O encontro com Glorinha foi o mais discreto possível. Sem carro, porque o que havia blindado compôs entre os bens arrestados, Juvenal deslocou-se de táxi, mantendo-se dentro do veículo até receber a namorada.
Não se beijaram, dando-se um simples abraço, sem juras nem protestos de amor. Não se estranharam, porém, como se todos os seus sentimentos se houvessem resumido numa forte amizade.
— Querido, eu vou com meu carro até dez quadras daqui. Você me segue e lá eu o apanho. Certo?
— Perfeito.
Realmente, Glorinha dirigiu seu moderno veículo, até o local combinado e ali Juvenal desceu do táxi, acomodando-se ao lado da moça.
Foi ela logo estipulando:
— Se você não se incomodar, tenho de passar por um estúdio fotográfico para uma sessão de fotos marcada desde a semana passada.
— Tudo bem.
Enquanto falava, Glorinha demonstrava pleno domínio de direção no trânsito intenso:
— Eu sei que é muito “chato” deixar você esperando, depois de todo este tempo. Acontece que você apareceu de repente. Se tivesse avisado antes...
— Glorinha, o que eu aprendi melhor durante estes dois anos foi ter paciência. Se você não estiver sentindo-se mal a meu lado...
Não concluiu. A jovem interrompeu-o, com a voz alterada pela emoção do que ia dizer:
— Eu quero que o nosso relacionamento dê certo. Enquanto você aprendia a ter paciência, eu senti a necessidade de vencer todos os meus piores defeitos. Eu sei que nós falamos de tantas coisas, mas deixamos de lado os preconceitos mais profundos, aqueles que minha tia ainda nutre porque não admite que pessoas com tão graves crimes possam viver uma vida sem culpa, no meio da sociedade dos “honestos”. Seu arrependimento se fundamentou numa aprendizagem terrível, através da compreensão de que foi sua irmã quem falou através de minha voz. Isto será inesquecível e só podemos agradecer aos benfeitores espirituais. No entanto, quem não ficaria preocupado com o futuro, uma vez que você tem de tomar remédio pelo resto da vida? E se os ataques voltarem? E se você tiver uma recaída? São questões obrigatórias que discutimos no centro com Ricardo e Elvira. Nós dois conversávamos e você se manifestava sempre com muita prudência e ponderação. Mas estas coisas são assim mesmo, quando as pessoas estão longe dos problemas do dia-a-dia provocados pelas pessoas. Como você reagirá se ouvir alguém chamá-lo de assassino, de parricida? Esta é uma prova pela qual teremos de passar. Mas você vai sempre poder contar comigo, porque estarei a seu lado. O que me leva a tamanha confiança? O fato de que a sua recuperação não depende dos anos que ficaria na cadeia, cumprindo uma pena que, para ser justa, deveria ser para toda a vida, de prisão perpétua.
— Em muitos países, eu teria sido executado: cadeira elétrica, corda ou cimitarra no pescoço, veneno nas veias...
— Você está entendo perfeitamente o que estou falando.
— O que estou entendendo é que você não está transbordando de paixão por mim. E eu posso dizer que também não estou por você. Mas sinto uma forte atração e um desejo imenso de ficarmos juntos, porque você está revelando um lado de sua personalidade que eu não conhecia.
— Dois anos de separação levam qualquer um a pensar seriamente em todos os fatores que uniram o casal, ainda mais que nós não tivemos nenhum momento mais íntimo. Eu aprendi a tratar das emoções convivendo com pessoas profissionais altamente qualificados. Na televisão, tudo é muito bem pesado e sopesado. Nada se deixa ao acaso. Quando muito, são feitos programas-pilotos que são examinados minuciosamente quanto à possibilidade de fazerem sucesso junto aos telespectadores.
— Você está propondo que a gente se conheça melhor antes de assumir um compromisso sério?
— O que você considera um compromisso sério?
— A promessa de uma vida em comum.
— Nada de casamento?
— Casamento é a configuração da jura de amor...
— Muito embora seja tão fácil divorciar-se, como vejo acontecendo com muitos artistas e pessoas de todos níveis sociais e culturais.
— Sinto que você meditou muito nas palavras que ia dizer para mim. Eu só posso ficar agradecido, porque está sendo muito sincera.
— Há dois anos atrás, se você me levasse para qualquer lugar, eu iria de olhos fechados, tanto que havia abandonado o emprego. Hoje, a minha perspectiva de vida inclui um futuro de realizações também no campo profissional. Não é à toa que estou preparadíssima para entrar na faculdade.
— Pois eu também estou muito preocupado com meu futuro acadêmico.
— O seu plano de fazer Direito está de pé?
— Eu acho que vou seguir minha tendência atávica, se é que você me compreende.
— Você quer dizer que a jurisprudência corre por suas veias?
— Para não ter de citar minha herança de família, já que meu pai e meu tio...
— Você não sente nada quando fala de seu pai?
— Claro que sinto. Mas, no começo, sentia muito mais. Agora sei que, se não tiver pago com meu sofrimento o sangue que derramei, a justiça de Deus me alcançará de qualquer maneira, aqui ou na erraticidade. Eu também meditei muito, lendo inúmeras obras e conversando virtualmente pela Internet com muitos religiosos e pessoas gradas do Espiritismo. Meu passado foi um grande...
— Desperdício de energia...
— Isso mesmo. Eu ia dizer que foi um grande equívoco, porque eu refleti que tinha inteligência e capacidade para evitar todos os atos de maldade, contornando os problemas psíquicos e físicos. Mas estava muito longe de entender a sua moralidade e as suas conseqüências perante as leis universais. Eu achava que era capaz de superar todos os problemas. Hoje, como você disse a respeito de seus projetos para o futuro, eu amadureci e sou capaz de antever a necessidade de uma vida muito mais virtuosa, ou não suplantarei as dificuldades que eu mesmo criei.
— Como foi sua conversa com seu tio?
— Diferente da que imaginei. Primeiro pensei que nem iria ser recebido. Depois me pareceu que ele ia perdoar-me inteiramente. Agora eu acho que ele vai se afastar de mim para o resto da vida. Eis um vínculo a ser reatado no além-túmulo.
Nesse momento, Glorinha entrou no estacionamento do prédio, parando o carro numa vaga que lhe fora reservada.
— Temos ainda alguns minutos.
Hesitante, Juvenal fez menção de pegar a mão da moça. Surpreendentemente, ela o enlaçou e o beijou demoradamente, inebriando-o com seu perfume e com o arfar de seu peito.
Aqueles minutos se passaram em meio a carinhos e afagos que os excitaram amorosamente. Reatavam as sensações físicas amortecidas pelo racionalismo intelectualizado do exame frio de seu bem-querer. Pareceu a ambos que nunca haviam deixado de amar-se.
Naquele dia, Glorinha assumiu, extra-oficialmente, o papel de responsável pela administração do apartamento e pela felicidade de Juvenal.
