrentamento dos códigos e leis.
Claudiomiro julgava que, dos três amigos, era Norberto quem estava mais perigosamente colocando obstáculos às idéias espíritas, porquanto não admitia que a esposa tivesse tido qualquer participação pelo abreviamento de sua vida, argumentando que ela jamais concordaria em abandonar o filho recém-nascido aos cuidados de pessoas cujo grau de consangüinidade não fosse o primeiro. No entanto, tendo visto tanta gente entrar para o espiritismo por razões que não lhe pareciam lógicas, como outras muitas saírem dele sem haverem solidificado a concepção kardequiana como norma ou diretriz do procedimento intelectual, julgou que o melhor seria aguardar uma definição espontânea, como teria sido aquela de aparecer numa tarde de trabalho efetivo e braçal, se não se configurasse um interesse mútuo de pendor eminentemente carnal entre a médica e o moço.
Neusa cuidava que o filho poderia estar sendo ameaçado por muitos seres das trevas, tanto que via crescer uma simpatia absurda em relação a outra mulher, quando a nora há tão pouco tempo fora levada ao campo-santo. Por isso, rezava bastante, imprimindo às petições de auxílio e proteção aos santos e anjos um caráter pragmático quanto se referisse ao fato de envolver o representante eclesiástico no processo, pela formulação de preces encomendadas pela alma de Nelma, em missas votivas de ação de graças pelo fato de ter sido a nora aquinhoada pela extrema-unção oportuna e universal. Talvez, sem as palavras orientadoras do Padre Tiago, ela não tivesse ido tão longe na interpretação da salvação da alma da moça, mas a presença da médica espírita nimbava de luz a memória da outra, beatificando-a para os sentimentos da ex-sogra.
Raul evitava formular julgamentos a respeito das novas inclinações religiosas do filho. Lembrava-se da moça que morrera tão jovem e se enchia de pena por um futuro de felicidade e de amor totalmente perdido, colocando o filho na condição de viúvo inconsolável, principalmente quando o via embalando no colo o filhinho querido, a todo momento solicitando informações a respeito de tudo quanto cercava a criança. Sendo assim, até que não lamentava o episódio da batida do carro, porque havia desviado a atenção de Norberto para outros fatos concretos da vida, inclusive, despertando para a pouca importância que se deve atribuir a todo prejuízo ou lucro material perante a transcendente valorização da vida como fator de empreendimentos morais superiores, já que o via imerso em leituras que sabia edificantes por haver tomado contato com tais obras em uma fase de descrença e de insegurança, só não seguindo a corrente desse rio de águas límpidas e piscosas, porque havia arribado à muralha da represa católica da esposa.
Valdemar estava vendo todos os acontecimentos mais pelos olhos de Sofia, de sorte que evitava pensar em que Norberto poderia estar encarnando o espiritismo de forma diferente e pessoal. Para ele, a revelação de que a esposa tinha reservado para o futuro o desvelamento de suas íntimas tendências doutrinárias ganhava foros de verdade ainda maior do que a informação que ouviu numa palestra de que o espiritismo era a terceira revelação divina, após a segunda por Jesus e a primeira por Moisés.
Sofia não tinha tempo para pronunciar-se a respeito do procedimento cordato do marido. Admirara-se bastante de que Valdemar estava disposto a acompanhá-la ao centro espírita e concentrava todos os seus esforços em ir apontando como solução aos problemas do dia-a-dia cada pequenino ensino que ia catalogando nas lições que se extraíam do livro de Kardec, ainda que indiretamente tratado pelos expositores em suas palestras. Julgava que Norberto estava sendo um bom exemplo de receptividade do fado adverso de que fora vítima, nunca se esquecendo de mencionar ao marido que, pelo que ele mesmo lhe contava, o colega se limitava a aceitar uma propina ou outra como praxe e que nunca tentara uma falcatrua do tipo extorsivo que lhe fora sugerido pelos espíritos obsessores, que jamais cessam de assediar quem lhes dê trela, agindo em consonância com os apetites meramente carnais. Foi quando fez ver a ele que jamais exigira tratamento de rainha, nem mesmo de princesa, bastando-lhe o amor conjugal e o companheirismo, sem ameaças de processos, de julgamentos, de tribunais e de cadeias.
Etelvino e Glauco não tinham opiniões reservadas. Todos os seus pensamentos eram de imediato compartilhados, de modo que de qualquer intuição ou inspiração de um o outro logo tomava conhecimento, ambos ajustando os raciocínios de maneira o mais sólida possível concernentemente aos elementos espíritas que vivenciavam e cuja teoria haviam absorvido em conjunto, nos cursos da Escolinha de Evangelização em que se formaram socorristas. Apesar de terem personalidades muito parecidas, uma que outra vez discordavam. Era quando recorriam a um ou outro mestre amigo, porque tinham por princípio jamais expenderem um ponto de vista que o outro não sancionasse. Na situação de trabalho em que estavam atuando sobre dois pupilos, buscaram unir as forças, muito embora Etelvino fosse protetor e guia de Norberto e Glauco, de Valdemar. Houve um momento em que resolveram tomar pé da situação, de sorte que travaram o seguinte diálogo:
— Glauco, você não acha que Durvalina poderá preencher o vazio sentimental deixado por Nelma no coração de Norberto?
— Penso que sim. Mas precisamos enveredar passado adentro para avaliar que peso têm para esse relacionamento os acontecimentos pregressos que envolveram os dois.
— De acordo. No entanto, acho que teremos alguma dificuldade quanto a receber permissão para vasculhar essas memórias, porque devem estar bloqueadas pela condição de encarnados de ambos.
— Podemos rememorar as nossas próprias lembranças...
— Glauco, lembre-se de que estamos impedidos de imiscuir nossos sentimentos de dor e quejandos às atividades em curso.
— Etelvino, sei que qualquer transtorno que nos haja envolvido em relação às personagens que estão adentrando no círculo de amizades, ou algo mais, deve ser relegado ao ostracismo de um esquecimento voluntário, ou teremos de solicitar substituição aos nossos mentores. No entanto, dada a veemência com que os dois se empenham em verificar a dimensão ou estatura moral do outro, acho que devemos correr o risco. Sem amparo, nenhum dos dois haverá de ficar.
— Caríssimo, eu não quero correr nenhum risco. Em lugar de buscarmos os relacionamentos antigos, prestemos mais atenção no transcorrer dos encontros, para insuflar em nossos pupilos apenas idéias edificantes em relação aos contatos amorosos de alto impacto sentimental, aqueles que inflam os corações com o sangue de uma paixão responsável e assumida.
— Etelvino, é fácil de fazer tais considerações quando o seu protegido está nas graças da consorte. O meu, infelizmente, tem recebido impulsos mentais de diferentes áreas orgânicas e espirituais, dando-lhe um trabalho mais ou menos ingrato para equilibrar as respostas a todas as solicitações.
— De qualquer modo, Glauco, Norberto está saturado pela presença do filho, a quem não acusa de nada, apesar de não demorar muito para enveredar por um conhecimento doutrinário perigoso, qual seja, o dos relacionamentos entre pais e filhos, que tanto podem dar-lhe uma visão beatífica, caso considere que a criança seja uma bênção para substituir a esposa no afeto que lhe dedicava, quanto podem sugerir que o filho fosse um inimigo antigo admitido no seio materno mas que acabou por realizar uma vingança qualquer, contra a mãe.
— Neste caso, o ser hoje agasalhado com o nome de Júnior teria acabado por prejudicar-se a si mesmo, não só por não ter os cuidados e desvelos de sua mãe, como também por perder uma oportunidade sagrada de superar os problemas em comum. Não é verdade que ficaríamos mais à vontade se soubéssemos o histórico existencial de todas as personagens deste drama que está brotando do desastre da pobre moça?
— Neste ponto estamos de acordo. O que eu não quero, como disse, é ir atrás de informações que possam alijar-nos deste trabalho que tanto nos tem trazido imersos nos mistérios cármicos dos relacionamentos.
— Partilho de seu temor. Aceito a prudência contida em suas ponderações e lhe peço para desconsiderar minha sugestão.
— Eu sabia que iríamos concordar.
Beatriz, cujo intelecto estava ainda em desenvolvimento aos treze anos de idade, não dava muitos tratos à bola quanto aos problemas superiores dos adultos. Gostava do patrão que a tratava com muito respeito e educação, sempre com uma brincadeirinha oportuna, casmurro depois do passamento da patroa, mas jamais lhe dando nenhuma insegurança quanto à necessidade de tê-la na casa, tanto que fora ele quem insistira para que ocupasse o quarto dos fundos e que solicitara ao pai que comprasse alguns móveis novos, ao contrário da sugestão de Dona Neusa de que deveriam ir a um bricabraque. A televisão é que emudecera para os conjuntos musicais em voga, para os programas de auditório, em respeito, de início, ao luto de todos; depois, para não perturbar o doentinho; finalmente, para manter o sossego a que todos se acostumaram. Mas Norberto notou o que se passava e levou ele mesmo um aparelho para o quarto da mocinha, solicitando ao pai que providenciasse as fitas dos sinais recebidos pela antena externa para melhora da imagem tão ruim da antena interna. Quando Durvalina apareceu, Beatriz sentiu uma pontada profunda no âmago do coração e foi resguardar sua frustração de não ser totalmente útil ao patrão debaixo das cobertas. No dia seguinte, ousou ouvir escondida os comentários entre os velhos, percebendo que havia um sério problema religioso por detrás das palavras. Durante a noite quase se decidira por largar o emprego; de manhã, se lembrou do barraco em que até pouco tempo morava com os pais e sopesou os sacrifícios, sendo impulsionada a ficar pelas expressões brotadas tão espontaneamente dos lábios de Dona Neusa.
Nelma se recuperara da turbação induzida pelos plantonistas do hospital do etéreo e se acomodara à circunstância da morte antecipada em virtude da relativa felicidade em que se via, ciente e consciente de que tudo quanto fizera em sua curta jornada carnal fora com o máximo da boa vontade, satisfeita por não haver cometido nenhum pecado mortal nem contra a humanidade nem contra a religião de cujos ideais eclesiásticos partilhara. Sabia que deixara uma criancinha para a família cuidar, mas seu sentimento de mãe não se fixara definitivamente naqueles poucos instantes em que teve o filho ao seio, logo levado para os cuidados aos recém-nascidos prematuros. Em conversa com o seu anjo guardião, diálogo intuído sob a assistência de um parente que diligenciava para que as vibrações se traduzissem a contento, ficou sabendo que, futuramente, receberia o encargo de vigiar, na qualidade de protetora, os passos do filho. O que mais a impressionou foi a calma, a paz, a absoluta tranqüilidade com que tudo ao seu derredor se desenrolava, principalmente pela cortesia de passadio farto e prazenteiro, enquanto ganhava força para abandonar o leito em que ficava a maior parte do tempo com forte sonolência. Soube que o marido estava requisitando uma palavra sua e autorizou que lhe dissessem que ela estava bem, com saudade, e que o acompanhava a distância, conforme a mensagem que Norberto descartou.
Durvalina punha muito interesse nas reações do viuvinho quanto a se animar toda vez que se encontravam. Achava que as explicações puramente doutrinárias não deveriam fazer parte de suas conversações mas também não se dava a confidências nem sentimentais, nem biográficas, nem profissionais. Procurava ouvir as histórias do fiscal de rendas, sempre interessado em apresentar capítulos em que outras personagens exerciam papéis importantes, ou a esposa falecida, que não fora informada de quanto montavam as propinas que ele vinha recebendo, propinas que passara a rejeitar desde que se interessara pela doutrina espírita, ou o confessor, que condenava o recebimento de quantias cuja fórmula de apuração se dava em função do total que receberia o erário público, mas que aceitava aquelas que significassem um agradecimento pelos serviços prestados, concordando que havia taxas extorsivas a que os contribuintes deviam esquivar-se ou estariam ameaçados de falência. Durvalina não estranhava o fato de que o padre sugerisse um percentual ou dízimo para as obras da paróquia, mas se opunha veementemente quando Norberto lhe sentia o pulso moral ao oferecer ao centro espírita contribuições cuja origem não se definia com precisão. Mas, apesar desses colóquios informais, o que despertava nela um frêmito carnal era uma espécie de onda de simpatia que a juventude amadurecida de Norberto fazia emanar do conjunto de sua personalidade varonil. Quando conheceu a família do moço, colocou de lado a hipótese de juntar-se aos velhos, mas imaginou-se a cuidar da criança e do pai, num apartamento de pequeno para médio que ela possuía por herança de um de seus avós, espólio e inventário concluídos e escritura lavrada. Manteria seu consultório, daria assistência aos carentes mas passaria para outros trabalhadores a tarefa que desenvolvia junto à mocidade, aos sábados e domingos. Isso, porém, não passava de um plano ainda engendrado nos meandros dos sentimentos em estágio de expectativa, até que o moço lhe abrisse o coração, o que ela esperava para muito breve.
Norberto, finalmente, olhava para si mesmo com olhos muito desconfiados, julgando que algo não estava de acordo com as premissas de toda a sua vida. Tinha medo de errar, não se atrevia a assumir em definitivo a nova concepção teológica, não recebera nenhum influxo de informações do campo etéreo, das plagas da espiritualidade, das entidades defuntas transformadas em almas do outro mundo; punha em dúvida o sistema de recepção das mensagens descritas por Kardec; gostaria de testemunhar os raps ou batidas na madeira, os célebres estalidos que deram início às comunicações espíritas. Voltava das aulas ou das palestras, deitava-se com o abajur aceso e orava com fervor para que os fenômenos físicos se desenrolassem à sua vista, pancadas, visões, aparições, vozes, algo que tivesse uma dimensão corpórea e que não pudesse ser explicado através das leis corriqueiras da matéria. Não sentia medo. Jamais um som qualquer esporádico o punha arrepiado. Ao contrário, ficava atento para ver se se repetiam e se continham por detrás uma inteligência que pusesse um sentido na informação. Nada. Nessas horas, terminava fazendo bailar à sua frente o vulto de Durvalina que sempre ia transformando-se até assumir as feições da falecida, que ele insistia em recordar airosa e cheia de vida, mas que se embaciava pelas lágrimas no meio das flores que lhe cobriram o corpo no esquife. Nova prece, novo pedido para encontrar-se com ela durante o sono, uma leve lembrança de que o filho estava bem e sempre uma noite agitada, mal dormida, entrecortada de medonhos pesadelos, sofrimento adicional cuja origem, por mais que investigasse na manhã seguinte, não se punha à luz do dia nem se permitia intrometer na azáfama das tarefas profissionais.



