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Contos-->Mas Não Há o Destino! -- 01/09/2003 - 07:02 (MARIA PETRONILHO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não consigo neste período encaixar os factos no tempo.
Mas depois de o meu pai ter escrito inúmeras petições dizendo que minha mãe padecia de uma doença incurável, acabámos por ir viver para Coimbra, a terra dos doutores... último restinho de esperança.
Muito pouco tempo tinha vivido com a minha mãe e, sobretudo, com ela e o meu pai.
Nas minhas andanças, fui criada um pouco com a minha avó materna, a minha mãe, o meu pai, a tia Amélia, as tias-avós...
A vida mudava radicalmente de cada vez que me mudavam de uma para outra casa: ora estava na cidade, ora estava no campo. Ora as coisas deveriam ser de uma maneira, ora ao contrário.
Ninguém se afeiçoou à incómoda criança que era um fardo a transportar de um lado para o outro, conformne as disponibilidades de cada um.
Em Coimbra, porém, as coisas corriam de melhor feição.
Minha mãe já estava farta de correr médicos e cada dia estava pior.
Apenas vinha a mulher-a-dias limpar a casa e passar a ferro.
Era eu que ajudava em tudo porque o inchaço que afligia e deformava minha mãe, da cintura para baixo, não a dobrar-se.
Entre corridas, as explicações de quanta água deitaria na panela; subia ao caixote para esfarripar as couves, tirava uma dedada de manteiga entretanto, e lá ia receber mais ordens ao quarto. A mãe levanta-se com um cuidado infinito e vinha colocar o almoço sobre o fogareiro de petróleo, que nestas alturas encravava... e agora?! Qual de nós teria força para dar à bomba, que avivasse a chama?
A tragédia que era cozinhar arroz! Ora ficava aguado ora se pegava ao fundo, a "cheirar a bispo"!
Depois num alguidar no chão da cozinha, diluíam-se na água quente umas raspinhas de sabão que vinham numas caixas parecidas com as dos fósforos, o trapo depressa passava de esfregão a boneca... e eu perdia-me durante horas naquela tarefa, que prolongava o mais que podia.
Começavam a abrir-se chagas nas pernas dela, que não se queixava, e um líquido escorria.
Sentava-se na beira da cama.
Eu, no chão, ia molhando um pano limpo num alguidar com água morna, e lavava aquelas feridas, enfaixava com ligaduras as pobres pernas reluzentes e disformes.
Eram momentos de uma silênciosa intimidade - até que um dia o meu pai chegou e nos viu.
Desatou a gritar, vociferando veneno como era o seu jeito, que aquilo não era trabalho que eu fuzesse; podia ser contagioso....mas quem o faria, se ele se alheava?!
A tarefa seguinte: ler o jornal diário, o Primeiro de Janeiro - ainda lembro os bonecos dos anúncios: o sr zig-zag, que tinha cabelo de lâmpada e corpo de raio apressado em acendê-la, e os cabeçudos - anuncios em que o descomunal tamenho das cabeças em relação aos desenhos dos corpos me divertia muito
Havia discussões: o meu pai nunca soube ter compaixão de ninguém e a minha mãe tornava-se impaciente com a doença.
Foi então para casa da mãe dela, de onde não mais voltou. Não me lembro se fui com ela, mas lá nos encontrámos para juntas vivermos os seus últimos dias.
A partir do outono desse ano, minha mãe não mais se levantou de uma cadeira de rodas, ao canto da lareira, nem mesmo para dormir.
Tinham tirado uma rodela do fundo e colocado um balde por baixo.
Depois de desenganda por todos os médicos, correu todos os curandeiros - estava perdida; estava por tudo.
Pouco falava. Mas cantava - cantava com uma voz tão linda que vinham pessoas de muito longe escutá-la.
Às noites, em volta da brazeira de cobre reluzente, lia... lia histórias maravilhosas que se passavam em países longínquos e eu imaginava ver quanto encutava: por cada palavra uma imagem nova surgia ante meus olhos curiosos de criança.
Íamos fazendo bolachas A forma de ferro aquecida nas brasas: talagarças, com sabor a raspa de laranja, quentinhas e estaladiças.
Passei todo esse inverno aos pés dela - os outros iam cuidar das suas vidas, para as hortas; iam para longe colher a azeitona; podar as árvores e as vinhas.
Era meu dever chegar-lhe um copo de água, uma coisa ou outra que necessitesse - ela fazia rendas intermináveis, tirava amostras de novos modelos, bordava o seu infindável enxoval - com pontos de ajur, que me ensinava, baínhas abertas e muitas letras entrançadas - um A e um M em lençoís que nuca viriam a ser estreados - ou se o foram, sabe-se lá que iniciais teriam os nomes de quem se deitou naqueles linhos!
