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Contos-->Sabugo -- 28/08/2003 - 18:28 (FLAVIO DOS SANTOS FERREIRA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SABUGO


I


A mania de ir à janela só agora eu percebi.
Fui seis vezes hoje espiar uma paisagem que nunca apreciei, pois, do décimo andar, a visão é sempre de prédios mais altos ao lado e o céu escovado ultimamente por nuvens escuras. A distância entre a calçada lá embaixo até onde estou parece não medir bem a inquietação que me tomou de dois dias para cá. A conversa com o vice-chefe que vejo de relance em outra sala realmente não me fez bem, tem-me feito doer à cabeça sem aspirina nenhuma fazer efeito. Não é só a medicação errada que faz mal, mas também expressar com modéstia faz mal. Nenhum índio hoje se expressa com modéstia. Então por que eu não utilizei da arma desse povo do qual, segundo palavras de minha mãe, eu descendo? Se eu tivesse batido a mão no arrogante, certamente ele não estaria rindo à vontade como faz agora com o diretor-geral.
Pois erraram. Ninguém pode usar e expor o nome de alguém de maneira pejorativa. Ninguém pode me chamar de Pequeno só porque eu não tenho a altura de um modelo. Eles devem me chamar de Pequeno porque este é o meu...
— Este é o quê? perguntou um homem, de feição um tanto sombria, me assustando.
— Meu nome.
— Ainda sobre o nome?
A pergunta dele me assustou, pois eu não o conhecia e nunca o tinha visto; perguntei quem era, ele respondeu-me que era empregado da firma. Trabalhava ali há mais de cinco anos. Não se enturmava com o grupo porque preferia o silêncio. Mesmo assim, estava entre aqueles na festa de aniversário da namorada do vice-chefe.
— O veneno do vice-chefe é perigoso – disse-me ele bem sério –, pois destrói a pretensão da afirmação de qualquer um.
— Por que me fala justamente agora? Se achou absurda a atitude dele, não acha que seus pêsames vieram tarde demais?
— É que também ele jogou meu brio lá embaixo.
— Não me diga!
— Ele convenceu a todo mundo que fui o responsável por um bilhete - uma declaração de amor com palavras chulas – a uma garota que aceita ser brinquedo do infeliz. A precipitada acreditou, bem como o diretor-geral e os outros empregados. Desde então não tenho boas relações com o indivíduo. Ele não me colocou fora porque, pelo que fiquei sabendo, não encontrara alguém tão competente quanto eu para a programação visual. Nem também encontrei um emprego melhor. Gente assim é jogar no bolso, só tirá-lo na última carta. Infelizmente, ele fez o mesmo com você. Eu acho que o espertinho se aproveita da pinta de galã de olhos azuis, como ouço das mulheres aqui, para pisar nos adversários. O escorpião sabe utilizar bem das armas de que dispõe. Ele viu que você é um adversário de pouco valor, mas é um adversário. Pessoas assim merecem ser descartas logo, é o que ele deve pensar.
As revelações do desconhecido me trouxeram mais ódio contra a figura da mesa oval. Por outro lado, minhas pupilas brilharam quando ouvi revelações, semelhantes as que se passavam na minha mente, na boca de alguém. Duas vítimas não mortas são armas ainda vivas, pensei.
Antes de bater a porta, ele disse que tinha encontrado a revide. Se eu estivesse interessado, eu devia procurá-lo na saída.

II

A revide de Sabugo (nome de alguém em seu estado mais bruto), ditas sob um tempo muito frio, me atraiu.
— Não se deve ter pena; assim que aparecer, é você empurrar o todo-poderoso quando ele estiver passando sobre a escada que dá acesso ao escritório dele. Nem ele nem a secretária vão te ver, pois, do lado, tem uma porta de incêndio que leva a outras saídas. Ele jamais vai se recuperar de uma contusão do joelho que sempre reclama. Todos sabem do problema porque o falastrão faz questão de dizer que é craque de futebol. A próxima novidade que ele contará é que vai trocar as duas pernas por quatro de uma cadeira de rodas. Será um homem inválido cujas mulheres olharão com pena, e não mais com admiração.
— Mas por que tem que ser eu?
Sabugo levantou-se.
— Olhe amigo, eu já me contentei com o insulto do cara. Quanto a você, porém, a expressão do seu rosto me faz crer que não. Alguma coisa me diz que você ainda morde os lábios. Só esta manhã você foi várias vezes à janela; colocava e tirava as mãos dos bolsos da calça. Não me observou porque os seus olhos eram para o desgraçado vice-chefe. Isso é certamente uma atitude de quem está com um espinho na garganta.
— E você não faz nada?
— Bem, além do que já falei, posso ficar expiando a aproximação do vice-chefe da escada próxima ao escritório dele.
Fiquei indeciso. Não sabia se acreditava em Sabugo. Ele me parecia estranho. Me negara várias vezes falar sobre si. A expressão com as mãos e a fala firme, por outro lado, me faziam crer que compartilharia de minha vingança. Cada passo que eu daria, podia ser cada passo que ele estaria dando. Por outro lado, jamais pensei em usar da violência contra alguém. As mãos de uma pessoa são para construir a felicidade, e não dispor do contrário.
Acabou que o meu ódio venceu o medo. Se as pessoas soubessem, não causaria repugnância em ninguém. Aceitei os termos da vingança, desde que o enigmático companheiro não me desamparasse.