18. CHUVAS DE PEDRAS

Uma certa noite, estando Norberto penetrando naquela primeira fase de sonolência, após rogar pela centésima vez que lhe fosse dado testemunhar algum fenômeno espírita de efeito físico, assustou-se com um barulho verdadeiramente estrondoso de apedrejamento sobre o seu telhado.
Primeiro, ele pensou que tudo fosse efeito psíquico e ficou tentando reconhecer alguma seqüência que lhe desse azo a interpretar alguma mensagem. No entanto, outra chuva de pedras grandes e pequenas acordou-o de vez.
“Isso não é espiritual nem espírita. Existe alguém jogando pedras em meu telhado.”
Estava colocando a roupa, quando ouviu o pai e a mãe chamando por ele:
— Norberto, corra que alguma molecada está jogando pedras no telhado.
Saiu, acendendo todas as luzes e quase deu um encontrão em Beatriz que, de camisola, chorava assustada, dizendo que as pedras vinham do fundo da casa e que o quarto dela tinha sido atingido primeiro.
Norberto não tinha armas em casa. Talvez, se tivesse, para assustar os bandidos, a empunhasse para pôr os pés porta afora. Correu para o fundo da casa e logo foi encontrando muitas pedras jogadas ao chão. Mas o apedrejamento havia cessado. Subiu no muro do quintal, mas não enxergou nada em meio da escuridão do terreno do vizinho. Aliás, reparou que não havia nenhuma movimentação na casa dos fundos.
Correu até o jardinzinho da frente mas também lá não percebeu nenhum transeunte nem com ares de culpado nem com ares de inocente: a rua estava deserta.
No entanto, o pessoal dos dois lados pôs o nariz na janela, querendo saber o que se passava.
— Alguém está jogando pedras nos telhados.
— Aqui ninguém jogou nada.
— Nem aqui, mas bem que eu ouvi o seu telhado fazer um barulhão.
— Eu vou chamar a polícia. Quem sabe eles pegam quem fez isso.
Imediatamente, Norberto acionou a delegacia mais próxima, que logo mandou uma viatura averiguar o que se passava.
Mas não encontraram ninguém, prometendo, caso se repetisse o episódio, que ficariam de plantão algumas noites diante da casa do fiscal. E foram embora.
Na manhã seguinte, Raul providenciou uma pessoa para reparar os telhados, precisando substituir mais de trinta telhas entre quebradas e trincadas. Os estragos, conforme se verificou, foram causados por tijolos em pedaços, alguns inteiros, que logo se descobriu que pertenciam a uma pilha encostada num muro na rua do lado, três casas além.
Na noite desse dia, não houve nenhum rebuliço no telhado, mas, na seguinte, tudo se repetiu igualzinho.
Prevenidos, Norberto e Raul correram até o arsenal, mas ali não acharam ninguém. Neusa havia acendido três velas aos santos de sua devoção e Beatriz, não fora pela cor da pele, dir-se-ia lívida, com os olhos tremendamente arregalados, dizendo que não queria mais dormir no quarto separado.
Novo chamado para o um, nove, zero, da emergência policial, nova correria da viatura, novas pesquisas infrutíferas. Mas a promessa estava de pé, de sorte que, na noite seguinte, lá estava a radiopatrulha estacionada na esquina, de onde tinha a visão do monte de projéteis e da casa do queixoso.
No entanto, mais três noites de plantão e nada aconteceu, nem ao menos um único suspeito foi detido para averiguação. Então, os policiais resolveram mudar de tática: iriam passar pelo local em hora incerta, mais ou menos naquela que Norberto assinalou para os dois casos anteriores.
Quando chegaram os policiais que faziam a ronda na noite seguinte, encontraram o povo da casa assustado de novo: outra chuva de pedras havia castigado ainda mais os telhados. Na manhã seguinte, o encarregado da vistoria encontrou mais de cinqüenta telhas para serem substituídas.
Nesta altura dos acontecimentos, os vizinhos já se haviam mobilizado, temerosos, por certo, de serem as próximas vítimas, muito embora nenhuma pedra lhes havia atingido o patrimônio. Quem quer que estivesse arremessando as pedras era muito bom de pontaria. Então, vieram os jornalistas, a entrevistar, a fotografar e a filmar os projéteis e as pessoas. O padre Tiago compareceu a pedido de Dona Neusa, apontando alguns demônios como autores, insistindo que era preciso realizar um exorcismo e que o filho Norberto tinha de abandonar o perigoso culto dos espíritos. Jurandir ficou de prontidão com os companheiros policiais. Claudiomiro, no centro, teve uma conversa reservada com Norberto, mostrando-lhe uns textos de Kardec em que entrevistava espíritos que executavam esse tipo de assombração. Agripino quis saber se havia algum adolescente na casa. Quando soube da existência de Beatriz, atribuiu-lhe uma mediunidade inconsciente, recomendando que se fizesse a experiência de afastá-la para ver se as pedradas prosseguiam.
Norberto pôs o pé atrás e não aceitou nem a presença de demônios, nem quis atribuir a causa à menina, que era muito meiga e obediente, sempre pronta a ajudar, jamais fazendo exigência alguma, como se fosse um membro da família. No íntimo, achava que os espíritos haviam encontrado, no fenômeno que ficou sabendo chamar-se de poltergeister, um meio de atender a seus insistentes pedidos.
Sem que Norberto soubesse, Valdemar e Sofia compareceram a uma sessão de desobsessão no centro em que se evocou o possível espírito encarregado da brincadeira de mau gosto. Houve pleno sucesso, apresentando-se um autor da proeza que, no entanto, não conseguiu justificar a razão que o levara a praticar aquela maldade. Dizia que era a pedido de alguns irmãos iluminados.
À sessão haviam comparecido Glauco e Etelvino mas nenhum dos dois logrou emitir uma mensagem esclarecedora, porque nenhum médium se aprestara para receber os guias da casa, todos interessados e preparados intelectual e emocionalmente para incorporarem espíritos infelizes. O máximo que ambos conseguiram foi implantar uma forte dúvida quanto à veracidade das informações na mente de Claudiomiro.
Naquela hora, Durvalina tentava esclarecer alguns pontos doutrinários extraídos de Kardec, para firmar na mente do amigo que nada havia de sobrenatural no fenômeno.
— Como você já deve ter lido, Kardec deu caráter científico a todas as suas investigações, partindo dos fatos para elaborar a teoria. Por isso, espanta ainda hoje que o seu método seja tão rigoroso em matéria tão sujeita a controvérsias.
Enquanto a moça ia explanando, Norberto reparava que os dizeres dela nutriam profunda admiração e respeito pelo codificador da doutrina espírita. Reparava também que os conhecimentos se dispunham de maneira lúcida e coerente, sem brecha nenhuma a uma idéia que pudesse representar uma dúvida ponderável a respeito do tema.
O moço passou a analisar a sua própria desenvoltura no campo da exposição de qualquer assunto e se diminuía a ponto de achar que estava criando uma expectativa de união com uma criatura muitíssimo mais culta e, com certeza, muitíssimo mais honesta. Lembrava-se de Nelma, maravilhosa dona de casa e pontualíssima em todos os deveres para com a família e para com a religião, e ficava de novo diminuído perante a magnitude moral da extinta.
“Pelo menos”, ousava pensar, “são extraordinárias as mulheres em quem tenho pousado os meus olhos. Preciso descobrir o que me faz atraente aos olhos delas.”
Durvalina prosseguia:
— Se os contatos com as entidades espíritas fossem perigosos, se ameaçassem a integridade física das pessoas encarnadas, Kardec teria sido o primeiro a alertar para o fato. Como você sabe, ele conhecia vários casos em que as pessoas tiveram prejuízos financeiros, mas jamais se preocupou em saber se seriam essas pessoas ressarcidas no campo material, porque o importante, sempre, é o ensinamento a se extrair desses fenômenos extraordinários. Você está seguindo o meu pensamento?
Na verdade, Norberto não atinava com todos os dizeres e com suas conseqüências no plano doutrinário, mas foi capaz de elaborar uma questão pertinente:
— Vamos supor que uma pedrada atinja o crânio de alguém e cause um problema grave e não um simples galo.
Recordou-se de que falava com a amiga médica e emendou:
— Ou seja, uma pedrada que causasse um edema, um coágulo, uma pressão sobre o cérebro...
As palavras não lhe soavam as mais convenientes, então, foi de vez ao ponto:
— Aí, a pessoa fica em coma, é operada, não resiste e morre. Como Kardec comentaria o caso?
— Vou ficar devendo essa. Não me lembro de ter visto nenhum episódio tão trágico nas obras da codificação que eu li. Mas posso adivinhar que o mestre iria dizer que houve u’a mão assassina a guiar o projétil, que a vítima, aparentemente inocente, por certo, encontraria uma razão para ser atingida de maneira letal, quer por estar necessitada de uma lição bastante drástica, quer para dar relevo ao aprendizado que assimilou, quanto a encarar os problemas como pontos a serem compreendidos em seu objetivo, como seria o caso de aprender a perdoar o agressor ou a não efetuar reclamações quanto aos procedimentos cármicos da justiça do Pai.
— E a família da vítima?
— Kardec levantaria as mesmas hipóteses quanto às necessidades dos ensinamentos, afirmando que nada que acontece no campo moral é produto do acaso. É diferente quanto ao mundo material, porque ele delimita bem os acontecimentos sobre os quais as pessoas não têm domínio ou controle.
O que Norberto menos desejava era contrapor objeções, de sorte que algumas idéias contrárias as guardou para si, esperando um dia saber dar respostas a elas, segundo um ponto de vista haurido em Kardec, quando não em algum outro autor de qualidade.
Mas Durvalina estava interessada em demonstrar que conhecia o assunto e buscava em O Livro dos Espíritos, com certo frenesi, o trecho cujo conteúdo havia citado.
— Olhe a questão de número 859. Eu vou ler a pergunta de Kardec: Se a morte não tem como ser evitada quando é chegada a hora, sucede o mesmo com todos os acidentes que nos acontecem no curso da vida? Eis o que os espíritos responderam: “Eles constituem, muitas vezes, pequeninas coisas para que nós possamos preveni-los e, às vezes, fazer com que vocês os evitem orientando seu pensamento, porque nós não gostamos do sofrimento material. Mas isso é pouco importante para a vida que vocês escolheram. A fatalidade, realmente, consiste tão-só na hora em que vocês devem aparecer e desaparecer neste mundo.” Kardec insistiu: Existem fatos que têm que forçosamente acontecer e que a vontade dos Espíritos não consegue conjurar? Os espíritos esclareceram: “Sim, mas que você, como Espírito, viu e pressentiu quando fez sua escolha. Todavia, não pense que tudo o que acontece esteja escrito, como dizem; um evento é, o mais das vezes, a conseqüência de uma coisa que você fez por um ato de sua livre vontade, de tal sorte que, se você não houvesse feito aquela coisa, o evento não se daria. Se você queima o dedo, isso não é nada; é o resultado de sua imprudência e conseqüência da matéria; tão-somente as grandes dores, os eventos importantes e que podem influir no moral são previstos por Deus, porque são úteis à sua purificação e à sua instrução.” Chamo a sua atenção para esta frase: não pense que tudo o que acontece esteja escrito. Você pode perceber que acontecem fatos inesperados, que os próprios guias e protetores não saberiam prever.
Naquele momento, houve um alvoroço do lado de fora. Havia gente correndo, gritos, confusão generalizada.
Norberto logo foi ver o que sucedia. Foi Dona Neusa quem informou :
— Pegaram os caras que estavam jogando as pedras.
Na rua, Jurandir e mais dois companheiros tinham três meliantes na unha. Juntava cada vez mais povo e choviam ameaças contra os infelizes.
Assim que foram colocados no banco de trás da viatura, Norberto pôde aproximar-se, reconhecendo logo seu relógio no pulso de um deles.
Mas não deu tempo para nada.
De repente, começaram a voar pedras para todo lado. Janelas estilhaçavam, os telhados retumbavam, as pessoas gritavam, correndo para suas casas, para defender-se dos arremessos. Norberto também correu, enquanto a radiopatrulha acelerava, dando voltas nas quadras adjacentes. Estranhamente, pipocavam flashs de algum fotógrafo de ocasião.
Não demorou muito e tudo voltou à calma, mas fora a maior de todas as precipitações. Três pessoas ficaram levemente feridas, com o couro cabeludo a verter sangue. Durvalina atendia aos ferimentos, dispensando a providência dos pontos. O que havia de pior eram os assustados, mas, para esses, Dona Neusa veio com água com açúcar, ela mesma tendo tomado um bom copo. Beatriz é que não se achou, cabendo a Raul procurá-la. Eis que ele a encontrou fechada no quarto dos fundos, de onde saiu toda trêmula e chorosa. Quando Raul lhe disse para ir apresentar-se à médica, recusou-se, fez-se corajosa e foi ajudar a patroa a preparar o calmante caseiro.
O Júnior, bravamente, passou toda a cena dormindo, totalmente despreocupado com os acontecimentos.
Mas Jurandir voltou com a viatura e os prisioneiros, parando na frente da casa, dizendo que não viram quem atirava as pedras, perplexo com o que deveria fazer com os três, já que culpados dos arremessos eles não eram, apesar de terem sido surpreendidos pelos policiais com um carrinho de mão cheio de projéteis.
Norberto foi chamado para identificar os detidos:
— Veja se o senhor reconhece algum deles como os que estão atormentando o povo do bairro.
O fiscal estava alerta para o relógio e se aproximou da janela fechada, espiando pelo vidro.
— Não, soldado Jurandir, eu não reconheço nenhum deles. Mas aquele é o meu relógio. Posso falar com o suspeito?
— Positivo.
Aberta a porta, Norberto pôde reparar em que estavam algemados. O rapaz com o relógio pareceu-lhe ser o que lhe havia assaltado. Então Norberto se sentiu inspirado, com dó da juventude do outro, e saiu-se com esta:
— Ô meu sobrinho, você está reconhecendo seu tio? Você não vai esquentar agora, vai?
O rapaz de uns dezessete anos de idade logo sentiu que estava nas mãos da polícia em mais esse caso, mas não respondeu nada.
Norberto baixou o tom de voz e falou de modo que só os de dentro do carro ouvissem:
— O relógio, você pode ficar com ele. Mas eu quero de volta a aliança. Garanta o meu que eu garanto o seu.
Sem esperar confirmação, Norberto foi logo esclarecendo para o soldado:
— Eu não reconheço nenhum atirador de pedras e o relógio não é o meu. Só não sei por que eles estavam se preparando pra jogar pedras na gente. Mas dessa vez não foram eles. Veja se esclarece isso e aproveite pra levar a viatura embora que o povo está voltando.
De fato, estava a multidão começando a cercar o carro, de novo julgando que os três tinham algo que ver com a confusão. Mas a viatura foi embora, ficando apenas o Jurandir para acalmar os mais exaltados e para verificar quem é que estava ainda tirando retratos do local e das pessoas.
O camarada identificou-se como repórter fotográfico de conhecido jornal sensacionalista, pediu permissão para fotografar Jurandir ao lado de Norberto e sumiu no meio dos curiosos que haviam formado um semicírculo em torno das personagens principais.



19. NO GABINETE DE AGRIPINO

Quando Agripino se inteirou dos acontecimentos da noite anterior, chamou Norberto e Valdemar em reunião a portas fechadas e referiu um plano que estava arquitetando desde algum tempo:
— Precisamos realizar uma sessão para evocar o espírito que está promovendo essas algazarras.
Valdemar revelou o que nem Norberto sabia:
— Já foi feito no centro do Claudiomiro.
Logo o colega interveio:
— Quando? Por que vocês não me avisaram?
— Ontem mesmo. Compareceu um irmão sofredor que assumiu a culpa de tudo, ou melhor, disse que foi solicitado por alguns espíritos iluminados, na expressão dele mesmo. O diabo é que prometeu que ia parar com tudo e ontem mesmo voltou a atirar pedras em todo o mundo.
Agripino, tendo ouvido com muita atenção, desejou pronunciar-se a respeito de maneira solene, impregnando cada palavra com o peso de sua autoridade de espírita de quatro costados:
— Eu acho que vocês tiveram muito boa intenção querendo ajudar a família do Norberto, mas o seu procedimento não levou em conta a possibilidade de estarem sendo vítimas de uma saraivada de mentiras, de petas. Houve alguma mensagem que encaminhasse o pronunciamento do irmão obsessor?
Valdemar lembrou-se de haver conversado a respeito com Claudiomiro e com Sofia, asseverando, com certeza:
— Nós também achamos que faltou quem garantisse que o elemento que se manifestou estivesse falando a verdade. O diretor dos trabalhos, o nosso amigo e professor doutrinário Claudiomiro... O senhor o conhece?
Agripino fez com a cabeça que sim.
— Pois bem, ele nos disse que estava desconfiando de que o espírito não tinha falado a verdade.
Norberto voltou à carga:
— Por que vocês não me avisaram?
Valdemar tentou contemporizar o mais possível:
— Nós achamos melhor, isto é, a turma da mesa de desobsessão achou que era preferível que você não estivesse presente, porque poderia insuflar nos médiuns um clima de profunda comoção, já que ninguém sabia qual seria o resultado. Se fosse algo relacionado com a Nelma, eu acho que você ficaria magoado. Não é verdade?
— Quer dizer que até Durvalina sabia da sessão e não me disse nada?
— Ela também não quis que você se perturbasse, tanto que se dispôs a ir conversar com você, pra mantê-lo entretido com os problemas dos apedrejamentos pra nos ajudar a distância. Pelo que você me disse, ela foi de extrema utilidade no tratamento dos feridos. Parece que ela adivinhou o que ia acontecer.
Agripino percebeu que os amigos precisavam concatenar as idéias e os sentimentos, mas julgou que as explicações estavam dadas e que o principal fora dito e interferiu na conversa:
— Em suma: tudo leva a crer que nenhuma providência deu certo, muito embora todos cercassem os trabalhos dos maiores cuidados para ninguém sair prejudicado, tendo em vista as possíveis informações que se poderiam colher dos espíritos. Se Norberto tiver entendido que houve boa intenção...
Norberto sussurrou audivelmente:
— De bem intencionados o inferno está cheio!
Agripino sorriu, mantendo as mãos dos subalternos nas suas, cada uma numa, e avaliou:
— Pelo menos temos a certeza de que são os espíritos que estão tomando a iniciativa das pedradas. Estão de acordo?
Antes que Valdemar se manifestasse, Norberto respondeu:
— Eu não sei o que estavam fazendo aqueles malandros carregando tantas pedras. Esse é um ponto a esclarecer. Outro ponto foi o fato de, pela primeira vez, as pedras atingirem outra coisa que não o meu telhado, inclusive várias pessoas, os carros estacionados, as casas vizinhas e até a viatura da polícia.
Agripino aventou uma hipótese:
— Eu acho que essa foi a última vez que isso aconteceu. Seja quem for, quis dar uma demonstração de força ou de poder magnético ou fluídico, os nomes não importam, porque não gostou da criancice de quem estava querendo passá-lo pra trás, já que iria ficar fácil saber que os rapazes que foram presos é que estariam atirando as pedras.
Norberto revelou:
— Um deles estava com o relógio que me roubaram. Eu joguei o verde, mas não colhi maduro, porque ele não caiu na minha, já que se manteve em silêncio. Se eu ouvisse aquela voz, juro que reconheceria. Em todo caso, pedi que me entregasse a aliança, podendo ficar com o relógio. Vamos ver no que vai dar.
Valdemar ficou com muita vontade de rir da ingenuidade do amigo, mas calou-se já que estava em débito de lealdade.
Nisso soou o telefone. Agripino atendeu:
— Pronto!... Sim... Sim... Leia a manchete... Tudo bem! Pode trazer.
Aí explicou aos dois:
— Dona Esmeralda é um primor. Está atenta a tudo. Acaba de sair o Diário de Notícias Populares, com o título: As pedradas do demônio. Eis que chega o jornal.
De fato, Dona Esmeralda entregou um exemplar a Agripino, discretamente, e saiu, fechando delicadamente a porta.
— Vocês querem que eu leia ou preferem que eu conte o meu plano?
Ambos estavam muito curiosos para conhecer a reportagem, mas engoliram a expectativa. Foi Valdemar quem expôs, após consultar o colega com a vista:
— Doutor Agripino, vamos ouvir o seu plano. O jornal não pode contar nada que a gente não esteja sabendo.
Agripino sorriu, demonstrando ter percebido a intenção da dupla e, de um jato, contou em que consistia o famoso projeto:
— Eu tenho de insistir no meu ponto capital: para a realização desses fenômenos de efeitos físicos, a esfera espiritual precisa do concurso mediúnico de um encarnado. Pelas notícias históricas que li em diversos autores e pela minha experiência pessoal, para esse tipo de acontecimento espírita, os médiuns mais efetivos são os adolescentes. Então, eu quero propor a vocês que a gente realize na casa do nosso Norberto uma sessão endereçada ao espírito que está causando esses estragos, com a presença da mocinha que lá habita, para o que eu conto com três médiuns experientes do meu centro, que já se dispuseram a colaborar. Vocês podem convidar o Claudiomiro e mais um ou dois médiuns do seu centro, mas eu não recomendo muita gente porque, nesses casos, alguém que se manifeste muito descrente tende a emitir uma forte irradiação de fluidos negativos, de que pode servir-se o espírito evocado para não atender convenientemente à convocação, ainda mais porque os espíritos protetores, guardiães e guias, aqueles que Kardec apelidou de bons espíritos, podem muito bem deixar o ambiente nas mãos dos perversos, dos infelizes, porque não conseguiriam atuar a contento. Caso Norberto aceite a sugestão, podemos comparecer à sua residência hoje ou amanhã.
Foi Valdemar quem fez as ponderações:
— Pra convidar o nosso pessoal, vamos precisar de, pelo menos, um dia, ou melhor, uma noite. Aliás, hoje teremos estudo de O Livro dos Espíritos, de modo que, se Norberto estiver de acordo, fica pra amanhã.
Norberto prontificou-se:
— Vamos malhar no ferro enquanto está quente. Se é verdade que o obsessor atirou pedras pela última vez, quem me garante que não vai começar a atear fogo na casa?
Coube a Agripino mostrar-se admirado:
— Esse era um ponto que eu estava com medo de declarar, mas a verdade é que, se não contivermos o autor das proezas, o próximo passo costuma ser esse mesmo, pra chamar mais fortemente a atenção dos encarnados. Talvez amanhã seja um pouco tarde; mas, como nunca aconteceu em dias seguidos, talvez ele se contenha, principalmente se orarmos com muita ternura pelo infeliz, rogando-lhe que atenda às sugestões dos espíritos de luz que, seguramente, estão tentando esclarecê-lo quanto a não assustar pessoas inocentes, que nem sequer estão sabendo que males causaram a ele ou às pessoas ligadas a ele. Vamos ao noticiário.
Imediatamente, Valdemar e Norberto se postaram de pé atrás da cadeira de Agripino a espiar o jornal que se abria sobre a mesa. Lá estava a manchete bem destacada: AS PEDRADAS DO DEMÔNIO. Havia uma foto de várias pedras em pleno ar e uma chamada para a reportagem à página cinco. Aberto o periódico no local indicado, repetia-se a abertura, com mais três fotografias. Numa, a viatura com os meliantes trazendo os rostos escondidos. Noutra, o carrinho de mão cheio de pedras e de tijolos em pedaços. A terceira, Norberto e Jurandir, sob a qual se lia: Norberto, o dono da casa, e Jurandir, que prendeu os delinqüentes.
Percorreram rapidamente o texto e se surpreenderam quando, em certa altura, leram: Os policiais não conseguiram provar que os jovens menores de idade são os responsáveis pelos apedrejamentos. Por isso, tiveram de soltar os três, liberando cada um deles aos seus pais. Os três têm passagem pela FEBEM, e estão soltos por ordem do juiz.
Norberto comentou:
— É estranho que a reportagem tenha corrido atrás dos bandidos. O próprio texto mostra claramente que os demônios é que são os responsáveis por tudo aquilo. Tem alguma coisa a respeito dos feridos?
Agripino ia sublinhando o texto com o indicador, de sorte que os três acompanhavam o gesto numa leitura silenciosa. Mais adiante, leram: Algumas pessoas foram atendidas no local por uma pessoa da família do Senhor Norberto Dias, escorrendo sangue da cabeça.
Dessa vez foi Agripino quem observou:
— Acho que essa pessoa é a Doutora Durvalina que estava conversando com você, conforme disse Valdemar. Pois o que você queria, meu caro Senhor Norberto Dias, está citado.
Valdemar apressou o dedo:
— Vamos adiante que eu quero ler a respeito dos demônios.
Norberto juntou:
— Eu também.
Então as linhas foram passando dedicadas à descrição das aflições das pessoas e de suas correrias. Narrou-se que houve ameaça de linchamento. Referiu-se ao fato de que a viatura, amassada por alguns projéteis, percorreu inutilmente as vizinhanças. Lá se achava também a convicção religiosa do dono da casa e do policial: espíritas de mesa branca. E, no final, uma síntese, no mínimo, curiosa: O fenômeno que presenciamos é explicado pela ciência moderna da parapsicologia e se trata de uma manifestação de energia acionada pela vontade inconsciente das pessoas que sentem medo dos seres que criaram em sua imaginação.
Agripino olhou alternativamente para um e depois para o outro que ainda estavam atrás dele, fez um gesto de desânimo e comentou:
— Eis que se dão o poder e os meios de comunicação a um sujeito que não entende nada desses fenômenos paranormais, vamos dizer assim, e os verdadeiros especialistas ficam restritos a umas explicações truncadas na televisão, sempre contestados por evangélicos ou católicos da vanguarda crítica dos templos e das igrejas. Este que escreveu a reportagem está bem prevenido quanto a não ser espírita ou espiritual a origem do fenômeno. Posso até afirmar, arriscando um pouco, que se trata de um sujeito materialista, desejoso de se projetar dentro da redação do jornal, completamente esquecido de averiguar com mais profundidade a curiosa precipitação das pedras.
Foi Valdemar quem levantou uma hipótese:
— Aqueles vagabundos não estavam lá por acaso. Certo? Que interesse podiam ter em jogar pedras nos telhados, sabendo que, ao que parece, pelo menos um, é assaltante de mão armada? Eu acho que não estavam lá de graça. Querem saber aonde vou chegar? Alguém estava pagando pra eles fazerem aquilo. Só que não deu certo, porque Jurandir chegou antes que jogassem as pedras. Eu pergunto se não pode ser a reportagem que providenciou tudo pra surpreender os meliantes atirando pedras e em fuga, fotos a distância, impossíveis de serem identificados os sujeitos. Aí, os espíritos resolveram fazer uma demonstração enérgica (pra usar a tal da energia inconsciente do maroto), afirmando que a procedência das pedradas era imaterial. Ou eu estou fazendo má idéia e difamando alguém?
Agripino conhecia a sagacidade do subalterno mas se admirou de que tivesse demonstrado um zelo bastante grande quanto a evitar levantar falso testemunho. Mas concordou:
— Sabe que você bem pode ter razão?! No entanto, para que não se incorra numa falha de caráter nem se atribua um fato a quem não teve nada com ele, basta pedir ao Jurandir, que vocês têm à mão, para investigar a possibilidade dessa tese. Havia alguma reportagem da televisão no local?
Norberto foi taxativo:
— Não, o que vem confirmar que tudo estava sendo armado pra que só um jornal publicasse a notícia.
Agripino encerrou a reunião:
— Vamos tomar as nossas providências no âmbito do espiritismo de Kardec, aquele que o tal chamou de mesa branca. Não há certa maldade nisso? Pois bem, o trabalho exige que esqueçamos esses problemas transcendentais. Não se esqueçam de me avisar...
Norberto estava até emocionado:
— Muito obrigado por tudo, doutor! Deus lhe pague! Hoje não vai ser, mas amanhã eu arrumo tudo em casa pra sessão. Deixe comigo. Vou tentar convencer Beatriz, a mocinha, pra que participe. Vamos ver se tudo vai dar certo, porque as minhas economias já não dão pra pagar as telhas quebradas. Se não fosse meu pai...
Haveria mais que dizer, mas o chefe era o chefe e se ele estava empurrando os rapazes porta afora, era que estava na hora de irem atrás do que fazer na repartição.