Eu descia a escada, as galinhas esgaravatavam livres no terreiro, algumas com bandos de pintainhos atrás.
Corria - corria de braços abertos se o vento fosse tão forte que quase me levantava...
- Anda cá, sua cadela!
O meu voo parava e eu, de cabeça baixa, ia...escutava todas as injúrias calada; nos ombros débeis desabava toda a revolta contida.
Havia ainda a minha bisavó - sempre a conheci com mais de noventa anos. Andava curvada, lábio pendente, blusa com folhos atrás, encostada à pesada bengala. Forte. Rude. Habituada a mandar toda vida.
Arengava, arengava... e o melhor era passar de longe, porque a maldita bengala por nada se levantava e zurzia.
Se lograsse esgueirar-me, à menor distração minha, estendia as manápulas e cravava-me unhadas na carne, que infectava.
Mas se estava de boa maré, contava interminávelmente e história da família, desde tempos imemoriais, desde o tempo de reis muito antigos e falava das juntas de bois, das queijarias, das criadas e do criado que o touro quase matara no cabanal.
...E que, no dia em que proclamaram a Républica saíra ao terreiro, todo contente, com a braguilha abotoada no traseiro!
Chegou a primavera, a mais linda de todas as que já vi: a mais florida, a mais poética, a mais morna e a mais fresca.
No dia primeiro de abril a minha mãe completara vinte e seis anos - passou despercebida a data - como passavam todas as datas de festa, que festas haveria?
Havia a matança e havia uma altura em se que fritavam filhós num grande caldeirão de cobre e se ia à missa do galo. Havia o dia em que o padre passava a dar o Menino Jesus a beijar, de casa em casa, onde se arrmava um altar coberto de toalhas e rendas brancas e bolinhos e acepipes e vinhos doces que o sacristão, de opa, carregava para a paróquia.
Minha mãe nos últimos tempos dormitava, dormitava... as jugulares do seu pescoço tão azuis na brancura da sua pele fina , fluíam e refluíam devagarinho.
Haviam-lhe colocado sanguessugas nas penas - mas as pernas não desincharam, as sanguessugas porém fartaram-se até se despegarem e irem de novo para o pote de barro onde se guardavam.
Às vezes o médico passava por lá e via as duas: avó e neta
- "ai se pudesse mudar-se o coração da velha para o peito da nova", dizia ele... abanava a cabeça e lá ia, nem sequer se lembrando ou que alguém lhe lembrasse que havia ali uma menina pequena, desesperada com dores de ouvidos, com diarreias, com males de toda a ordem, uma menina que tão lentamente crescia mas ninguém reparava. Interessava lá se crecia! Tinha uma missão: se vires a tua mãe morta, corre a avisar a gente, antes dos vizinhos darem conta!
De súbito minha mãe pareceu acordar de um qualquer sonho: encomendou um novo missal ao padre, confessou-se e comungou.
Depois recaiu naquela sonolência, cabeça inclinada, as mãos sobre o colo da saia aos quadrados pretos e brancos, de chita franzida - ela que tinha sido das meninas mais bem-vestidas e enfeitadas, que nunca repetia uma toilete fosse aonde fosse, tinha agora duas saias franzidas de quadrados pretos e brancos!
Os seus lindos sapatos de saltos muito altos alinhavam-se no palheiro havia muito tempo.
No dia seis ficou engasgada, como se algo se lhe entravasse na garganta quando respirava. Vieram todos as velhas da aldeia, encapuçadas nos lenços pretos puxados por cima dos olhos, de lábios apertados - assim entravam, assim saiam, abanando a cabeça de um lado para o outro.
Havia muitos meses que não se deitava. O corpo tinha tomado a forma da cadeira, as pernas imobilizadas em ângulo recto.
Perguntaram-lhe
- queres deitar-te esta noite, Alice?
- Tanto me faz, respondeu, rouca.
Levantaram-na, a avó de um lado, a Henriqueta do outro, lá a arrastaram para a divisão contígua e depuseram o seu corpo disforme sob o lençol. Eu aconcheguei-me a seu lado, a mãe dela do outro, a Henriqueta dormiu também naquele quarto.
Passei a noite a escutar aquela respiração com um farfalhar alto por muito tempo. Pediu uma pastilha para chupar. Deram-lha. Senti-me a adormecer.
No escuro, um múrmurio: vou-me embora, vou-me embora....