III

Não esperava que o novo dia chegasse. Passei a madrugada tentando me arrepender. É melhor se arrepender na fase embrionária do que na fase de parto. Pois, depois, tudo é mais difícil. É na fase de parto que muitos não resistem e se destroem. Certamente que a juíza de todas as horas perseguirá a mente perturbada como a perseguição dos espermatozóides contra o óvulo. Nem mesmo a leitura do “subtítulo da vingança” de Mateus 5 me fez voltar atrás. Deixei Cristo e o remédio para outra hora.
Se tem uma coisa que não devia haver é arrependimento por desonra. Maltratar uma pessoa na frente de todo mundo, é semelhante ao que a lavandeira faz com a roupa. Lava, lava até ficar limpa. Ele me levou a lavanderia para eu ficar limpo. Eu não precisava da limpeza porque eu não pedi. Se eu tenho menos de um metro e sessenta e cinco, não interessa a ninguém. Se o meu nome é Pequeno, também não interessa a ninguém. Contudo, sou uma pessoa cujo brio está lá embaixo. Ou continuo indo à janela ou então o safado vai experimentar a dor do remorso. Não me resta outra perversidade.
Quando cheguei à firma, por acaso encontrei o vice-chefe subindo bem devagar as escadas. O cantor não olhava para trás. Ele segurava a maleta que com certeza devia ter os nomes das mulheres que ele já agarrou ali na empresa. Realmente era boa-pinta, por isso se exaltava perante os anões, como eu, ou perante os de tamanho parecido, como Sabugo.
Assim que ele subia as escadas que davam acesso ao seu escritório, olhou para trás, pois eu havia tropeçado. Não se conteve de rir ao olhar para os meus olhos. Ria da minha altura. Dizia bem alto que nunca vira dar tão certo as palavras nanico e pequeno. A revolta cresceu de maneira tal que avencei sobre o cretino, puxando-o pelo paletó. O vice-chefe rolou as escadas. Assustado, me aproximei. A cabeça do desafortunado estava sangrando. Mesmo assim, ele me puxou pelo colarinho. Ao invés de correr, gritei.
O grito me fez acordar. Chateei-me pois era apenas um sonho. Como o sonho faz a gente se frustrar! Mesmo assim, todo o meu pijama estava molhado. Revoltei-me mais ainda quando olhei para o relógio. Já era mais de oito horas da manhã, e o vice-chefe possivelmente já tinha chegado. Eu estava atrasado. O plano daria errado.
Uma mensagem no celular vinda possivelmente do Sabugo dizia para a gente se encontrar no galpão de computadores velhos.
— E aí, você conseguiu sobreviver à noite?
— Nunca estive tão bem quanto hoje. O idiota de pernas tortas vai ter que pagar pelo que fez! A repugnância é um crime hediondo, embora, creio eu, não esteja na lei.
— Finalmente, sinto que as suas palavras provêem de um terreno seguro.
— Não tanto de um lugar seguro, mas de alguém repugnado. Se o descarado queria realizar esse desejo, prefiro chegar primeiro e acabar com ele.
Após combinar os detalhes, despedimo-nos sem apertar as mãos.

IV

A manhã toda voltei a praticar a minha nova mania. Desta vez a ida à janela foi bem superior aos das outras vezes. As idéias esquisitas de pular dali para baixo realmente seriam dar munição ao vice-chefe. Como a autoridade ia rir da minha desgraça! Um prêmio conquistado sem muito esforço. Olhando o abismo agora, quem devia cair era o pilantra.
O telefonema do Sabugo interrompeu meus pensamentos. Disse-me que não ligara antes porque o chefe tinha se atrasado, mas que, agora, o insolente já tinha estacionado o seu audi. Pediu para que eu fosse para o lugar combinado imediatamente.
A palpitação sangüínea palpitava semelhante a batida de um tambor. Não me via usando da violência para obter êxito. A circunstância nova, infelizmente, exigia uma coragem que eu nunca tive.
Usei de todas as precauções para que ninguém me visse. A palpitação sanguínea que subira agora a pouco, tinha desaparecido. Eu estava tranqüilo. Será que a frieza dos piores elementos que a polícia lida todos os dias tenha se apoderado de mim? De qualquer forma, eu me sentia outra pessoa.
Ainda encontrei com Sabugo. Ele falou que o hábito do vice-chefe era passar pela solitária escada privativa, antes de chegar ao escritório. Eu me escondi detrás da porta de incêndio.
Minutos depois ouço passos e assovios. Era o grandalhão que aparecia invadindo o espaço onde se achava insuperável. Que ódio vê-lo se agigantando diante de meus olhos cantando! O chato certamente está cantando porque confia que é sempre um vencedor. Você merece morrer, seu desgraçado! Pouco tempo depois, não me contive e gritei, assim que o cantor deu as costas para mim. Assustado, desequilibrou-se, rolando escada abaixo. A cena não me amedrontou. Não tive pena do irresponsável. Mesmo assim, me aproximei. Vi que saia bastante sangue da sua cabeça. O vice-chefe estava morto.



IV

Para a minha surpresa, o fim do poderoso foi aceito com muito convencimento pela polícia. O atlético vice-chefe escorregara nas escadas, e a batida da cabeça no último degrau foi o responsável pela sua morte. A fatalidade ocorre no trabalho. Procurei Sabugo para compartilhar da vitória. Um colega me disse que não trabalhava ninguém com esse nome na firma. Dei todas as descrições possíveis, inclusive a de que ele tinha mais de um metro e noventa de altura e usava uma roupa camuflada conforme a cor do ambiente; a resposta, entretanto, era sempre a mesma. Meus olhos não podem ter se enganado. Ocorre-me, contudo, o pensamento que temo: talvez Sabugo estivesse dentro de mim. Olhando lá para baixo daqui da janela, penso que Sabugo seja uma invenção minha. Alguém que fabriquei nas minhas horas de debilidade. O espelho que não vinha à existência por absoluta cegueira do homem atrás de um outro espelho.

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Comentários: flaviosf@tcu.gov.br
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