20. UMA REUNIÃO FELIZ

À noite, depois de um dia árduo de trabalho para todos, juntaram-se os participantes das habituais sessões de estudo de O Livro dos Espíritos, no Amor Fraterno de Jesus, onde, já há algum tempo, Norberto vinha sendo alvo dos olhares curiosos do povo da casa espírita, como se carregasse consigo o estigma dos fenômenos físicos.
Mas Valdemar havia trazido uma série de idéias para propor aos outros membros do grupo e não perdeu tempo, cercando, do lado de fora, o soldado Jurandir, travando com ele uma animada conversa que terminou assim:
— Você vai investigar o porquê de estarem lá os malandros e o porquê de serem tão depressa liberados na delegacia.
— Positivo, Seu Valdemar, mas eu acho que não tenho como ligar os meliantes ao repórter.
— Isso deixe com a gente. Se for preciso, eu uso os meios de convencimento da minha turma, que são os mais brandos que conheço mas também os mais efetivos.
Nisso Sofia chegou-se à porta:
— A reunião já vai começar. Vamos entrando, por favor, Jurandir, e você aí, tagarela duma figa!
Valdemar sorriu, aguardou que o soldado penetrasse porta adentro e seguiu-o de mãos dadas com a esposa.
Na sala, Norberto, Durvalina e Claudiomiro trocavam impressões a respeito dos acontecimentos na casa, instando o diretor do centro para que o jovem senhor aceitasse sua explicação a respeito da sessão mediúnica da noite anterior:
— Fizemos o possível pra trazer o verdadeiro causador dos seus transtornos. Mas eu acho que algum guia da casa estava me soprando no ouvido pra não aceitar as informações como verdadeiras. A coitada da Dona Clotilde, que apanhou a comunicação, me procurou hoje à tarde pra me pedir desculpas pelas falsidades do infeliz. Mas eu disse a ela que a falha tinha sido nossa, porque não fizemos as perguntas certas, deixando que o espírito se manifestasse à vontade. Depois da reunião, a gente volta a conversar. Certo?
Norberto não havia pedido explicação alguma, mas Durvalina havia insistido no colóquio, para que o amigo soubesse que nem todos os trabalhos espíritas trazem a marca da perfeição daqueles que se encontram relatados nas obras de Kardec.
Claudiomiro alteou a voz e deu início à sessão de estudos, através de uma prece em que rogava a proteção do Pai, de Jesus, dos protetores espirituais do centro e dos guias de cada um dos presentes, recomendando que os espíritos menos perfeitos se mantivessem atentos aos pontos doutrinários que iriam ser lidos e debatidos, terminando por recitar um pai-nosso.
— Vamos estudar hoje, no capítulo sexto, Vida espírita, o tópico Escolha das provações, que me parece bastante oportuno diante dos acontecimentos na casa do nosso irmão Norberto. Seguindo a roda, eu peço à Doutora Durvalina que leia o item 258.
Todos abriram seus volumes e se dispuseram a ouvir a leitura sempre espontânea e clara da médica.
Ela não se fez de rogada:
— 258. Estando na erraticidade, antes de assumir uma nova existência corpórea, o Espírito possui a consciência e a previsão das coisas que lhe acontecerão durante a vida? “Ele mesmo escolhe o tipo de provações que deseja suportar; eis em que consiste seu livre-arbítrio.”
Acostumada ao sistema do grupo, Durvalina realizou algumas ponderações relativas ao que acabara de ler:
— Kardec faz aqui uma pergunta interessante, no sentido de nos esclarecer o ponto de vista dos espíritos que lhe davam assessoramento a respeito de um assunto que nos causa muitas dúvidas, qual seja, se fomos nós mesmos que escolhemos o nosso destino antes de nos encarnarmos. Talvez muita gente pense que aqui tudo acontece sem planejamento, mas a resposta que ele recebeu não deixa dúvida quanto à consciência que temos da espécie de acontecimentos que nos aguardarão em nosso dia-a-dia. O que ressalta de modo muito significativo é que a nossa vontade prevalece, porque o nosso livre-arbítrio é respeitado. Agora que estamos encarnados, nós ficamos na dúvida de que os males que nos cercam fomos nós mesmos que escolhemos. Eu acho que nem os males nem os bens, mas me ficou bastante claro que eles são a conseqüência de nosso procedimento: se praticarmos o bem, seremos felizes; caso contrário, temos de enfrentar muita coisa desagradável, quando não nesta encarnação, na erraticidade ou em outra, para que aprendamos a agir corretamente.
Enquanto a moça explanava, Norberto pensava se a morte da esposa não estaria classificada como uma provação para ele, para o filho e para todos os familiares. Ia tirar uma conclusão sobre a coletividade do carma, quando Durvalina continuou a leitura do item que continha outra questão de Kardec:
— Logo, não é de modo algum Deus quem lhe impõe as tribulações da vida como castigo? “Nada sucede sem a permissão de Deus, pois foi ele quem estabeleceu todas as leis que regem o universo. Então vocês vão perguntar por que ele fez tal lei em lugar de tal outra. Ao propiciar ao Espírito a liberdade da escolha, ele lhe deixa toda a responsabilidade de seus atos e de suas conseqüências: nada entrava seu futuro; a rota do bem se abre a ele como a do mal. Mas, caso ele sucumba, resta-lhe uma consolação, ou seja, que nem tudo findou para ele, pois Deus, em sua bondade, o deixa livre para recomeçar o que fez de errado. É preciso, de resto, distinguir o que é obra da vontade de Deus da que é da vontade do homem. Caso um perigo os ameace, não foram vocês que criaram esse perigo; foi Deus; mas vocês tiveram a vontade de se exporem a ele, porque perceberam nisso um meio de adiantamento; e Deus o permitiu.”
Dessa vez, Claudiomiro fez questão de passar a palavra a Sofia, pensando que o tema era muito fácil para comentar:
— Vamos pedir à nossa irmãzinha Sofia que fale o que achou de mais importante nas observações dos espíritos.
Desenvolta, Sofia fez as seguintes observações:
— Eu nunca pensei que Deus impusesse as penas aos encarnados, devido à minha formação católica. Quando as coisas iam mal, atribuía ao demônio, como eu li hoje no jornal. Mas, por trás dos acontecimentos, existe a mão do Pai, não como um carrasco que executa os criminosos, mas como um ser misericordioso que sabe exatamente o que cada um de nós precisa pra vencer as barreiras de nosso próprio egoísmo. Nesse caso, eu não sei bem como fica a situação daqueles que não têm discernimento pra escolher as suas próprias provações, ou seja, as que podem oferecer as lições de que necessita pra melhorar. Acho que, pra isso, existem os protetores, que mantêm a gente atenta pros avisos da consciência, impedindo que a gente caia na tentação de nossas próprias dificuldades de caráter. Quem não quer ouvir aquelas recomendações enfrenta os problemas que surgem mais terríveis e fica enredado na própria teia que urdiu. Essa figura eu tenho ouvido desde criança da boca do Padre Frederico, portanto, não estranhem. Mas eu sei por que estou dizendo isto.
Valdemar, ao seu lado, achou um jeito de dar-lhe com a lateral do pé, avisando-a para parar. Sofia calou-se imediatamente.
Mas Claudiomiro não estava totalmente satisfeito e abriu o debate:
— Quem quiser acrescentar alguma coisa, estamos ouvindo.
Vários levantaram ordeiramente a mão, mas o próprio coordenador da reunião foi quem complementou:
— Eu gostaria de ressaltar que o espírito que respondeu a Kardec enfatizou a responsabilidade de cada ser humano pelos seus próprios atos. Fale você Jurandir:
O soldado não tinha muito a acrescentar mas chamou a atenção para um fato específico:
— Não sei se é hora de lembrar, mas a verdade é que existe muita maldade no mundo, de maneiras que as pessoas fazem mal às outras, quer dizer, o livre-arbítrio de umas se choca contra o livre-arbítrio das outras e daí saem as guerras entre as pessoas e as nações. Se o mais fraco não abaixa a cabeça, leva pedrada.
O grupo já não se conteve e se ouviram várias observações simultâneas a gerar algumas conversas paralelas. Criou-se um pequeno tumulto, cada qual desejoso de expor seu ponto de vista.
Norberto, do seu lado, dava trela à idéia de que os problemas envolvem também grupos menores e maiores: famílias, nações, continentes, planetas e assim por diante. E englobava várias existências em que as pessoas voltavam com papéis trocados, de modo que quem apedrejava hoje recebia pedradas amanhã. Quando ia começar a suspeitar de que as crianças mutiladas desta geração talvez fossem os oficiais e soldados nazistas que massacraram os judeus há cinqüenta e tantos anos, e ia atribuir a responsabilidade das mutilações às vítimas dos expurgos que não entenderam o ciclo cármico, porque deveriam ter débitos de outras vidas, foi chamado a opinar por Claudiomiro.
O moço ficou um pouco atrapalhado por não ter prestado atenção a nenhum depoimento depois do soldado. Mas não escondeu o fato:
— Perdão, senhor coordenador, mas eu fiquei com o Jurandir e as suas pedradas nos mais fracos.
Claudiomiro sorriu e esclareceu:
— Eu chamei você porque era o único que não participava da balbúrdia geral. Vi que estava entretido com seus pensamentos, talvez conversando com seus guias...
Valdemar não se conteve:
— A balbúrdia dele acontecia na esfera espiritual...
A turma riu, desafogando-se da censura velada do diretor da sessão, e este prosseguiu:
— Pois bem, você acha que existe conflito entre as pessoas ou entre seus livres-arbítrios?
— Eu penso que a humanidade caminha, todos juntos, pela estrada da evolução, encarnados e desencarnados. E se a gente considerar que existem seres muito mais adiantados, ocupando lugares de destaque em círculos bem mais elevados, é como as pessoas que se situam em pontos estratégicos da sociedade, governando, administrando as leis e a justiça etc. Enquanto a gente ficar pensando só em se defender dos bandidos, eles continuarão apedrejando os nossos telhados. É preciso, como eu li em Kardec e ouvi nesta sala muitas vezes, compreender as causas para saber controlar os efeitos.
Nesse ponto, percebeu que os olhares se voltavam meigos e pacíficos em sua direção e se enrubesceu, porque não desconfiava que tinha tal poder através de sua maneira de se expressar. Falara como se fosse consigo mesmo, ou melhor, como se reproduzisse algumas idéias que se formavam por influência estranha, reconhecendo, afinal, que não dissera nada tão original que provocasse reação tão lisonjeira.
Durvalina é que não se conteve:
— Vejo que o nosso bom amigo fez a lição de casa. Parabéns. Então, eu cedo a vez da leitura a ele, pra que pergunte com Kardec e responda com os espíritos.
Claudiomiro fez sinal que aprovava a recomendação e Norberto pôs-se a ler, após um longo suspiro, como a procurar na atmosfera algum bálsamo salutar que lhe arejasse a mente para compreender as idéias e não apenas repeti-las como um papagaio:
— 259. Se o Espírito tem a escolha do tipo de provação que tem de suportar, segue-se que todas as tribulações que sofremos na vida foram previstas e escolhidas por nós? “Todas não é a palavra, pois não se pode dizer que vocês escolheram e previram tudo o que lhes sucede no mundo, até nas menores coisas; vocês escolheram o tipo de provação; os pormenores constituem a conseqüência da situação e, o mais das vezes, de suas próprias ações. Caso o Espírito tenha desejado nascer entre malfeitores, por exemplo, ele sabia a quais arrastamentos se expunha, mas não cada um dos atos que realizaria; tais atos constituem o efeito de sua vontade ou de seu livre-arbítrio. O Espírito sabe que, ao escolher tal rota, terá tal tipo de luta para suportar; ele conhece, portanto, a natureza das vicissitudes que vai encontrar, mas não sabe qual evento terá preferência. As ocorrências menores nascem das circunstâncias e da força das coisas. Tão-somente os grandes eventos, os que influem sobre o destino, se acham previstos. Caso você pegue uma rota cheia de sulcos, você sabe que tem de tomar muitas precauções, porque você tem chance de cair, mas você não sabe em que lugar vai cair, e é possível que não caia, se for assaz prudente. Caso, ao passar na rua, lhe caia uma telha na cabeça, não creia que estava escrito, como se diz vulgarmente.”
Norberto parecia não acreditar e repetiu de modo mecânico:
— Caso, ao passar na rua, lhe caia uma telha na cabeça, não creia que estava escrito, como se diz vulgarmente.
Diante da perplexidade do leitor, o grupo fez um silêncio cheio de expectativa. Queria saber qual a reação do apedrejado. Mas Norberto surpreendeu:
— Eu acho que esta telha não caiu na minha cabeça por acaso. Outro dia, estudamos em casa (ele evitou citar a companheira mas todos estavam cientes de quem estava com ele) o item de número oitocentos e cinqüenta e nove, que reproduz, quase igual, este que acabamos de ler. Quando a gente chegar lá, vocês vão ver que o acaso atinge os seres humanos apenas materialmente, porque os problemas morais são cármicos, ou seja, a conseqüência de nossas imperfeições. Eu aceito que, no plano espiritual, todos nós temos como escolher este ou aquele destino, até mesmo o fato de viver entre pessoas marginais, entre malfeitores, como está no texto. Mas eu também tenho pra comigo que aquelas pessoas que não têm discernimento pra saber nem o que se passa com elas mesmas vão receber reencarnações compulsórias. Aqui meu entendimento fica na superfície dessas águas agitadas que quase fizeram submergir o barco em que navegamos. Compenetro-me de que fiz o que pude pra corresponder às imagens ou figuras dos amigos que me antecederam, mas acho que não ficou muito bom. Queiram perdoar-me.
De novo, Valdemar não conseguiu sofrear seus ímpetos:
— Modéstia forçada, meu irmãozinho, não vale. Do jeito que você fez até parece que desejou chamar a nossa atenção pro secundário, pro acessório, pros enfeites, desviando-nos de suas considerações doutrinárias.
Sofia tentou aquietar o marido, provocando-o:
— Quer dizer que é você quem vai demonstrar que o que Norberto disse não está certo?
— Quer dizer que eu concordo integralmente com ele.
Mas Claudiomiro precisava reaver as rédeas da reunião e foi incisivo:
— Todos nós estamos alegres e felizes com a amizade que frutifica no seio de nossa comunidade. Eu acho que, até na espiritualidade, os seres que nos acompanham os trabalhos estão satisfeitos com os resultados. Por isso, eu quero saber se todos nós vamos colocar em prática o que aprendemos hoje. Por exemplo, como é que Norberto deverá agir em relação ao jovem que lhe surrupiou, sob o poder duma arma de fogo, a aliança e o relógio, agora que ele tem uma pista segura, já que o rapaz acabou sendo fichado na delegacia?
O dirigente notou que alguns desejavam falar, mas prosseguiu, fazendo um gesto para que esperassem:
— Também existem os prejuízos das telhas tantas vezes arrebentadas. E haveria outros dentro de casa, se o telhado não fosse consertado a tempo de evitar as goteiras. Configurado que se trata de um fenômeno de efeito físico, sabemos que o autor mora no plano espiritual. Como devemos agir pra ajudar Norberto a perdoar o ofensor, como Jesus deixou expresso na oração dominical?
Norberto nem esperou que a palavra lhe fosse passada e logo desabafou:
— Tudo isso não é nada pra mim. Eu estou aprendendo a não me afligir com os prejuízos materiais. O que me deixa muito magoado é a perda de minha esposa, em plena juventude. Se, pelo menos, eu pudesse compreender os desígnios de Deus...
Norberto buscou de novo um ar que lhe confortasse os pulmões e, naqueles instantes de trégua, notou que os companheiros pendiam agora de suas palavras candentes, emocionadas, muitos fazendo menção de apartear. Mas ele continuou:
— Aí eu me lembro dos crimes que estão acontecendo em várias partes do mundo, crianças perdendo os pais, os irmãos, sendo mutiladas, homens sendo executados, mulheres violentadas, famílias dizimadas ou dispersadas, populações inteiras expulsas de suas cidades e regiões, e fico pensando que a minha dor é bem pequena, quando sou agasalhado com tanto amor, com tanto carinho pelos velhos e novos amigos. Quero desfazer o enorme egoísmo que sinto possuir mas reconheço que vou levar várias existências para isso. Não posso esquecer-me, porém, de que os meus irmãos da espiritualidade estão atentos e correspondendo a um pedido que tenho feito tantas vezes, ou seja, de que alguma prova material da existência dos espíritos deveria ser demonstrada para mim, como Kardec se deixou convencer com a dança das mesas e outros fenômenos físicos. Se vocês me permitirem, já que avançamos no horário, vou aproveitar este meu embalo pra realizar a prece de encerramento, porque eu, mais que ninguém, tenho o que agradecer e o que rogar, louvando o Senhor.
Claudiomiro acenou condescendendo e Norberto expressou vários sentimentos de fé, de piedade e de amor à vida e aos seres que o envolviam por tanta vibração carinhosa e solidária. Quando terminou, não havia na sala quem não estivesse enxugando suas lágrimas. E também não houve quem não lhe viesse dar um abraço, cada qual exprimindo uma faceta diferente da emoção geral que dominou o ambiente.
No espaço transcendente, os inúmeros espíritos, atraídos por tão poderosas ondas de fraternidade e amor brotadas de um raciocinar efetivo sobre a lógica doutrinária dos textos espíritas, também se congratulavam e festejavam a vitória da misericórdia divina naquele simples episódio em que uma dúzia de corações se confrangeram perante o Criador.