Perguntaram-lhe se queria despedir-se do marido ou de mim
- não vale a pena, disse ela... vou-me embora.
De repente acenderam todas as luzes. Eu não tinha percebido que ela deixara de viver. Foi então que a minha avó desatou aos gritos e mandou a Henriqueta tirar todos os espelhos e quadros das paredes,
desimpedir a sala da frente, ir buscar as roupas de luto pesado que estavam prontas há tempo, esperando na arca.
Perguntei, confusa:
- Mas o que é que aconteceu?
- A tua mãe morreu, já não tens mãe - foi só o que me disseram.
Apanhada de surpresa, num relance entendi que não tinho sido um sonho ... nem chorei nem gritei - numa semi consciência, pus as mãos em frente ao peito, andava entre uma e outra sala murmurando "ai Jesus, ai Jesus! como se nada mais soubesse, como se estivesse muito longe do burburinho que acontecia à minha volta.
Era madrugada, mas as mulheres foram entrando, mexiam roupas, moviam tudo de um lado para o outro, murmuravam, murmuravam, negras como corvos.
Encolhi-me num canto e irrompi num choro convulsivo, que durou muito.

A minha mãe foi despida e lavada, vestiram-lhe o vestido de noiva, colocaram-na sobre um colchão na sala de entrada, os pés virados para a porta. Telegrafaram ao meu pai e esperava-se que chegasse de Coimbra a urna funerária.
Pentearam-lhe os cabelos soltos dos dois lados do rosto.
Encheram-na de algodão em rama temendo que "rebentasse".
Chegaram flores e flores: lírios, rosas e espinheiros brancos cobriam-na toda.
De onde vinha tanta gente e tanta flor?
Acocorei-me junto dela, calada, tão perto quanto pude.
.... Falavam baixo, contavam, contavam....
A urna lavrada chegou, mas eis que os joelhos não permitiam que se fechasse a tampa.
Diz a tia Glória:
- então, vai-se buscar um martelo e partem-se-lhe os joelhos.
Ai o que eu escutei!
Deito-me sobre o corpo gelado aos gritos de Não! Não! Não! A minha mãe é minha! Não!
O funeral foi no dia seginte pela manhã:
não couberam todas as flores, que cobriam o caixão.
levaram-na em ombros pela montanha acima, a aldeia inteira atrás, caminhando por sobre os verdes musgos, parecia uma festa, tudo verde e perfumado, a cadência dos passos pesados; o múrmurio das oraçãoes - e eu pequena observa tudo aquilo como se irreal fosse, mas muito, muito lindo!
Na Igreja Matriz, colocaram o caixão aberto na coxia central, entre quantro círios, um ramo de oliveira sobre um prato de água benta ao fundo.
Alguém vinha de vez em quando aspergi-la.
E decorreu a missa de corpo presente, pela voz monótona do padre que a casara e me batizara e tudo fazia e dizia com a mesma indiferença.
De novo se refez o cortejo, pelas ruelas da vila: encheram de moedas o regaço do meu vestido preto, para que as distribuísse às mãos cheias pelos que as esperavam à porta.
No canto do cemitério, encostado ao muro do lado direito, estava aberta a cova.
O caixão foi colocada ao lado e aberto de novo, para que a bejasse pela última vez.
As cordas que desciam foram subidas e um homem saltou para dentro com a pá ... não percebi nem perguntei.
Cobriram tudo dequela terra negra e por fim moveram uma rocha talhada de granito, gravados os dizeres: Aqui jaz Alice de Jesus Gouveia Petronilho
1932-1958

De volta, deambulava por entre os grpos que conversam no adro da igreja, e que oiço?!
- então tiraram a Alice de lá outra vez...
Corro a sorrir de esperança
- diga-me onde ela está!
Pensei que ela não estava morta ou que fora um terrível engano, um pesadelo, que ia voltar tudo a ser como era dois dias antes... ao menos como dois dias antes!
Não.
... O caixão não coubera na cova, daí aquele repuxar das cordas e o homem com a pá, escavando dos lados, alargando o coval.


Durante muito tempo sempre que subia as escadas julgava encontrar lá em cima a minha mãe na cadeira de rodas, a dormitar - mas ao ver o espaço vazio, deitava-me no chão e chorava amargamente.
Andava horrozada. Na noite a seguir ao funeral sonhara com as mãos dela, decepadas, brancas, de uma brancura que resplandecia, sobre um prato, no fundo de uma cabana de pastor. Todos os pormenores: as unhas longas, muito tratadas e polidas, e minha mãe, por trás daquela oferta da única parte do seu corpo que sempre pudera mover, embelezar, utilizar, sorria.
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