21. UMA REUNIÃO NÃO TÃO FELIZ

Naquela noite de estudos no Amor Fraterno de Jesus, não houve apedrejamento de telhado, nem na ausência nem na presença de Norberto.
O dia seguinte surpreendeu o moço a pensar seriamente a respeito dos temas tratados à noite, especialmente das idéias que expôs, as quais lhe pareciam, à luz do dia, muito mais soturnas do que no êxtase das manifestações embaladas pela emoção das lembranças trágicas que teimavam em se manter assim, sem se dobrarem à contingência dos carmas unidos de todos os membros das famílias, a da esposa e a dele, conforme havia declarado de público.
No que respeitava às sensações fugidias que envolviam os sentimentos através das percepções meramente intuitivas da realidade como um conjunto de causas e efeitos, ele não punha obstáculos quanto a ser assim mesmo. Aceitava filosoficamente o fato de que sua capacidade era muito limitada, colocando-se numa faixa de desempenho muito precário no âmbito da intelectualidade. Contudo, opunha feroz opinião à intuição de que não houvera sido injustiçado através da morte da esposa.
Tendo ido ver o Júnior, não pôde conter umas lágrimas, lágrimas que insistiam a escorrer toda manhã, apesar das festas que o filhinho lhe fazia.
Quase sempre o garotinho estava já cuidado pela avó, limpo e alimentado, disposto a ir ao colo do pai para as pequenas peraltices a que estava acostumado. Cabia a Beatriz o delicioso encargo de fazê-lo adormecer assim que o pai se dispunha a tomar o café da manhã, aprestando-se para ir ao trabalho.
Naquele dia, Norberto anunciou para a empregadinha:
— Hoje à noite, nós vamos precisar que você esteja presente numa sessão espírita que vamos realizar aqui em casa. Será que você vai ter medo?
A resposta assustou o rapaz:
— Eu vou lá ter medo de espírito. Medo eu tenho de gente viva.
— Que é que você entende disso?
— Minha mãe já me levou muitas vezes no terreiro. Os guias protegem a gente que faz as obrigações. É o que minha mãe sempre diz.
— Nelma sabia disso?
— Nem Dona Nelma sabia, nem Dona Neusa sabe.
— E meu pai?
— Ficou sabendo quando minha mãe veio me trazer pra morar aqui.
Norberto deixou para fazer as reflexões depois e encerrou o assunto:
— Quer dizer que você não vai ficar tremendo de medo como quando as pedras chovem no telhado?
— Não, senhor.
O dia de trabalho foi normal, com exceção do fato de que o velho Tomás lhe contou que ia com o chefe à casa dele à noite.
— Quem mais vai?
— Eu, o Doutor Agripino e o Doutor José Carlos.
— Que Doutor José Carlos?
— Aquele que cuidou de seu filho, doutor.
— Eu não sou doutor. Que é isso agora? Me trate só por senhor.
— O senhor que sabe.
— Assim está melhor.
Mas a conversa não foi adiante, intrigado que ficou Norberto com as personagens que iriam trabalhar em sua casa
À noite, pontualmente às oito horas, lá se encontravam todas as pessoas reunidas. Da parte de Agripino, além dele, os dois mencionados por Tomás. Da parte de Claudiomiro, o próprio, Jurandir e Clotilde. Durvalina não foi convidada pelo diretor do centro, mas Norberto instou para que comparecesse, dizendo-lhe que sua presença era fundamental para os esclarecimentos que seriam necessários após a sessão. Além deles, Sofia, Valdemar, Neusa, Raul e Beatriz. Júnior lá estava, mas não tinha idéia de nada. No plano espiritual, Glauco, Etelvino, três guias de cada centro, e uma infinidade de espíritos, cada qual com uma atribuição específica para o sucesso dos trabalhos mediúnicos.
Transcorrida a fase social das apresentações, havendo Durvalina e José Carlos trocado informações técnicas sobre a saúde do bebê, Clotilde e Tomás contado alguns casos antigos de quando ambos freqüentavam o mesmo centro de candomblé, criou-se a expectativa da sessão. Tendo Raul apaziguado à parte a esposa, que se via atarantada com tanta gente falando em espíritos e em fenômenos físicos e metafísicos, acabaram ambos ficando no quarto com o Júnior.
Houve um princípio de deserção da parte de Beatriz, que declarou que não queria ficar com os outros. Entretanto, após ouvir as orientações de Agripino, cuja autoridade se impôs aos demais, inclusive a Claudiomiro, que, no fundo, só trazia para a reunião uma enorme curiosidade, porque lhe fora frustrada a esperança de resolver, a distância, os problemas daquela casa, Beatriz resolveu cooperar.
Eis o que Agripino determinou:
— Vão ficar junto à mesa apenas a jovem Beatriz, Clotilde, Claudiomiro, o Doutor José Carlos, Tomás e eu. Nas cadeiras da parede, vão ficar Sofia, Valdemar, Jurandir e Norberto. Os demais, eu peço que permaneçam do lado de fora, porque esta reunião exige uma concentração muito grande, uma vez que nós não sabemos que tipo de criatura vai se apresentar.
Norberto estranhou que Durvalina fosse excluída. A moça, porém, sentindo que o rapaz queria as razões do fato, limitou-se a sussurrar-lhe ao ouvido:
— Mais tarde a gente se entende.
E saiu.
Claudiomiro cuidou de colocar um CD que tranqüilizou os ânimos através da música de Vivaldi. Clotilde deixou apenas um abajur aceso, no canto da sala, diminuindo consideravelmente a possibilidade de se dispersarem as atenções. Agripino distribuiu aos que estavam junto à mesa um maço de papel sulfite sem pauta e diversos lápis, recomendando que todos procurassem escrever alguma coisa, mesmo que não lhes parecesse ter sentido e explicou:
— Esta não é uma sessão totalmente de desobsessão; tampouco é uma sessão doutrinária. Nós iremos tentar evocar a presença de quem tem causado tantos transtornos para a família aqui residente. Vamos ver o que ele ou eles desejam que esta gente de bem possa fazer para dar-lhes sossego. Como, porém, são provocados fenômenos de caráter físico, é possível que a gente veja a mesa levitar ou algum outro móvel deslocar-se livremente. Então, temos de nos concentrar muito para alcançar de nossos guardiães que controlem os irmãos infelizes, caso contrário esta sessão resultará inútil. Por isso, quem desejar escrever que o faça, pois pode ocorrer que alguma entidade queira deixar mensagem de amor, de aconselhamento, de saudade e compreensão, e assim por diante; como também é possível que, por força de serem constrangidos, os obsessores apenas consigam comunicar-se pela escrita. Tudo é possível porque esta é uma primeira iniciativa nossa, sem qualquer recomendação expressa de nenhum de nossos guias, a não ser pela intuição que temos tido de que este método é o mais indicado para aliviar as pressões do plano espiritual de caráter tão grosseiro. Quanto a você, minha filha (dirigia-se a Beatriz), fique atenta para os impulsos de seu braço, pois pode acontecer que algum espírito que lhe seja afeiçoado se proponha a lhe dar algumas instruções. Eu sei que você sabe escrever, mas, mesmo que não soubesse, ainda assim produziria algo significativo. Você sabia que Kardec trabalhava com médiuns tão mocinhas quanto você?
Beatriz abria os olhos para o senhor que a tratava com tanta deferência e respeito e só sacudia a cabeça, fazendo que sim às informações e que não à pergunta direta que lhe foi feita.
Agripino continuou:
— Se Norberto levar você ao centro que ele freqüenta, onde existe uma ótima Mocidade Espírita, você irá ficar sabendo disso e de muitas outras coisas. Em todo caso, mantenha-se sempre calma e não tenha medo de nada. Eu já sei que você tem freqüentado a Umbanda, portanto, vai ver que o que fazemos de diferente é deixar que apenas um médium permita a incorporação de espíritos que desejam falar. Os que escrevem não causam transtornos.
Aí passou a fazer umas recomendações aos que ficaram junto à parede:
— O pessoal de trás não pense que terá menos importância para o sucesso de nossos trabalhos. Absolutamente. Cabe a vocês dar sustentação energética através de suas preces endereçadas aos seres superiores, para que nos assistam em nossos trabalhos. Se quiserem dirigir-se diretamente ao Pai, saibam que ele mandará representantes da mais alta categoria para nos ajudar. Entretanto, não esperem que Jesus compareça em pessoa. Pensem nele e em seus ensinamentos; principalmente, partam da oração dominical, estendendo os conceitos ali concentrados, como Kardec fez e publicou na parte de preces de O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Em seguida, o coordenador da sessão, esmiuçou as fases da reunião:
— Assim que eu terminar esta parte de orientação geral, vocês vão executar uma espécie de meditação, imaginando que todos nós estamos sob um dossel iluminado pelos irmãos da espiritualidade superior. Enquanto isso, eu vou realizar a prece de abertura, solicitando a presença de algum espírito de maior envergadura moral e intelectual para se manifestar e nos fornecer o roteiro que no etéreo se imaginou que seríamos capazes de cumprir. Vejam bem: se nenhum irmão com essas características se apresentar, se nenhum deles vier estimular os nossos desígnios em prol do benefício que estamos desejosos de proporcionar a este lar e aos irmãozinhos que têm provocado essas avalanchas de pedras, então suspenderemos os trabalhos e ficaremos do mesmo modo agradecidos, porque todas as providências podem ter sido levadas a cabo no plano transcendental. Se alguém der uma comunicação de incentivo, então passaremos a pleitear a presença, um por vez, dos que estão afetando o equilíbrio de nossos amigos. Só eu posso dirigir-me pela voz a ele. Mesmo quando se faça referência a alguém desta assembléia, não respondam senão mentalmente, sempre buscando um modo lhano, uma forma educada e compassiva de expor os pensamentos, jamais se expressando agressivamente, pois os espíritos malfazejos o que mais querem é estabelecer controvérsias e discussões estéreis, que é como eles se comprazem. Terminada a fase da apresentação dos obsessores, caso haja necessidade de alguma explicação complementar, poderá comparecer espontaneamente algum dos nossos guias ou, então, formularemos as nossas questões para que eles respondam através de um representante. Mesmo nessa hora, ninguém deve fazer uso da palavra, só o médium, é claro, podendo quem está junto à mesa escrever sua pergunta. Os demais usem apenas o pensamento. Alguém tem alguma questão ou proposta?
Norberto, que começava a formular outra idéia e outro sentimento a respeito de seu superior, inquiriu:
— Nós podemos usar o gravador?
— Perfeitamente. Aliás, vamos deixar a fita rodando, porque é possível que até se possa obter uma gravação direta do plano etéreo. Futuramente, podemos ligar dois aparelhos de som e outro de vídeo, para os contatos de transcomunicação, que é como muitos têm feito experiências sem a participação de contato dos médiuns. Aqui tal providência se aconselha, dado o caráter dos fenômenos que temos observado. Mais alguma sugestão?
À vista do silêncio geral, desligou-se a música. Clotilde, que se manteve ao lado do abajur, cobriu-o com uma gaze verde e sentou-se ao lado de Agripino, que abaixara a cabeça e buscava inspiração para abrir os trabalhos.
Norberto é que se esforçava para concentrar-se em oração, contudo, sentia as ânsias do noviciado nessa área mediúnica, já que era a primeira sessão a que estava sendo admitido. No centro, participara de reuniões de estudos e assistira a muitas palestras. No entanto, jamais se vira tão frente a frente com os fenômenos ou as atividades de relacionamento entre os planos, tanto que se atrapalhava com os pensamentos que cruzavam em sua mente. Pensou em Nelma mas hesitou em solicitar que viesse dar uma comunicação qualquer, tão próxima Durvalina estava daquele ambiente e tão dentro da cabeça e do coração do fiscal de rendas. Também o tête-à-tête em que vira a moça com o Doutor José Carlos, homem maduro e muito cônscio de sua profissão, lhe perpassava pela memória, causando-lhe certa insegurança que titubeava chamar de ciúme, sabendo que o bom homem dera a ela aulas na faculdade e que tinha uma bela família, com os filhos prestes a formarem-se em cursos superiores. Pensou na profissão do outro e se recordou a contragosto de que fora através da influência do pai que alcançara o seu emprego, concurso público de provas, cujo gabarito recebera antes. Achou que esses eventos deveriam quedar no esquecimento, dado que os confessara todos e por todos recebera penitências bem como a bênção do perdão do sacerdote. Caiu num remoinho de culpas que não se sanavam e deparou-se, de repente, perante o filho, a quem, pela teoria que agora estava aprendendo, teria de educar em um padrão moral de maior elevação. Viu-se acusando o pai e imaginou Jesus a dizer aos apóstolos que as medidas que as pessoas utilizam servem para elas mesmas. Nesse ponto das reflexões, acompanhou o pai-nosso que finalizava a prece de Agripino, pondo-se num estado de expectativa sobre o que ocorreria a partir daquele instante.
Imediatamente, Clotilde começou um discurso com a voz um pouco alterada, timbre bastante mais grave que o habitual:
— Graças a Deus! Irmãos, que a paz do Senhor envolva cada um de vocês e lhes dê as virtudes necessárias para que os nossos mundos entrem em contato de muito proveito para todos nós! Venho com a missão, eu que sou o guia Adélcio, pai da médium, para afiançar-lhes que hoje terminará o sofrimento da família Dias, já que as suas preces foram ouvidas e tivemos a permissão de Deus para afastar em definitivo os irmãos sofredores que estavam provocando o alvoroço dos últimos tempos. Leio nos pensamentos de quase todos que vocês estão ávidos por saber a razão fundamental do que consideram um ato de vandalismo, absolutamente dispensável, já que existem tantas casas de atendimento evangélico que realizam sessões em que os espíritos podem apresentar-se para declarar o de que precisam para alcançarem a tranqüilidade favorável aos trabalhos que os conduzirão a planos mais elevados. Contudo, fui orientado para lhes dar apenas algumas explicações, tendo em vista que não podemos causar nenhum transtorno psíquico nem moral em nenhuma pessoa que aqui se acha presente, nem podemos prejudicar os ausentes, criando suspeitas e favorecendo deduções inconseqüentes. O objetivo maior da existência é o amor, conforme Jesus nos ensinou; portanto, vamos nos ater a esse aspecto sublime para dizer que está tudo sob controle, inclusive no que respeita ao fato de que os apedrejamentos, de certa forma, responderam a um membro da reunião que desejava uma prova física da força que os entes da espiritualidade podem ter sobre os fluidos da matéria de que os corpos humanos estão formados e nos quais se acham mergulhadas as almas imortais. Neste ponto, até que estamos contrariando o que se registrou nos Evangelhos, quando Jesus diz a Tomé que benditos são realmente os que não viram e acreditaram. O espiritismo vai um pouco além e é capaz de expor de maneira tangível que existe e que participa da vida dos encarnados. Não obstante, estamos prevenidos quanto aos que opõem muita resistência em acreditar que a passagem que citei haja realmente ocorrido, como também está cada vez mais fácil de raciocinar pelo avesso, atribuindo os fenômenos mediúnicos de natureza física a poderes ainda desconhecidos dos próprios encarnados, através das hipóteses da parapsicologia, o que não cabe agora discutir. O que lhes pedimos, irmãos, é que cumpram os seus deveres em todas as áreas de sua atuação, com o máximo de carinho e paciência, respeitando os seres divinos que cada um representa, muito embora hajam de enfrentar problemas muito sérios quanto aos marginais que causam prejuízos e preocupações e que se encontram incrustados em todas as camadas sociais, cada qual orientando suas atividades perniciosas através de raciocínios próprios, que não vão jamais prevalecer no instante em que despertarem a consciência para as necessidades de reparação dos males praticados. Esta peça oratória elegeu vários temas e, na verdade, não esgotou nenhum, mas acredita o pessoal que represento que todos os presentes terão encontrado uma resposta particular a suas questões íntimas. Por exemplo, sinto-me bem à vontade para declarar que minha filha Clotilde estava preocupadíssima por haver dado margem a que um embusteiro, na outra noite, conseguisse fazê-la transmitir uma comunicação mistificada. Hoje, ela está de todo inconsciente, mal e mal percebendo que está atuando como médium, esperando toda a nossa equipe que muito se admire deste discurso quando ouvi-lo reproduzido eletronicamente. Nós não vamos necessitar dos serviços de doutrinação de vocês para os irmãos que causaram os problemas neste lar, porque já os conduzimos anonimamente a outras sessões, onde se compenetraram de que devem deixar de obsidiar a quem está lutando por acertar no campo da moralidade. Também é preciso advertir os que acreditam que os adolescentes devam ser afastados dos locais em que sua participação energética inconsciente faculte a iniciativa dos fenômenos materiais. Ao contrário, devem receber a maior carga possível de informações para aprenderem a lidar com a sua faculdade, controlando a emissão de vibrações que possam detonar os espetáculos dos mal intencionados de ocasião. Aplaudimos, pois, a iniciativa desta sessão, em todos os seus aspectos e cuidados, mas insistimos em que não precisa repetir-se, a não ser de maneira bastante suave e sutil, caso se estabeleça um estudo semanal do Evangelho, nos moldes preconizados pelas casas espíritas. Os que desejavam que produzíssemos espantos e temores devem estar meio aborrecidos pela falta das assombrações, no entanto, devo avisar para que retirem o véu de sobre o abajur antes que pegue fogo e alguém diga que fomos nós.
Sem causar nenhum atropelo, Agripino foi até o canto da sala e realizou a tarefa que se solicitou. Enquanto isso, o espírito de Adélcio, prosseguia:
— Os que pensam que as confissões sejam inúteis dentro dos templos católicos apenas se precipitam. Na verdade, o espiritismo prega este tipo de comportamento, com a diferença de que não há necessidade de nenhum encarnado investido de autoridade eclesiástica para ouvir a voz da consciência. De resto, em havendo sinceridade quanto ao arrependimento declarado, sempre, nesses instantes de meditação profunda, se apresentam as entidades simpáticas ao encarnado, sugerindo-lhes de forma intuitiva que perseverem em sua atitude de reforma e que reorganizem os seus valores, dando prioridade às virtudes excelsas necessárias para que cada um de nós atinja os páramos da bem-aventurança. Graças a Deus, tivemos pleno sucesso nesta mensagem que rogamos seja entendida como uma colaboração amorável de quem os quer muito. Saibamos que o Senhor dedica suas bênçãos de muito afeto para a humanidade sofredora, porque o mundo, como sempre, serve para as expiações e as provações de todos nós, que somos tão imperfeitos. Fiquem na paz de Deus!
Os que estavam junto à parede mantinham os olhos fechados e o pensamento toldado pelas impressões profundas causadas pelo guia e expositor Adélcio. Dos que estavam junto à mesa, apenas Agripino e Claudiomiro estavam inativos, uma vez que Clotilde, logo que terminou a comunicação, pegou no lápis, como os outros três, inclusive Beatriz, que se aplicava em pôr no papel, febrilmente, uns desenhos que já ocupavam umas dez folhas.
Agripino cultivou o silêncio impregnado de alguma expectativa por novas revelações, deixando os companheiros à vontade para uma segunda incorporação, observando especialmente Tomás, que nunca vira empenhar-se na escrita mediúnica. Quanto ao médico, lembrava-se o doutrinador, havia sido convidado pelas excelentes comunicações dos protetores da casa, mas, muitas vezes, tais mensagens eram psicografadas, de sorte que não lhe causava nenhuma admiração.
Claudiomiro é que se deixou assaltar por uma certa apreensão, já que o trabalho dos demais lhe demonstrava ser o único inútil ali, pois nem se empenhava em concentrar-se em prece, tão intrigante havia sido o discurso pronunciado pelo pai da médium, entidade freqüente nas sessões de sua casa espírita mas que nunca fora tão loquaz nem tão escorreito quanto à linguagem. Em todo caso, não disfarçou para Agripino que jazia sem atividade. Ao contrário, chamou-lhe a atenção para a perfeita disciplina do grupo ali reunido, fazendo-lhe um gesto discreto com o polegar erguido.
No etéreo, as coisas não estavam tão quietas porque fora preciso que Glauco e Etelvino se esforçassem para impedir que Norberto contaminasse de azedume a atmosfera de trabalho, instando para que prestasse atenção ao longo esclarecimento de Adélcio, interessando-o nos dizeres que poderiam refletir-lhe a ansiedade e o temor de receber censuras expressas que se gravavam na fita magnética. Assim que Clotilde se calou, o moço engolfou-se numa luta íntima em que crescia a impressão de que as palavras concernentes à compreensão que se deveria ter quanto aos malfeitores se aplicavam a ele, que se via retratado entre as múltiplas fisionomias do vasto quadro de espíritos e de encarnados perversos. Com isso, os protetores multiplicaram suas ações para neutralização das ondas de vibrações deletérias, construindo uma barreira energética para absorver os impactos que poderiam prejudicar os trabalhos mediúnicos em andamento. Tal barreira servia também para conter eflúvios de reação fluídica mais atenuados emitidos por Valdemar, que, mais que o colega, lutava para não perturbar o ambiente espírita, compenetrado de que seu caráter merecia vigilância, o que o remetia às preces em função quase exclusiva dos rogos por auxílio, exatamente como vinha recebendo dos amigos da espiritualidade.
Junto a Beatriz, os organizadores espirituais mantinham um espírito manietado fortemente mas que se apaziguara dando vazão à sua turbulência e instabilidade psíquicas por meio da observação do trabalho gráfico que a médium realizava e que reproduzia fielmente a sua intenção de transmitir, através de imagens, pensamentos condimentados com diversos efeitos de desagrado. O que o espantava era a forma que os traços tomavam, traços cheios de selvagem harmonia, diferentemente da balbúrdia de sua elaboração mental. Entretanto, ao invés de protestar contra a manipulação de suas idéias revoltosas, ele se acalmou, pegando gosto pela expressão plena de novidade de seus sentimentos. Num determinado momento, compreendeu que bem poderia ser atendido em qualquer reivindicação, desde que se mantivesse submisso à disciplina imposta justamente por aqueles contra quem, de início, investira em fúria. Por isso, projetou um quadro em que havia um muro luminoso a impedir a passagem de dardos, flechas e lanças que visavam um alvo estilizado em forma de coração.
Junto a José Carlos, a Tomás e a Clotilde se situavam espíritos livres da coerção do outro, mas que se obrigavam a submeter seus pensamentos à censura dos mentores, antes de transformá-los em corrente energética a ser descodificada pelos encarnados encarregados da escrita.
Junto ao aparelho gravador, atuava toda uma equipe a ver se conseguia imprimir à fita um recado sonoro espontâneo, sem êxito, todavia, que os encarnados ali reunidos não concediam fluidos em quantidade suficiente para o efeito desejado, principalmente Beatriz, que se mantinha absorvida espiritualmente na tarefa mais penosa de fornecer recursos energéticos para as composições mecânicas dos desenhos, enquanto descansava inconsciente no plano material para o belo trabalho que o obsessor realizava.
Nesse silêncio, manteve-se o grupo até que Agripino percebeu que não havia mais ninguém escrevendo. Então, pensando estar recebendo inspiração do alto, encerrou a sessão, passando a Norberto a incumbência da prece final:
— Cabe ao dono da casa a honra de fechar os trabalhos com uma digna oração. Por favor, Norberto!
Seja porque estivesse distraído imerso nos próprios pensamentos, seja porque não suspeitasse que pudesse ser chamado a colaborar sem que estivesse junto à mesa, o fato é que Norberto acordou de um sonho distante em que se digladiava com um cavaleiro, numa arena sem espectadores, sempre caindo e sempre tentando extrair de dentro do elmo luzente aquela gargalhada desafiadora. Só depois que Agripino repetiu o convite é que teve a presença de espírito de resolver o problema:
— Desculpe-me, doutor, mas estou meio zonzo. Acredito que Claudiomiro se sairá melhor do que eu.
Imediatamente, Claudiomiro assumiu o encargo e, zás-trás, pôs termo à reunião.



22. COMENTÁRIOS E DELIBERAÇÕES

Assim que se acenderam as luzes, as atenções se voltaram para os desenhos, que Beatriz não teve tempo de ocultar. Eram figuras dotadas de um traço delicado e fino, paisagens em borrões bem definidos, naturezas-mortas de composições harmoniosas, todas com contrastes de claro e escuro a ressaltar o primeiro plano com vigor e nitidez.
Claudiomiro foi logo afirmando:
— Essa não é obra de principiante. A nossa cara mocinha aprendeu desenho na escola?
Beatriz, coitadinha, não tinha como espairecer a vergonha que estava sentindo, não sabendo mesmo de onde tirara tanta inspiração. Mas a pergunta era direta e ela se viu coagida a responder:
— A gente faz uns desenhos lá na escola.
Claudiomiro logo se interessou:
— Você pode nos trazer pra gente comparar?
Era o que Beatriz queria, ou seja, saiu depressinha, disposta a fugir do centro da roda. Mas Clotilde se dispôs a acompanhá-la, de sorte que a empregadinha não teve outro jeito senão ir apanhar o caderno para mostrar aos adultos.
Enquanto lá não se encontrava a menina, cada um interpretava à vontade o que lhe representavam as figuras. Nesse ponto, sobressaiu-se Valdemar, que exibia o quadro do coração protegido por uma muralha de luz das flechas e lanças arremessadas:
— Eu acho que esse coração é esta casa, que está sendo protegida pelos espíritos de luz do ataque dos obsessores.
Mas Sofia viu outra coisa:
— Eu penso que não seja isso, exatamente. O coração é a gente; as flechas e os dardos são as maledicências contra nós; a parede luminosa é o espiritismo que nos protege.
José Carlos arriscou uma provocação:
— O coração é o sagrado coração de Jesus, sem a coroa de espinhos e sem o sangue derramado; o muro é o reflexo de sua bondade e de seu amor, contra o qual nós nos arremetemos quando estamos absolutamente insanos, como está a humanidade hoje em dia.
Agripino notou o ar de boa ironia a que estava acostumado e logo impediu uma reação mais agressiva de quem pudesse não entendê-lo:
— Doutor, existem nesta reunião amigos que podem imaginar que as suas palavras sejam sérias. Eu sei que está brincando, apesar de que o que disse até pode ter uma possibilidade de ser isso mesmo, porque o significado do ataque e da defesa da sensibilidade é o que de fato encerra essa composição meramente imaginária, fabulosa, simbólica. Comparando-se com estas uvas, pêras e maçãs que nos convidam a saciar a fome e a sede e que significam as dádivas da natureza, por força do amor de quem as criou, esse quadro é totalmente fantástico, surrealista e, até certo ponto, ingênuo.
Quando José Carlos ia perguntar se o amigo estava sugerindo que a autora seria a própria Beatriz, ei-la de volta com um caderno e mais um calhamaço de folhas soltas. Foi Clotilde quem explicou:
— O caderno contém os exercícios escolares e correspondem à quinta série que ela está cursando. Os desenhos soltos ela vem fazendo à noite, quando a casa está em silêncio e não existe apedrejamento. Foi o que ela me disse.
Logo ficou bastante evidente que os méritos da artista juvenil se anulavam quando da comparação de suas próprias obras com as em que dava vazão aos impulsos inconscientes mediúnicos.
Havia mais de cinqüenta trabalhos, de variada temática e qualidade de textura gráfica.
Por mais de meia hora, o grupo se pôs a observar e a admirar a destreza do desenhista, todos concordes em que não tinha sido Beatriz a autora daqueles quadros.
Quando Jurandir precisou sair, a porta da sala aberta deu acesso a Dona Neusa com uma bandeja, seguida de Durvalina com outra e de Raul com o neto, este com o olhar a vagar por todos os rostos, atraindo as mulheres, para as festas da meiguice feminina.
A reunião tumultuou mas Valdemar não permitiu que Beatriz levasse os desenhos embora:
— Sabe o que vou fazer? Vou arrumar uma pasta bem bonita, com plásticos transparentes, e colocar todos os desenhos pra que a gente possa folhear sem sujar nenhum. Posso levar todos comigo?
A mocinha não pôde dizer que não, principalmente porque seus serviços estavam sendo solicitados pela patroa, que lhe ordenara ir buscar na cozinha os bules e os doces.
Agripino quis colocar certa ordem:
— Só mais uns instantes, por favor!
O povo obedeceu e fez silêncio.
Agripino prosseguiu:
— É costume da gente ouvir as mensagens escritas. Tomás e o Doutor José Carlos têm suas páginas para ler. Vamos ouvi-los?
Foi o médico quem ponderou:
— Eu acho melhor a gente ler lá no centro, outro dia. Eu acho que Tomás está de acordo...
Tendo o nomeado feito que sim, concluiu José Carlos:
— Caso o Senhor Claudiomiro quiser uma cópia, eu tiro xerox e faço chegar às suas mãos. Está bem deste jeito?
Novo assentimento tácito e a conversação geral se restabeleceu.



23. ETELVINO E GLAUCO SE ENTENDEM

Deixemos os encarnados entretidos com a parte social da reunião e vamos ouvir a conversa entre os protagonistas do etéreo.
Perguntava Glauco a Etelvino:
— Caro companheiro, posso considerar de pleno êxito a realização desse primeiro trabalho mediúnico a que assistiram vários amigos novatos na doutrina?
— Perfeitamente, mas com restrições.
— Uma, por exemplo...
— O fato de que todos os presentes já leu e estudou O Livro dos Espíritos, ao menos em grande parte, para que tivessem tanto interesse pela parte gráfica dos eventos da noite, deixando de lado as orientações morais contidas nos textos escritos.
— A bem da verdade, nem foram lidos.
— Falo quanto à curiosidade a se sobrepor ao legítimo interesse pelos conhecimentos. Veja que até Clotilde, que transmitiu a mensagem do pai, que ficou gravada, nem perguntou a respeito, indo imediatamente na companhia de Beatriz em busca do outro material gráfico.
— Não podemos considerar esse fato como perfeitamente válido para quem se habituou às mensagens do protetor, principalmente porque lhe desconhecia o teor, imaginando que se tratava de mais uma ponderação moral para todo o mundo?
— Claro que podemos. O que eu quero ressaltar é o primitivismo dessas reações.
— Mas, Etelvino, os trabalhos transcorreram no máximo de atenção e compenetração, exceção maior para o nosso Norberto. Que primitivismo houve aí?
— Glauco, querido. Não veja em minhas palavras graves censuras ao que se fez nem aos resultados paupérrimos à primeira vista, uma vez que é possível que, num segundo momento, haja uma reflexão saudável no íntimo de cada um, exatamente no sentido que estamos dando às nossas observações. O que pretendo ressaltar é que, quando Kardec deu início à publicação de sua revista, incluiu, no primeiro ano, no número oito, certo desenho que excitou a curiosidade dos que se iniciavam no espiritismo. Está lembrado disso?
— Desenho do médium Victorien Sardou, atribuído ao espírito de Bernard Palissy, que retratava uma cena bucólica de Júpiter.
— A casa de Mozart formada pelas claves musicais e outros recursos do tipo. Não seria uma volta aos tempos primitivos?
— Visto desse ângulo, preciso concordar. No entanto, as gerações se renovam e os que vão chegando têm de ser, obrigatoriamente, neófitos, já que os mais graduados, nós bem sabemos, vão ascendendo para esferas mais elevadas, como os desenhos de Júpiter mesmo estão a sugerir.
— Gostei de seu raciocínio, entretanto, ele vem apenas em abono de minha tese, qual seja, a de que precisaríamos renovar os aspectos mais sensórios dos fenômenos para induzir as gerações atuais aos estudos filosóficos mais sérios. Ou seja... Conclua, por favor.
— Ou seja, de tempos em tempos temos de fazer as mesas girarem, os telhados se apedrejarem, os materiais se inflamarem espontaneamente e os artistas do etéreo efetuarem desenhos e pinturas com a rapidez do pensamento, para a comprovação pelo fato de que existimos, os espíritos, e que temos a mesma natureza das almas dos encarnados.
— Mas não conclua, por favor, Glauco, meu amigo, que a obra de Kardec necessite ser escrita de novo nem ao menos atualizada. Isso de atualização deve caber aos mortais, quanto aos aspectos científicos que não param de evoluir. De resto, os autores da espiritualidade jamais cessaram de enviar suas composições em prosa e verso, acrescentando muitos elementos novos aos apresentados na obra da codificação.
— Mas, Etelvino, amigo meu, acho que, acompanhando a sua linha de raciocínio, eu posso lembrar que nem todas as obras do etéreo constituem acréscimos de ponderável seriedade, havendo muitas que servem apenas para atiçar a curiosidade de quem ainda não se dispôs a estudos mais sérios. Não há o perigo de muita gente ficar na periferia desta enorme cidade?
— Claro que há. Mas também há toda uma eternidade pela frente para que os desígnios do Senhor se realizem.
— Eis que de novo encerramos mais um tópico absolutamente de acordo.
— Eis um aspecto da perfeição, porque não havemos de olvidar que, no final dos tempos, vamos dizer assim, só haverá uma única opinião e uma única certeza.
Aí, ambos foram descansar, cada qual em sua colônia.



24. O DRAMA DE BEATRIZ

Enquanto transcorria a sessão, Durvalina e Raul conversavam animadamente a respeito de quais elementos os seres humanos dispõem para o contato com o plano espiritual. Ao lado, ora cuidando do neto, ora preparando o lanche, Dona Neusa não deixava de prestar muita atenção em tudo quanto diziam.
Explicava a médica:
— Desde Kardec, em meados do século dezenove, a humanidade se vem consagrando às conversações com os amigos da espiritualidade, pra se esclarecer sobre a natureza da existência dos seres encarnados.
Raul perguntava, como a confirmar o que já sabia:
— Quer dizer que os irmãos que conosco vivem, após a morte, ficam a nos rodear, orientando os nossos atos e ajudando em nossos pensamentos?
— Alguns ficam e outros não ficam. Os que se adiantam em virtudes e se tornam espíritos mais puros adquirem o direito de ir pra esferas de existência mais pacífica, mais harmoniosa. Os que só progrediram um pouco, podem freqüentar cursos em escolas ou podem trabalhar em colônias de espíritos, aproveitando esse interregno na espiritualidade pra avançarem mais um pouco. Os que perderam a oportunidade e continuaram do jeito que estavam, se já têm bons antecedentes, voltam pro local de onde partiram, aguardando nova oportunidade pra reencarnar, segundo propostas de expiações e de provações que sejam capazes de pedir a seus mentores. Finalmente, existem os que praticam crimes contra a humanidade, seres ruins que caem em desgraça e voltam pra regiões de maior ou menor sofrimento de acordo com seu retrospecto de maldade, onde vão curtir uma consciência muito pesada, até que Deus lhes conceda uma nova vida.
— Quem é que pode vir jogar pedras nos telhados?
— Os que se aproveitam dos fluxos energéticos das criaturas humanas ainda não totalmente desenvolvidas pra recepcionar os espíritos e lhes dar guarida em paz e tranqüilidade pra serem doutrinados ou orientados por pessoas habilitadas a lhes fornecerem as lições de moralidade superior que aprenderam nos ensinamentos de Jesus.
— Quer dizer que precisam do apoio dos encarnados?
— Qualquer contato entre as esferas, ou seja, entre os do mundo denso da carne e os da natureza mais etérea da espiritualidade, tem de receber uma espécie de vibração energética dos que estão aqui pra se aproveitarem os de lá e se insinuarem junto à nossa sociedade, ao nosso ânimo e mesmo às nossas coisas. Pelo menos é o que tenho estudado nos livros de Allan Kardec.
— Quem é que está permitindo que esses espíritos maldosos quebrem as nossas telhas?
— Quem está permitindo, evidentemente, são os guias da família, que desejam comprovar de maneira material que estão presentes no nosso dia-a-dia.
— E os nossos prejuízos?
— Caso as pessoas tenham posses, como vocês, por exemplo, o gasto é mínimo se comparado com o benefício de uma confirmação de transcendental importância, definitiva. Esse tipo de acontecimento, eu não conheço nenhum caso em contrário, é causado de molde a não levar ninguém à falência, ainda que telhados de casas paupérrimas sejam arrebentados, mas estes já estão falidos financeiramente. Se a gente recebesse pedradas no prédio do centro espírita, o senhor pode ter a certeza de que o grupo que ali se reúne está a merecer a advertência.
— Quem é que nesta casa está precisando desse aviso?
— Norberto tem rogado, conforme nos afirmou, que os amigos do além lhe forneçam uma comprovação física de sua existência. As pessoas católicas chamam a isso de sinal ou de milagre.
— É Norberto, então, quem fornece as tais vibrações?
— Se fosse ele, eu acredito, ele veria os móveis ao seu redor se moverem ou algo desse tipo. Por exemplo, seria transportado pro local em que se encontra a ex-esposa ou veria aparecer-lhe uma figura. A gente não pensa que seja seu filho o provocador desses fenômenos.
— Então, sou eu? Ou é minha mulher? Ou o meu neto?
— O mais certo é que, pela idade, pelos hábitos religiosos, pelas crenças ainda não assentadas, seja Beatriz.
A partir desse instante, Dona Neusa deixou de ouvir o que mais se disse, escapando-lhe o belo discurso em defesa da garota que fez Durvalina. Escasquetou ela a idéia de que a menina era perigosa e deliberou que a afastaria de junto do neto, de quem cuidava com desvelo e amorosamente, reconhecia, mas que poderia transformar-se em uma agressora involuntária.
Quando viu os desenhos espalhados pela mesa, conseguiu caracterizá-los como produtos de uma visão distorcida da realidade, não prestou atenção nos grupos de objetos em repouso, deixando-se impressionar pelo coração solto no espaço e por outros elementos abstratos ou com profundas adulterações morfológicas, como se estivessem sofrendo dores horrendas, porque tortos, quebrados, rojados ao solo, explodindo no ar atingidos por projéteis invisíveis. Julgou a obra como um desvirtuamento da pessoa que empunhava o lápis sem atribuir nada às entidades. Chegou perto de fazê-lo mas não pôde acusar os demônios indigitados pelo Padre Tiago, uma vez que jamais vira Beatriz alterada, zangada, arredia, desobediente ou rebelde. Às vezes, a surpreendia tristonha, meio macambúzia, mas logo se lembrava do amor que demonstrava pela falecida e atribuía o estado psicológico a uma saudade bastante provável.
No dia seguinte, logo cedo, estando Norberto em casa por ser sábado, pegou Raul e arrastou-o até a igreja. Queria ouvir a opinião do sacerdote.
De há muito, Norberto voltara a dormir em seu quarto, tendo feito questão de ter o berço do filho ao lado da cama. Naquele dia, assim que o casal saiu, o menino acordou e, como de hábito, abriu um choro apelativo, desejoso de receber o carinho e os cuidados da avó.
Mas foi Beatriz quem chegou para apanhá-lo, sem que Norberto houvesse acordado, exausto pela semana de trabalho que culminara numa reunião que o mantivera acordado até tarde.
O Júnior, assim que se viu arrebatado do leito pelo afeto conhecido da menina, estancou o choro, grandinho para compreender que receberia toda a atenção que pleiteava, abrindo até um sorriso em correspondência às palavras meigas da pueril linguagem de quem embala bebês.
Tão perto do patrão, Beatriz chamou a atenção do filho para o pai, em voz bem baixa para não incomodar o adormecido:
— Olha o papai, Titinho. Não faça barulho que ele precisa dormir. Veja como ele é bonito! Você vai ficar igualzinho, quando crescer.
O menino, na obscuridade do quarto, conseguiu reconhecer o pai a quem estava muito apegado, de modo que lutou no colo da mocinha para descer, ameaçando chorar. Foi o suficiente para acordar Norberto que levou um pequeno choque ao ver o filho no colo da mocinha tão perto de sua cama.
— Que foi? Que aconteceu?
— Não foi nada, não, Seu Norberto. Foi o Titinho que quis ir com o senhor. Pode deixar que eu vou levar ele embora.
Imediatamente, a menina levou a criança, que se resignou ao adentrar num ambiente banhado de luz.
Enquanto ela saía, Norberto pôs reparo em que a menina se desenvolvera, apresentando os contornos de uma mulher em pleno desabrochar. Era a primeira vez que punha sentido no fato de que ela estaria gostando dele de modo bem diferente dos primeiros tempos, quando acompanhava a mãe, que ajudava Dona Neusa, ele solteiro ainda. Naquela época, sempre tinha uma brincadeira, uma historieta, um gracejo, acompanhados de pequenos regalos ou atenções, não tendo sido poucas as vezes que saíram juntos para um sorvete ou um doce na padaria da esquina.
Quando chegou Dona Nelma e assumiu completo domínio do interesse do rapaz, Beatriz percebeu que era amiga dele mas empregada da família, olhando para a cor de sua pele até com certa repugnância. Mas esses foram sentimentos íntimos de que o moço jamais teve conhecimento. Por essa época, Beatriz assumira o lugar da mãe, como ajudante e aprendiz, recebendo um salário condicionado à freqüência a uma escola, em horário vespertino.
Já sabemos que era recente sua residência nos fundos.
Pois bem, naquele sábado, ao deixar o quarto do patrão, Beatriz tinha as idéias totalmente embaralhadas. Praticamente, havia infringido um dos princípios básicos de qualquer empregado doméstico, qual seja, o de adentrar na intimidade das pessoas da casa. Suspeitava de que Norberto a ouvira elogiar a sua beleza e isso a punha ainda mais confusa. Dentro em pouco, porém, tendo trocado a fralda e dado a mamadeira ao petiz, que há algum tempo dispensara o leite da maternidade, sentiu uma alegria crescer-lhe no coração, percebendo o quão importante estava sendo para a família que a agasalhara e que lhe dava tratamento de parente chegado.
Quando tomava seu banho matinal, Norberto passou em revista a sua constituição física para, com satisfação, concluir que as carnes ainda mantinham a rigidez dos tempos de atleta amador, quando jogava bola com os amigos do clube. Viu mesmo que perdera as gorduras das regalias do casamento, perda que atribuiu ao sofrimento com a desencarnação de Nelma. Foi sem esforço que trouxe Durvalina para a memória, recordando-se de que Beatriz, toda vez que a médica estava, precisava ser chamada insistentemente para comparecer para as providências que se lhe requeriam.
Voltou-lhe a visão da adolescente carregando o filho junto à cama e sua silhueta projetada contra a luz da porta. Foi só então que percebeu que a mãe deveria ter saído, para que se atrevesse a empregada a entrar em seu quarto. Aí, amainou a vontade que lhe crescia de repreender a mocinha, já que, naquele caso, não estaria fazendo mais que cumprir as obrigações.
Pensou:
“Dona Neusa é quem está merecendo um puxão de orelha por não me acordar. Pelo menos, poderia ter levado o menino, pra eu não passar o vexame que passei.”
Quando Norberto entrou na cozinha para o café da manhã, o filho arrebatou-lhe toda a atenção, quase esquecido já do incidente.
Depois que serviu o lanche, Beatriz desapareceu dentro da casa, providenciando a arrumação dos quartos, trocando a roupa da cama, atividade que se repetia todos os sábados. Naquela manhã, ousou envolver-se nos lençóis do patrão, buscando reconhecer o perfume que ele costumava usar. Mas, ao ouvir o barulho de uma cadeira que se arrastava, voltou a fazer a trouxa para a lavanderia.
Entrementes, Norberto levou o filho para o quintal, o que deixara de fazer há algum tempo, com medo dos apedrejamentos. Mas lembrava-se dos dizeres da noite anterior e punha fé em que os transtornos haviam terminado. De fato, o solzinho matutino era o ideal para o Júnior que, aos quase seis meses, não tinha a aparência de quatro, prematuro que fora.
Estando as janelas dos quartos abertas, podia ver Beatriz em plena azáfama. Como o sol entrasse por lá, encostou-se no parapeito e puxou conversa:
— Beatriz, você tem namorado?
Parecia que ela estava preparada para a pergunta:
— Vai demorar pra eu ter um.
— Por quê? A sua mãe não deixa?
— Porque eu não quero.
— Por que você não quer?
— Bobagem. Os paqueras só querem se aproveitar da gente.
— E você? Não quer se aproveitar de ninguém?
— Você está brincando comigo.
— Escute aqui. Que história é essa de me tratar por você?
— Não tem ninguém por perto.
— E o respeito?
— E a amizade?
Norberto se divertia com o aparente atrevimento da menina:
— Quem lhe ensinou a me chamar de senhor? Foi a Nelma ou a minha mãe?
— Foi a minha mãe. Uma vez ela me ouviu chamar você de você, e aí ela me deu uma bronca. Ela disse que eu não era mais criança.
— Muito bem! Nem eu sou criança, mas chamo você de você.
— Ia ser engraçado me chamar de senhora...
— A senhora acha?
— Nem a minha mãe eu chamo de senhora. Mas Dona Neusa, sim.
— E a Doutora Durvalina?
Norberto esticou um olhar curioso para notar alguma transformação fisionômica. Mas Beatriz lhe voltou as costas, atarefada com a vassoura de pêlo com que tirava o pó do chão. Mas respondeu:
— A doutora, eu respeito muito, porque é uma pessoa muito boa.
De imediato, deu por encerrada a tarefa, acomodou os tapetes, não quis mais prosa e foi separar as roupas para as cargas que iriam para a máquina de lavar.



25. NORBERTO MEDITA

O fiscal se satisfez com o que viu e ouviu e foi esperar os pais junto ao portão da frente. O filho ia acomodado no carrinho. Sentou-se no pequeno alpendre, deixando o menino à frente da garagem lateral, onde ainda batia um pouco de sol. E pôs-se a relembrar o que presenciara na reunião da véspera. Mas não pôde conter o impulso de recordar-se dos desenhos da jovenzinha. Recordou-se de que Valdemar os levara embora e imaginou que a autora não saberia descrever como é que desempenhava de maneira tão rara aquela função mediúnica.
Curioso, teve a idéia de chamá-la ou de ir atrás dela, mas voltou atrás de seu intento, achando melhor buscar na memória as explicações que ouvira e que lera a respeito:
“Essa atividade mecânica está ligada a um tipo de mediunidade inconsciente. Com certeza, o espírito provoca um transe, aproveitando-se da distração da pessoa, interessada em mergulhar em algum sonho ou fantasia, ou ainda, ficando sonolenta, como os sonâmbulos ou os hipnotizados, que fazem o que lhe mandam e depois não se recordam de nada que fizeram.”
Enquanto desenvolvia a sua tese, Norberto não se deixava convencer de que tudo transcorria exatamente daquela maneira:
“Deve existir muita coisa mais envolvendo esse processo de alheamento da pessoa e de entrega a outro ser da espiritualidade. Quando é o hipnotizador que provoca o transe, eu acho que não existe nenhum espírito por detrás das atividades das pessoas. Trata-se de mera sugestão.”
Aí o rapaz constatou que, em relação à psicologia, psicanálise ou psiquiatria (ramo científico da medicina que não sabia caracterizar), ele estava carente de informações, tanto quanto em relação ao espiritismo.
Aproximou-se do portão hermeticamente fechado com grossas grades e passou a observar o movimento na rua.
A intuição de que não soubera comportar-se durante a reunião tomou-o de assalto. Sentiu-se mal. Achou imperativo resolver o problema. Começou por orar uma prece, rogando que os guias o perdoassem e o esclarecessem.
Foi até o carrinho do Júnior, verificou que adormecera e levou-o para dentro, acomodando-o no berço. Depois foi ouvir a fita com a mensagem de Adélcio, que ele se encarregara de copiar para os demais.
Após ter achado apenas duas fitas virgens, precisando de mais seis, chamou Beatriz e lhe deu instruções e dinheiro para que as comprasse. Não querendo atrasar o trabalho, preparou o gravador e deu início à passagem de um desk para o outro, sem se preocupar muito com o tempo que iria demorar, porque não restringiu a cópia aos minutos em que Adélcio falou.
Nesse meio tempo, apanhou um livro de orações de Nelma e se pôs a ler bem devagar, cada uma delas endereçada a um santo padroeiro, percorrendo os protetores dos doentes, das grávidas, das parturientes, dos aflitos por falta de dinheiro etc. Havia até uma oração destinada aos homens negros, instante em que seu pensamento se voltou para Beatriz e para Tomás e foi até Kardec e as explicações que havia lido a respeito das raças superiores e inferiores.
“Ainda bem que o mestre francês se referiu claramente à possibilidade de quem é branco numa encarnação poder reencarnar-se negro em outra e vice-versa. Se não dissesse isso, a gente poderia pensar que as raças inferiores serviriam apenas para espíritos inferiores. Ao contrário, os espíritos de qualquer nível, desde que enquadrados entre os que estão junto à atmosfera espiritual da Terra, podem vir, para expiação e para alguma missão, junto a qualquer povo.”
Como lhe estava ocorrendo ultimamente, sentiu-se inseguro quanto às reflexões, parecendo-lhe que havia algo não muito correto em seu raciocínio. Tentou complementar:
“Se Kardec tivesse nascido negro ou índio, teria escrito tudo quanto escreveu?”
A pergunta incomodou-o um pouco, porque lhe parecia algo ofensiva quanto à nobre pessoa do codificador. Então, buscou uma saída honrosa:
“Se Kardec tivesse nascido um século depois, vivendo em mil novecentos e cinqüenta e sete, ou seja, à época correspondente em que escreveu a primeira edição de O Livro dos Espíritos, sem que ninguém mais tivesse escrito nada a respeito de espiritismo, teria efetuado a sua pesquisa nos moldes em que se deu na França do século dezenove?”
Perpassaram-lhe pela mente as guerras do século vinte que arrasaram a economia e o povo europeu duas vezes, havendo começado a chamada guerra fria entre norte-americanos e soviéticos e a conclusão a que chegou o nosso fiscal foi da impossibilidade de os escritos saírem com o mesmo teor.
Nesse instante, pareceu-lhe que uma intuição lhe foi sugerida a partir do plano espiritual, porque, sem transição, lhe veio à mente a figura do médium Chico Xavier, que, por aquela época em que situou Kardec, estava em plena atividade, cumprindo as metas estabelecidas pelo espírito de André Luís, conforme anotara em uma recente palestra proferida por Claudiomiro.
“Será que, sem Kardec, existiriam as obras do Chico? No entanto, preciso conhecer muito mais, porque não tenho nenhuma notícia de que na França, nesse mesmo período, não haveria médiuns trabalhando nesse sentido.”
De novo lhe veio a sensação de muita pobreza de informações. Mas se sentiu até bem com a reflexão de que até pouco tempo atrás nenhuma dessas idéias lhe teriam sequer aflorado à mente. Mas disse a si mesmo o resultado que vislumbrara quanto ao estudo dos textos de Kardec:
“De qualquer jeito, a verdade é que, quando a gente se dedica às leituras e aos debates sobre os livros editados por Kardec, é como se a gente vivesse o ambiente cultural, social, psicológico e histórico de uma época muito diferente da nossa. Também é verdade que os livros dele se vendem aos milhões, tendo muita gente necessidade de conhecer uma teoria ou uma doutrina que satisfaz aos desejos de compreensão da vida, de forma muito diferente deste livrinho de orações, por exemplo, que, bem considerando, reflete um pensamento muito mais antigo que o de Kardec, do tempo em que os padres mantinham o domínio temporal, porque imperavam sobre os reis, vendendo-lhes o reino de Deus...”
Atinou Norberto com a linha tendenciosa para o pessimismo e para o denegrir das instituições. Insistiu em avaliar as suas considerações muito pouco profundas. Reconheceu que bem poucos conhecimentos possuía, para atrever-se a esse tipo de considerações de muita elaboração filosófica e histórica. E caiu em si perante Durvalina, médica brilhante e laboriosa, de muito sucesso, capaz de conversar sobre os temas específicos dessa ciência com o próprio professor.
“Tenho pensado nessa moça como substituta para Nelma. Não estarei sendo muito pretensioso, uma vez que ela talvez tenha olhado para mim por piedade, caridosa que é, sabedora de que guardo luto em meu coração?”
Não quis manter a mente entretida nesses pensamentos eivados de reminiscências pesarosas. Achou melhor, já que as duas fitas estavam gravadas, ir esperar Beatriz junto ao portão, a ver o pessoal transitar pela calçada, cumprimentando um ou outro, puxando alguns dedinhos de prosa com alguns mais chegados, tentando explicar para a maioria que as pedras tiveram um alvo bem definido, ou seja, despertar as pessoas para os fenômenos espíritas, assustando com isso alguns menos afeitos aos pensamentos metafísicos.
Não demorou para voltar Beatriz, mas Norberto resolveu ficar mais um pouco, justificando sua permanência junto ao portão com o belo sol matinal, que ainda não estava de crestar a sua pele clara. Teria ficado ainda mais, não fosse o regresso dos velhos, os quais o liberariam para um passeio matinal até o Amor Fraterno de Jesus, logo após haver terminado de fazer as demais cópias, estas limitadas ao tempo gasto pelo guia Adélcio.



26. AS PALAVRAS SE CUMPREM

Todos os amigos presentes à reunião mediúnica ficaram com a impressão de que os eventos físicos haviam terminado para a família de Norberto. Desse modo, criou-se uma expectativa quanto ao passar dos dias, principalmente porque, segundo a opinião generalizada, teria sido a mediunidade de Beatriz que favorecera os fenômenos.
A mocinha também passou a ser alvo de vigilância, principalmente de Dona Neusa, que, logo que se encontravam de manhã, pedia para lhe mostrar os desenhos da noite. Mas o tempo foi passando e nunca mais Beatriz mostrou quadro algum, dizendo que dormia tranqüila, sem que se lembrasse de nenhum estremecimento que lhe indicaria estar sob a pressão das vibrações de algum espírito interessado em se utilizar dela como instrumento para sua manifestação aos mortais.
Valdemar trouxe o álbum com os desenhos que levou, explicando que tirara várias cópias de cada para avaliar o interesse para uma publicação em que pudesse fazer a demonstração de que os fenômenos espíritas estavam acontecendo em pleno final do século vinte. Juntou ao acervo as reportagens estampadas nos jornais a respeito dos apedrejamentos, acrescentando algumas imagens da casa e dos arredores. Esclareceu que enviaria as fotos das pessoas da casa, principalmente da autora dos desenhos, e ficou no aguardo das respostas das editoras e das revistas.
Durvalina quebrou o silêncio quanto aos sentimentos que nutria por Norberto e empenhou-se para romper-lhe o bloqueio de seu complexo de inferioridade em desenvolvimento.
— Mas eu não quero, dizia o rapaz, tornar-me apenas uma figura decorativa em sua vida.
— Você acha que estou me enganando quanto aos meus sentimentos e aos seus? Não é verdade que você, sempre que pode, vem nos horários em que sabe que estou no centro, pra conversar comigo? Não é verdade que, sob o pretexto de saber como é que o Júnior está, lá vou eu à sua casa, apesar de saber que sua mãe não me vê com bons olhos nem Beatriz fica satisfeita com minha presença?
— Quanto à minha mãe, eu acho que ela sabe que, se nós nos juntarmos, vai perder o neto, porque eu disse a ela que você tem um apartamento disponível.
— Esse é realmente um problema sério. Eu não abro mão de ficar com o garoto, mas a gente pode resolver trazendo-o pra passar o dia com ela e as noites conosco. Nos fins de semana, a gente pode alternar, ora com uns, ora com outros.
— Quanto a Beatriz, ela não pode vir mesmo com o menino, porque eu dei muita confiança a ela e agora ela está muito agarrada comigo.
— Isso eu já notei. Você precisa ter muito cuidado, porque essas adolescentes apaixonadas podem causar muitos problemas. É bom evitar qualquer tipo de intimidade.
— Outro dia, minha mãe e meu pai saíram e ela entrou em meu quarto pra pegar o Júnior. Eu acordei com ela ao lado de minha cama, com o menino no colo.
— É o que eu estou dizendo.
— Mas, Lininha, isso tudo está fora de cogitação, porque eu acho que a gente não pode correr esse risco. Veja que as coisas entre nós não estão sendo espontâneas. A gente não troca confidências. Eu fico olhando pra você; você fica olhando pra mim; mas não sentimos aquele fogo que eu tinha pela falecida e que você deve ter tido por seus namorados...
Naquela hora, estavam conversando no carro dele, numa rua lateral ao centro espírita. Estavam esperando despedir-se para Durvalina apanhar o carro dela de volta para casa. Foi quando a médica provocou o primeiro contato físico entre ambos, a ver se se estremeciam pela força dos sentimentos recíprocos. Trocaram um longo beijo, como a apagar todo o diálogo que haviam tido. Houve um esquecimento total das diferenças culturais. Eram apenas duas pessoas que se amavam e que começavam a entender-se na intimidade.
Discretamente, Glauco e Etelvino se afastaram do casal, alegres por haverem presenciado um momento de lucidez sentimental, apesar dos enlevos e dos transportes emocionais dos encarnados.
Foi Glauco quem puxou o assunto:
— Quanto tempo haverá de passar até que um deles desconfie de que fizeram um trato no espaço espiritual de que se uniriam nesta encarnação para formar uma família?
— Sem que a gente os estimule nesse sentido?
— Evidentemente.
— Eu acho que não vai passar de uma semana. Entretanto, para que cumpramos a nossa palavra, não podemos deixá-los sem essa informação ou a suspeita desse acontecimento por muito tempo, pois esse conhecimento, muito embora apenas intuitivo ou subjetivo, irá sedimentar ainda mais o relacionamento deles. Veja Adélcio, que se manifestou em nome dos espíritos protetores do grupo dizendo que os problemas estavam encerrados e, realmente, providenciou para que a mediunidade de Beatriz se vestisse com a capa de uma consciência de seu próprio poder, de modo que foi possível atuar com certa facilidade para dissuadir os espíritos ávidos de causar problemas quanto a seus propósitos malévolos.
— Mas, quando a situação de Norberto e de Durvalina chegar ao conhecimento da menina, haverá uma reação negativa, dado que ela está por demais envolvida nos encantos do patrão. E, nesse campo, estamos impedidos de atuar, a não ser para oferecer ao moço certa advertência, de resto não muito expressiva, dado que já se encontra prevenido.
— Meu caro Glauco, você não acha que está na hora de se fixarem na prática os elementos teóricos de posse do rapaz?
— Etelvino, querido, vamos esperar que a freqüência de Beatriz aos estudos espíritas aos domingos a desperte para um uso inteligente de seu livre-arbítrio.
— Eis a palavra mágica: livre-arbítrio. Vamos aguardar o desenrolar dos acontecimentos.
Também Agripino não deixou escapar a primeira oportunidade que teve para solicitar a Tomás e a José Carlos que lessem as mensagens que escreveram em casa de Norberto. Deu-se a leitura numa reunião doutrinária em que se discutiam alguns pontos de O Livro dos Médiuns, de Kardec.
Tomás foi o primeiro:
— O meu amigo da espiritualidade se dedicou a falar um pouco da necessidade que têm os encarnados de ouvir conselhos dos guias. Vou começar: “Deus esteja conosco, bons amigos aqui reunidos! Eu sei que vocês têm muita precisão dos conselhos dos seus guias espirituais, porque, muitas vezes, vocês ficam tentados a fazer muita coisa errada, principalmente quando se trata de ganhar dinheiro de modo desonesto. Mas a gente está atenta e faz de tudo para impedir que vocês caiam em tentação. Quando isso não é possível, então sempre pedimos para outros irmãos aconselharem por nós, para o que falamos aos ouvidos deles, por assim dizer, ou seja, diretamente em sua consciência. Mesmo pessoas muito ricas caem nessa de roubarem dos outros, como estamos vendo hoje em dia na sociedade, ou melhor, nas cidades do mundo inteiro. Depois, quando vocês chegam aqui de volta, vão ficar lamentando não ter ouvido quem se esforçou para avisá-los. Numa reunião tão bonita como a de hoje, quando muitos espíritos adiantados se apresentam para trabalhar para dar à família que mora nesta casa a certeza de que o que tinha de ser feito já foi feito, a gente fica até acanhado de escrever. Mas, sabendo que as pessoas mais simples precisam de palavras mais simples, sempre existe um lugarzinho para irmãos mais atrasados como este que está escrevendo agora. De qualquer jeito, recebo a ajuda de meus orientadores que vão dizendo o que posso e o que não posso dizer. Neste caso, estou impedido de avisar a certo irmão aqui presente para deixar de pensar tanto em suas preocupações com a verdade dos outros, devendo ficar entretido sempre com o bem que deve fazer. Falo de maneira bem geral, porque não posso dizer o nome da pessoa a quem estou dirigindo estas minhas advertências. Penso que aquele para quem possa servir a carapuça irá utilizá-la com bom proveito. Sei que preciso terminar pedindo ao Senhor que nos proteja, mas isso é muito pouco para quem se concentra com tanta atenção no serviço que está fazendo em prol de uma convivência pacífica entre encarnados e desencarnados. Neste caso, prefiro acompanhar a prece final, deixando meu coração vibrar com bastante força no sentido de contribuir com a harmonia geral para que as bênçãos de profundo amor do Pai sejam distribuídas por Jesus, não só para todas as pessoas presentes, mas também pelos familiares que estão em suas casas, aguardando a sua chegada para festejarem juntos a alegria de existir em paz e felicidade, superando todos os problemas com fé e esperança no bondoso coração de seus guias e protetores. Graças a Deus!” Devo avisar que meu amigo Agripino deu uma olhada na minha redação e corrigiu os erros, que não eram poucos. Eu acho que foi uma bela mensagem mas que não chegou aos pés da que a irmã Clotilde transmitiu.
Agripino orientou para a continuidade harmoniosa da reunião:
— Eu sei que vocês desejam analisar algumas passagens, tanto que alguns tomaram algumas notas. Mas, antes das apreciações, vamos ouvir o Doutor José Carlos.
— Eu também escrevi uma comunicação de um espírito não muito elevado, contudo, não vi nenhum defeito de monta nela. Ei-la “Meus irmãos, que Deus nos proteja envolvendo-nos com sua luz de benevolência e amor. Paz e saúde a todos é o que desejam os amigos da espiritualidade aqui reunidos para darem sua orientação aos que nos estão demonstrando o desejo de saber como é que estamos reagindo frente aos fenômenos físicos que estão resultando em transtornos para os habitantes desta casa. É preciso, antes de tudo, confirmar que se trata realmente de um fato mediúnico, descartando-se, desde logo, o logro que alguns encarnados pretendiam provocar na mente das pessoas envolvidas nos arremessos dos corpos sólidos sobre os telhados deste irmão aqui residente. Entretanto, não havemos de ficar satisfeitos apenas com o relato puro e simples desse acontecimento, senão que precisamos elucidar as causas que os provocaram e os meios utilizados para tanto. Confirmamos, então, o que muitos já sabem, quer dizer, que estes acontecimentos são causados em harmonia com os desígnios do Pai, que deseja que os seres do etéreo contribuam para um melhor discernimento dos humanos quanto à natureza mesma de sua existência, confirmando que são espíritos eternos temporariamente presos numa região de densa energia, concentrados em si mesmos por efeito das necessidades materiais prementes de cada hora, como, por exemplo, o fato de respirarem para se manterem vivos. E a quem se destinam as evidências de nossa participação direta sobre a matéria? A todos e a um em particular, qual seja, o nosso irmão Norberto, que, como já é de domínio público, solicitou uma comprovação da teoria através de um fenômeno parecido com o girar das mesas no tempo do Codificador. E quem terá emprestado os fluidos ou energias com que um nosso irmão da espiritualidade pôde arremeter os bólides com que atingiu tão flagrantemente o telhado desta casa? Foi a irmãzinha que agora está novamente a ceder sua especialidade mediúnica ao próprio atirador de projéteis, realizando desenhos em que expressa idéias perturbadas mas claríssimas a respeito das dificuldades por que está passando no momento. Tal oportunidade lhe está sendo dada pela cooperação com os espíritos de luz que permitiram que ele efetuasse a destruição das telhas. Quanto a cair projéteis sobre as pessoas, foi puro acidente, porque intenção não houve de ferir ninguém. E de assustar? De assustar, sim, de princípio, mas para causar um alvoroço capaz de propiciar às testemunhas e às vítimas a necessidade, mais do que a oportunidade, de meditarem a respeito da vida de além-túmulo. Creio ter-me restringido ao tema em evidência nesta sessão, para o que contei com o auxílio imprescindível de meus mestres e com o trabalho dedicado e lúcido de meu médium, que não me permitiu vacilar na transmissão de meus pensamentos, ainda que eu temesse não concluir à altura de uns e de outro. Peço a Deus que nos abençoe e a Jesus que estenda seu manto de amor sobre todo este planeta, que, conforme instam os espíritos atualmente em suas mensagens, está passando por uma crise muito violenta. Mas, confiando na misericórdia divina, iremos suplantar todas as dificuldades e chegar à pátria espiritual bem melhores do que quando partimos. Graças a Deus!”
O médico não acrescentou nenhum comentário, ciente de que suas palavras mereceriam certos encômios de preferência a críticas, como sempre.
Na verdade, os médiuns presentes se sentiram um pouco diminuídos pela facilidade com que a mensagem foi escrita. Mas não deram sinal nenhum, nem exterior, nem para os guias da espiritualidade, de que sentiam inveja ou ciúme. Ao contrário, deixaram bem claro que gostariam de estudar mais a respeito da mediunidade, tanto que até o fim a sessão de estudos foi dedicada aos fenômenos denominados de efeitos físicos.
Um dia, Norberto estava solto no centro espírita, aguardando Durvalina terminar seu atendimento médico habitual, quando se acercou dele uma senhora de aspecto bastante humilde que, passando-lhe um pequeno embrulho, disse:
— Meu neto me pediu pra lhe dar isto. Ele disse que aceitou o seu presente e que vai olhar sempre pra ele pra ver que sempre está na hora de praticar o bem.
Norberto teve a intuição clara do que se tratava, por isso, não fez questão de saber o que continha o pacote. Tentou puxar prosa com a senhora, mas esta, sorrindo bastante, foi saindo, que estava na hora de ir para casa.
Ninguém presenciara o episódio, mas Norberto procurou Jurandir para efetuar a abertura diante dele.
Encontrou-o entretido na arrumação dos livros da biblioteca que, por tanto tempo imobilizados, estavam precisando de que lhes fosse espanado o pó e avaliado o estado geral de conservação. Antes que Norberto abrisse a boca, o soldado foi dizendo:
— Veja só como este departamento de leitura é quase inútil. Faz dois meses que ninguém retira sequer um livro emprestado. No ano passado inteiro, foram dez empréstimos pra três pessoas apenas.
Mas o fiscal tentou atenuar o pessimismo das informações:
— Sabe o que acontece? Em geral, as pessoas preferem ter as obras em casa, por isso o centro vende muito mais do que faz circular os da biblioteca. Sempre que vem algum autor fazer uma palestra ou dar autógrafos, consegue vender algumas dezenas de títulos, ainda mais se são médiuns conhecidos.
Mas o soldado não estava satisfeito com a observação anterior:
— A minha reprimenda é pro povo em geral. Pro senhor e os seus amigos, não serve, porque vocês compram os livros. Serve pra mim, por exemplo, que, no intervalo de um ano, não li mais do que cinco livros. E eu sou dos que mais lêem.
Norberto insistiu em defender os freqüentadores:
— E você pensa que fora daqui o povo lê? Lê nada! Quando muito, algumas senhoras com tempo livre acabam comprando os romances mais leves, sem reflexões filosóficas sérias, com citações de passagens das obras mais importantes cujo teor moral seja capaz de fazer com que vertam algumas lágrimas de emoção. Então, qual o remédio? Forçar as pessoas a procurarem as escolas. Forçar os professores a pedirem trabalhos de pesquisa. Forçar o governo...
Jurandir interrompeu-o:
— Não vamos esperar muito dos outros, “Seu” Norberto, pra gente não ficar decepcionado.
— Quer ver uma coisa? Eu vim atrás de você pra lhe mostrar justamente o contrário do que você está dizendo. Está vendo este embrulho? Eu quero que você abra. Eu acabei de receber de uma senhora. Abra! Vamos!
Jurandir em três tempos pôs à mostra o conteúdo: uma aliança. Ficou boquiaberto:
— Será que é o que estou pensando?
— Eu não vi, mas acho que você vai achar o nome de Nelma gravado nela.
De fato, era a aliança que lhe fora roubada.
Norberto complementou:
— Você está vendo? Mesmo de onde a gente não tem como esperar coisa alguma, até dali vem a surpresa de uma atitude que indica forte melhoria espiritual. Deus está querendo que a gente aposte nele.
— Com certeza!
Quando Norberto, no dia seguinte, exibiu o troféu de sua conquista junto ao rapazelho que o ameaçara com as pedradas, Agripino lhe interrompeu os laivos de euforia, mostrando-lhe o outro lado da moeda:
— Não se sinta tão vitorioso quanto a ganhar para a senda do bem um pobre coitado em vias de ser apanhado nas redes da polícia. Está certo que esse ato tem seu mérito. Contudo, sabe aquele comerciante que tentou pegar o nosso Valdemar? Pois bem, caiu na esparrela de sonegar impostos, de falsificar notas fiscais e tudo o mais que você sabe. Está enquadrado e vai responder processo. Foi tudo muito bem documentado e até implantamos uma câmara, em resposta à armadilha que ele nos preparou. E agora? Você está acreditando mais nos seres humanos?
Agripino falava da boca para fora, apenas para provocar o marinheiro de primeira viagem, porque, no íntimo, se rejubilava até com o flagrante dado no comerciante desonesto, sabendo que esse era um meio que poderia ser aproveitado, por sentir-se envergonhado perante a família e a sociedade, para se regenerar, como, pensava ele, acontecera aos fiscais.
Contudo, Norberto se preocupou com outro aspecto:
— Será que ele não irá revidar, denunciando o Valdemar de novo?
— Se o fizer, evidentemente, teremos de nos defender da melhor maneira. Mas eu acredito que ele tente um acordo com o juiz, transformando a pena em multa, a qual irá pagar agora e depois descontar nos fregueses. Existe aquele ditado do malandro e da bronca.
Norberto completou:
— É verdade: malandro não bronqueia. Vamos confiar nisso para não nos embaraçarmos numa hora em que estamos sentindo no íntimo da alma a nossa transformação para melhor, como se estivéssemos começando a construir a nossa caminhada pela senda da verdade, conforme nos enfatizou Kardec, reiterando os ensinos de Jesus.
Agripino reparou na facilidade com que Norberto incorporou os dizeres doutrinários espíritas ao seu jargão lingüístico. Então, ponderou:
— Eu acho que você, não demora muito, irá substituir algum eventual palestrante faltoso e vai ganhar com isso o desejo de se desenvolver como orador. Eu, que faço as minhas palestras, sei reconhecer quando a pessoa está preparada para exercer cargos de responsabilidade. Você conhece a frase de Emmanuel: “Quando o trabalhador está preparado, o serviço aparece”?
Norberto já ouvira a frase mas não sabia de quem proviera. Não obstante, não entreteve a mente com essa informação, senão que levou bastante em consideração o que o chefe lhe disse, prometendo, intimamente, dar curso a essa possível tendência, caso sentisse que o plano espiritual lhe fomentasse os ensejos e lhe definisse com clareza que estava realmente em condições de assumir tal responsabilidade. Falara em transformação quase mecanicamente. Tinha de confirmar na prática.



27. EPISÓDIO FINAL

Um ano depois do primeiro beijo, com dois meses de grávida, Durvalina e Norberto consorciaram-se em matrimônio.
Naquele meio tempo, vários acontecimentos marcaram a vida de todas as personagens, mas seria inútil e cansativo repetir o que todo o mundo pode adivinhar facilmente. Fiquemos, pois, nas observações mais gerais, que os fatos em si mesmos não têm tanta importância, a não ser quando conjugados às causas e conseqüências.
Desse modo, o que de mais significativo ocorreu foi Norberto haver descoberto, no pequeno auditório do Amor Fraterno de Jesus, que podia prestar ponderável ajuda aos que têm maior dificuldade na leitura das obras de eminente cunho filosófico do Codificador Allan Kardec, explicando-lhes, de maneira simples, documentada e exemplificada, algumas passagens importantes, enfatizando os problemas da mediunidade e da existência de além-túmulo.
No dia das bodas, o centro espírita se encheu de luzes e flores para a festa em que se reuniram os familiares e amigos mais chegados. Evidentemente, houve alguns penetras de muitíssimo boa intenção, porque Durvalina era querida e respeitada. Desse modo, as dependências acabaram sendo pequenas para tanta gente, invadindo a multidão o pátio externo, onde se concentravam os comes e bebes.
Testemunharam perante o juiz de paz, pela noiva, Claudiomiro e Clotilde, homenagem ao centro espírita que os familiares dela compreenderam perfeitamente. Por Norberto, apresentaram-se Valdemar e Sofia, diante de certo estremecimento de Dona Neusa por ser a cerimônia no centro espírita e por não consignar as bênçãos de sua religião.
Antes do conjugo vobis oficial, coube a Agripino abrir a solenidade:
— Irmãos, companheiros de doutrina, senhoras e senhores de outros credos religiosos aqui presentes honrando-nos com sua harmoniosa vibração de amor e solidariedade, peço-lhes que, antes de me endereçar aos nubentes, possa eu falar um pouco desta festa em ambiente de muita reserva e respeito. É que não vamos executar aqui nenhum ato de cunho religioso, porque o espiritismo, como instituição fundamentada nos princípios de nosso mestre e mentor Allan Kardec, não abona os atos de exterioridade dos cultos religiosos, conforme se vêem nas igrejas e templos de outras crenças. Aqui, nós nos limitamos a rogar aos benfeitores da espiritualidade que nos iluminem, que nos amparem e nos guiem pela senda do amor de Jesus, por toda a nossa existência terrena, auxiliando-nos a vencer a nossa vida de provações e expiações, na expectativa de que o nosso desempenho possa transformá-la em uma benemérita excursão em prol de nossos companheiros de jornada. Fora da caridade não existe salvação: eis o nosso lema, a nossa divisa, a nossa bandeira. E é essa caridade que lutamos por incrustar em nosso coração, aplicando-a, discretamente, em todos os nossos atos de comunhão com os encarnados e com os espíritos no etéreo. Praticar o bem, pois, é o alvo de todo espírita convicto. Digo mais: é a meta maior de todo cristão digno desse nome. Isto posto, permitam-me discorrer a respeito do casal que aqui nos reuniu para nos congraçar em seu halo de felicidade e de amor.
A peroração levaria ainda mais quinze minutos, até encerrar-se através de um pai-nosso que, contrariando o hábito da casa, foi repetido por todos os presentes, numa vibração de muita simpatia e afeto pelos noivos.
Depois, como de praxe, o juiz de paz repetiu os dizeres tradicionais, unindo o casal perante a lei, expondo o orador seus votos de muita felicidade e de prosperidade afetiva e material.
Durvalina vestia-se com um tailleur de corte impecável, azul claro. Não trazia jóias ou enfeites, a não ser um pequeno broche de ouro imitando um galho de videira, com algumas folhas verdes e com um cacho incrustado de graciosos e rutilantes rubis. Esse mesmo adorno se repetia como presilha na gravata de Norberto.
Esse foi o jeito que os noivos arrumaram para chamarem a atenção dos presentes para a doutrina espírita, explicando-lhes que a jóia reproduzia um desenho que os espíritos forneceram a Kardec, e lá vinham as explicações sobre o que representavam a cepa, as folhas e o fruto, conforme se encontrava em O Livro dos Espíritos.
Dona Neusa convidou o Padre Tiago, mas este não se manifestou favorável a seu comparecimento ao centro espírita, porque poderia pegar mal. No entanto, oficiou uma missa em ação de graças pela saúde e pela paz de espírito de todos os habitantes daquela casa.
Quanto ao Padre Frederico, nem Sofia nem Valdemar sequer se lembraram dele.
Quem estava curioso para conhecer o prédio que tanto interesse despertara no filho, era Raul, que acompanhou Jurandir em uma visita a todas as salas. Viu a saleta da diretoria. Olhou com certa decepção para a biblioteca. Esticou um olhar de curiosidade para a sala designada como de reuniões mediúnicas e de estudos, mas não viu nada de mais além de uma lâmpada azul, na parede do fundo, naquele momento apagada. Imaginou que serviria para tornar o ambiente menos claro. Na parte do fundo, conheceu o departamento de assistência médica, um pobre consultório com uma cama alta para fazer as vezes da maca. Lá também havia uma pequena farmácia, com parcos remédios nas prateleiras. Destacado do corpo principal, havia uma edícula equipada com dois fogões, duas geladeiras e demais petrechos de uma cozinha, onde o tamanho das panelas e caldeirões demonstrava que não era pouca a quantidade de alimentos que ali se preparavam.
Se Raul estivesse esperando encontrar algum altar, teria ficado extremamente decepcionado. Mas o professor tinha seus conhecimentos teóricos, sabendo que as reuniões públicas ou privadas prescindiam de aparatos materiais.
Quando Beatriz chegou com a mãe, vinha de mãos dadas com um rapazelho alto e bem apessoado, dezoito anos no máximo, tez puxando para um moreno claro, mistura de negro e de branco de belo resultado. Mais alguns anos e se teria a impressão de um modelo das passarelas da alta costura. Ninguém o conhecia, de modo que Beatriz precisava apresentá-lo a cada um dos presentes.
Quando chegou a vez dos noivos, a mocinha, com desembaraço, designou-o pelo nome:
— Seu Norberto, este é Cláudio, meu colega de escola.
— Prazer!
— Senhor, desejo-lhe muitas felicidades neste passo importante de sua vida. Espero em Deus que todos os seus sonhos se realizem.
Norberto olhava para o belo espécime humano, hesitando em oferecer-lhe uma resposta à altura do cumprimento. Mas, enfim, percebendo a naturalidade com que o jovem casal sorria para ele, resolveu agradecer:
— Muito obrigado, meu filho. Essa mesma felicidade espero que Jesus conceda à sua família. Aliás, eu quero pedir-lhe um favor muito especial. Eu quero que você tome conta da nossa Beatriz e dê a ela uma vida venturosa e alegre, nunca se esquecendo de que todos nós temos uma luta para enfrentar, antes de ganharmos o reino do Senhor.
Como a fila se estendia, não deu tempo para mais nada e logo estava o noivo abraçando a jovenzinha, apertando-a ao coração, como a confirmar as palavras que ela havia sorvido em completo enlevo.
Dez pessoas depois, apresentou-se outro jovem, também moreno, de pele mais escura, que estendeu a mão a Norberto, sem dizer palavra, a não ser um quase inaudível muito obrigado.
Norberto puxou pela memória e conseguiu reconhecer, naqueles trajos domingueiros, os olhos que um dia viu no fundo de uma viatura policial. Sem dúvida, algo de bom resultara de sua atitude de desprendimento material em favor de um voto de confiança.
Prendeu a mão do rapaz na sua e devolveu-lhe o muito obrigado, quase no mesmo tom.
Não por coincidência, Jurandir foi o seguinte a trazer seus cumprimentos aos noivos.
— Parabéns, Seu Norberto. Desejo-lhes muita felicidade. Quando vamos tê-los de volta?
— Dentro de quinze dias.
E em voz baixa:
— Como vai indo o moço aí?
— Está empregado e cuidando da avó. Ele fez questão de comparecer e de trazer um presente. É um relógio de parede, modesto, mas você sabe que as horas pra ele têm uma importância muito grande.
Mas não puderam ir além disso porque, furando a fila, chegava Dona Neusa, com o neto no colo, querendo que o pai festejasse o acontecimento também com o filho:
— Meu filho, meu filho, parabéns! Você não sabe a alegria que me dá constituindo uma nova família, com uma mulher tão culta. O Júnior queria vir com você e eu não consegui segurá-lo. Fique com ele um pouco.
Disse e largou o menino nos braços do pai. Mas Raul, que os acompanhava, trazia um brinquedinho para entreter o neto, que logo se deixou levar pelo avô, assim que este abraçou o filho demoradamente, sem palavras.

Na espiritualidade, Glauco e Etelvino, inseparáveis, a tudo observavam muito curiosos, a confirmar as tendências psicológicas que haviam decifrado no âmago de cada pessoa ali presente.
Haviam acompanhado Nelma, que manifestara o desejo de abençoar os nubentes e de beijar carinhosamente o filho, que um dia teve sobre o seio. Mas Adélcio, por ordem dos mentores da colônia em que estagiava o espírito da jovem mãe, a levou logo embora, para que as reminiscências de sua infelicidade não lhe toldassem a lucidez que ia adquirindo, quanto a dominar intelectualmente as leis universais, que facultam às criaturas o seu progresso.
Dizia Glauco:
— Eu acho que está na hora de levarmos Valdemar a experimentar mais uma tentação, a ver se consegue vencer a tendência por ora sufocada de enriquecer ilicitamente.
Retrucava Etelvino:
— Eu acho que ele está contaminado pela felicidade do amigo. O que me parece mais justo é estimular Sofia a que lhe proponha um filho. Quem sabe a responsabilidade em educar uma criança o faça refletir sobre o que tem lido nas obras espíritas.
— Mas, querido amigo, caso ele vença o desafio, não ficará bem mais fácil...
— E se não vencer, caso não esteja devidamente aparelhado moralmente?
— Aí sobra pra nós.
— Não é verdade?
— Então, Etelvino, vamos optar por uma situação não muito tensa. Vamos incitar o Padre Frederico a que visite o casal para filar a bóia no domingo.
— Filar a bóia? Essa é da carochinha, que já ouvi carrocinha. Você acredita neste tipo de transformação da linguagem, que perde as raízes do entendimento primitivo?
— Ué? Se nós mesmos o que mais pretendemos é transformarmo-nos? Não é essa uma lei natural, ou seja, a lei do progresso, da evolução?
— Desde que não se percam os valores reais do passado, aqueles que nos fazem aceitar a realidade em sua mais pura e digna configuração, frente às verdades eternas.
— Você acaba de definir toda uma filosofia existencial. Mas, como sempre, eu me curvo diante de sua inteligência e digo que concordo integralmente com o que você disse.
— Agradeçamos ao Pai o fato de que, pelo menos nesta comunidade em que atuamos, as pessoas estão adquirindo consciência da permanência dos valores fundamentados nos princípios cristãos incrustados na doutrina dos espíritos.
— Graças a Deus!
— Graças a Deus!

Logo após os cumprimentos, os recém-casados tiveram um momento a sós numa saleta reservada, onde havia um sofá e alguns petiscos e refrigerantes.
Uma vez lá dentro, Clotilde se pôs de vigia do lado de fora. Foi quando teve um momento de folga, porque era quem cuidava da tarefa de distribuir os convidados e de orientar o serviço de copa. Porta fechada, Tomás se aproximou da médium e se puseram a conversar a respeito dos usos e costumes dos respectivos centros espíritas.
Do lado de dentro, Durvalina e Norberto abraçaram-se com ternura, inibidos para a troca de mais carícias, que o ambiente era sagrado e eles o respeitavam. A noiva aproveitou para desapertar o cinto, dando espaço ao minúsculo ser que tinha no ventre, tirando também os sapatos, cujos saltos na moda a faziam seis centímetros mais alta.
Norberto afrouxou o nó da gravata, encheu duas taças com refrigerante e ambos ergueram o primeiro brinde de sua vida conjugal:
— À sua felicidade, querida. Que tudo em nossa vida seja um mar de rosas, como está sendo esta festiva cerimônia, onde muita coisa bonita está ocorrendo.
— À nossa bem-aventurança eterna, meu amor, que vamos velar em conjunto para que nossos filhos cresçam numa sociedade que lhes dê oportunidade de aprender tudo que seja possível, para fazê-los progredir sem cessar.
Sendo já tão íntimos, não necessitavam ficar com muitos cuidados, de modo que puderam relaxar, sem que a presença do outro causasse ansiedade ou desconforto, como geralmente acontece aos nubentes com menos experiência de vida em comum.
Quinze minutos depois, recompostos, Durvalina com a maquilagem refeita, que as lágrimas haviam prejudicado, saíram para a última fase da festa. Sendo assim, percorreram todo o salão, indo de mesa em mesa, dando um dedo de prosa com todos os convidados, emocionando-se com tantos sinais de amizade e de afeto.
Numa das mesas do fundo, José Carlos, Claudiomiro, Agripino e Valdemar tratavam de algo em que se compenetravam com muita seriedade, quando o casal chegou.
Durvalina foi logo observando:
— Que é que os traz tão sisudos? Agora não é hora de discutir Kardec. O Mestre haverá de compreender.
Logo Agripino foi expondo:
— Não foram poucas as vezes que o Codificador da doutrina espírita foi homenageado com banquetes regados com muitos discursos, como era o hábito no tempo dele. E quase sempre, pelo que li, essas reuniões festivas se davam nos recintos em que, em tempos normais, se faziam as sessões mediúnicas e de estudos, como aqui.
Norberto, no entanto, queria desvendar o mistério do tema em pauta:
— Sobre o que vocês se debruçavam com tanto interesse?
Valdemar explicou:
— Eu estava contando a eles que recebi três respostas negativas das editoras a respeito de divulgar em livro os acontecimentos em sua casa. Uma delas foi explícita ao dizer que havia pouco interesse em algo que havia cessado. Se as coisas se repetissem e as investigações tivessem tido outros desdobramentos mais sensacionais, além de uma reunião em sua casa em que tudo se esclareceu, se a médium dos desenhos ainda estivesse produzindo suas obras, até que eles poderiam estudar a questão. Eu soube também que uma revista consultou o repórter que publicou as fotos das pedras voando, mas, quando eu liguei pra lá, desconversaram, dizendo que o assunto havia perdido o interesse.
José Carlos acrescentou:
— Então, nós estávamos vendo a possibilidade de a gente mesmo montar o livro com as ilustrações mais impressionantes, nada muito extenso, porque nós iríamos arcar com as despesas da edição, quando vocês chegaram.
Agripino, que havia pedido a palavra, tirou proveito da pausa do amigo, e expôs sua idéia:
— Eu estou de acordo com tudo, menos com publicar sem consultarmos as pessoas mais importantes do espiritismo, as que se encontram nas federações ou que escrevem nos periódicos, porque essas pessoas têm ascendência sobre a opinião dos espíritas, determinando, mais ou menos, o que eles podem ou não podem ler. Claro que nem eu, nem o Claudiomiro estamos de acordo com essa restrição através do poder de quem está por cima, no entanto, não podemos arriscar uma verba que desviaríamos da assistência aos carentes de nossas comunidades. Se der certo, muito bem, o lucro será aplicado para eles mesmos, mas, se fracassarmos, teremos de amargar uma decepção moral além de física.
Durvalina, porém, não queria ver ninguém tratando de coisas tão sérias e arrastou Claudiomiro até o pequeno estrado que representava o palco:
— Vamos, lá, padrinho. Está na hora de cortar o bolo.
José Carlos levantou-se, puxando Valdemar pelo braço:
— Preparei uma surpresa para este momento. Venha comigo.
Deram a volta pelo lado de fora, saindo pela porta principal e chegaram nos fundos, onde vários músicos aguardavam o momento de entrar em cena.
Justamente quando Claudiomiro desligou o aparelho de som, deixando Debussy e Brahms de lado, estando Norberto e esposa atrás do bolo de noiva, José Carlos fez com que os cinco elementos de uma orquestra de cordas entrassem alegremente, ao som do primeiro violino, indo tomar lugar à frente da mesa principal, dando início a um curto concerto de músicas eruditas.
Isso fez a alegria da criançada, que logo se postou à frente dos demais convidados, achando um meio de se sentarem no chão mesmo, encantados todos com a performance dos professores.
Após bisarem duas melodias, retiraram-se os músicos debaixo dos aplausos da platéia, enquanto se desfazia de novo a maquilagem da noiva.
Foi a vez de Claudiomiro pedir silêncio para a solenidade da despedida aos que iam para a lua-de-mel, solenidade que começaria com o estouro de várias garrafas de um espumante de pêssego italiano, providência indispensável para se manter o sagrado ambiente fora do circuito da atmosfera alienante dos alcoólicos.
Deram-se os brindes de praxe, foram os pais dos noivos saudados, ouviu-se uma valsa gravada para o momento do baile, que se limitou a uma pose dos noivos e dos padrinhos para as fotos e os vídeos, já que ninguém imaginava transformar aquele templo em salão de folguedos profanos.
O bolo foi partido e repartido e, vinte minutos depois, após as despedidas e recomendações habituais, com um choro sentido do Júnior, meio assustado com o atropelo dos festivos vivas, com as lágrimas de Dona Neusa e os sentimentos afetuosos de Raul e dos pais da noiva, Durvalina e Norberto subiram em seu veículo, sendo levados por Valdemar e Sofia para o aeroporto, de onde seguiriam num avião de carreira para a Argentina.

Nós suspendemos aqui a narração destes acontecimentos, uns muito comuns, outros raríssimos, na esperança de encontrar no espírito dos leitores fértil simpatia e a decisão de meditar a respeito dos temas que interessaram sobremodo às nossas personagens. Para tanto, rogamos ao Senhor que os inspire e proteja em suas incursões filosóficas, científicas e religiosas doutrina dos espíritos adentro.
Deus esteja com nós todos!



FIM.


Indaiatuba, 03 de março a 05 de maio de 1999.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui