Usina de Letras
Usina de Letras
47 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62332 )

Cartas ( 21334)

Contos (13268)

Cordel (10451)

Cronicas (22543)

Discursos (3239)

Ensaios - (10406)

Erótico (13576)

Frases (50712)

Humor (20055)

Infantil (5474)

Infanto Juvenil (4794)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140846)

Redação (3313)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6221)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Erotico-->37. UMA SEMANA DE MUDANÇAS -- 05/05/2003 - 08:37 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Juvenal levantou-se às três da madrugada. A casa estava em silêncio, tendo Margarida deixado acesas as lâmpadas internas e externas da segurança do prédio. Ainda no escuro, para não ser notado do lado de fora, olhou pela janela e verificou que a viatura policial ali se encontrava. Dirigiu-se ao quarto do fundo, o de Lutécia, e examinou o quintal, observando que Tadeu deveria estar desperto, porque viu luzes no quarto e na sala.

Desceu na penumbra dos reflexos das lâmpadas nos espelhos, dirigindo-se ao amplo escritório do pai, onde se guardavam os livros da biblioteca em estantes fechadas por portas de vidro.

O rapaz abriu o compartimento secreto das armas, afastou uma tábua do fundo e acionou a alavanca que movimentava o móvel que disfarçava a escada da adega, acendendo automaticamente a luz no fundo. Ao chegar ao piso, inspecionou as quinhentas peças de ouro de um quilo, herança secreta que o pai deixara aos filhos. Na parede oposta, prateleiras empoeiradas, cheias de velhas garrafas de vinho, relíquias que Juvenal mantivera até então intocadas.

Em uma cômoda de seis gavetas, antigo móvel de madeira maciça, verificou, abrindo a primeira, o seu conteúdo de maços de notas de cem dólares, calculando a existência de para mais de quinhentos mil dólares.

Acariciava as notas sem sofreguidão, seguro de que era uma riqueza que jamais se desfaria.; ao contrário, recordava-se de que, ao montante que encontrara quinze dias antes do assassinato do pai, juntara, nos últimos dois anos, quase todo o lucro que obtivera no tráfico de drogas.

Em um outro armário, mais alto, não mexeu, ciente de que estava tudo como deixara.

Pensando nos transtornos que aconteceriam se o tio soubesse da existência daquela pequena fortuna, desta feita, ao invés de guardar o dinheiro que recebera das mãos dos misteriosos protetores, recolheu um maço de notas, conferindo a inscrição na presilha de papel: dez mil dólares.

Começava a suar naquele ambiente fechado, quando subiu de volta, trancando tudo.

Tinha um plano na cabeça.

Dirigiu-se ao quarto da irmã, ligou o computador, conectou a Internet e buscou os “sites” de imobiliárias localizadas em bairros da gente endinheirada. Procurava por um apartamento de luxo em que pudesse agasalhar a riqueza. Em várias delas, havia ofertas de imóveis para venda ou aluguel. Através de fotos e de vídeos, pôde examinar mais de uma dezena em condições favoráveis para seu desígnio.

Escolheu três e reservou horários na parte da manhã, através de “e-mails”.

Tendo ouvido movimentação no pavimento de baixo, olhou as horas e constatou que as empregadas haviam chegado.

Voltou a examinar a rua e já os policiais lá não se achavam.

Diante da tela do computador, selecionou uma locadora de carros, correu os veículos oferecidos, escolheu um blindado e fechou negócio, fazendo um depósito através do cartão de crédito, solicitando que lhe enviassem o carro dentro de duas horas.

Só então foi tomar uma ducha quente, preparando-se para descer.

Esperavam por ele as três criadas, no aguardo das ordens do dia. Ao verem-no, tiveram uma forte surpresa, um deslumbramento, porque Juvenal trajava um terno cinza de gabardina inglesa, gravata de seda estampada, com predominância do vermelho escuro, debaixo de um colarinho alvo, calçando finos e reluzentes sapatos pretos. Dava-lhe uma aparência bem mais velha a armação sóbria dos óculos. Examinados, demonstrariam que não existia mais que cristal, porque o que almejava o rapaz era justamente aquele efeito, porque sua visão era perfeita. Do mesmo jeito, envelhecia-o a barba cerrada, que ele não havia escanhoado, mantendo-a aparente, sem displicência, porém.

Formulou as recomendações de praxe, informando que não voltaria para almoçar.

Margarida se apressurou a perguntar:

— Devo avisar a Professora Ângela para não vir com os alunos?

— De forma alguma. Eles podem trabalhar normalmente. É possível que eu volte a tempo de pegar alguma explicação valiosa. Não vai demorar para eu ter novidades que vão mexer com todos desta casa. Penso em mudar-me. Vão pensando se vocês querem continuar trabalhando para mim.

Depois de avisar que chegaria um carro de aluguel, sentou-se à mesa, servindo-se do lauto café da manhã.

Em compasso de espera, pegou o livro de Kardec e abriu ao acaso, deparando-se com as explicações dos espíritos relativas a possuírem os animais uma alma.

Leu:

“Trata-se também de uma alma, se quiserem assim.; ‘isso depende do sentido que se atribua a essa palavra’.; porém, ela é inferior à do homem. Existe entre a alma dos animais e a do homem tanta distância quanto entre a alma do homem e Deus.” (O Livro dos Espíritos, item 597.)

Lembrou-se dos cães mortos e de que havia levantado tal hipótese e passou a divagar, montando um paraíso em que, sob os olhos de Deus, as almas dos homens passeavam rodeadas por animais de toda espécie, porque imaginava não existir mais a necessidade da ferocidade e da selvageria. Súbito, concentrou-se na observação da distância referida entre Deus e as almas dos homens e dos animais. Considerou o que vinha estudando a respeito da vida animal, juntou aos programas de televisão dedicados a esses estudos e concluiu que era um absurdo a consideração registrada por Kardec, dado que aproximava demasiadamente a alma dos homens de Deus. Perguntou-se por que teriam os espíritos laborado em tamanha imprecisão, mas não soube atinar com uma resposta conveniente, a não ser a de que, talvez, não fossem tão adiantados para conhecer a realidade da existência divina.

Maliciosamente, julgou que era de toda conveniência que respondessem algo que agradasse aos ouvidos humanos, imputando a Kardec, além da pergunta, a formulação da resposta. Tanto bastou para largar o volume sobre a mesa, erguendo-se como que à procura de novo centro de interesse.

Nisto ouviu a campainha, indo ele mesmo atender. Chegava o carro que alugara.

O motorista passou-lhe as chaves e a documentação, pediu-lhe uma assinatura num recibo, perguntou-lhe se necessitava de alguma orientação para manobrar o veículo e, à vista da resposta negativa, subiu na garupa da moto que o havia acompanhado, partindo em disparada.

Com sua belíssima pasta de couro natural, o jovem sentou-se ao volante, acionou o ar condicionado, deu a partida e saiu mansamente, testando a potência do motor e a segurança dos freios.

Dez minutos depois, estava estacionando no pátio da primeira imobiliária.

Recebido pelo corretor, manifestou o desejo de falar diretamente com o responsável, explicando ao senhor que o atendeu que se tratava de um negócio sigiloso.

— O senhor deve ter visto recentemente no jornal a notícia de que uma senhora foi morta por três cães.

— Um caso muito lamentável.

— Pois sucedeu comigo. Sou eu mesmo quem perdeu a irmã e o pai assassinados.

— Estava explicado na reportagem.

— Fiquei só. Mas não posso alienar o imóvel por questões judiciais. Então, tenho de manter os bens comigo, mas não mais consigo viver naquele ambiente de tristes recordações. Sendo assim, preciso de um apartamento grande, embora vá ficar meio vazio até que se decida o juiz a me reconhecer como legítimo herdeiro de tudo.

— O senhor tem algum apartamento em vista?

— Sim. Este.

Juvenal retirou da pasta uma folha que imprimira em casa com a foto e as características do imóvel.

— Este apartamento é especial. O senhor está disposto a gastar três mil dólares mensais, apenas com o aluguel, mais as despesas normais de condomínio?

— Sem dúvida.

— Vou mandar meu corretor...

— Gostaria que fosse o senhor mesmo mostrar-me o apartamento, principalmente porque sei que somente após a assinatura do contrato é que me mostrarão os cofres e me fornecerão as chaves e os segredos deles.

— Como quiser.

O homem solicitou permissão para ir buscar as chaves, enquanto o rapaz ia esperá-lo do lado de fora.

Foram em comboio até o prédio, que se situava num condomínio fechado, verdadeira cidade dentro da cidade, espécie de fortaleza de gente rica, onde, para entrar, tiveram de deixar os documentos com os porteiros, tendo sido acompanhados por um segurança até a porta.

Lá dentro, o conforto mais moderno, com todas as instalações para uma vida agradável e segura. O vídeo mostrara boa parte das acomodações, mas ocultara três dos cinco quartos e duas das três salas, não precisando o cicerone explicar a razão do fato, porque Juvenal adiantou-a a ele:

— Tal como vocês não mostram os cofres, também não divulgam todos os cômodos para não atraírem a cobiça dos marginais. No entanto, gostaria de saber qual a capacidade do cofre principal, porque tenho muitos valores para guardar nele.

— Existem três cofres. Um na sala de estar, pequeno, para enganar os assaltantes, caso ocorra uma invasão. Nele se recomenda que se deixem algumas jóias, papéis de pouca importância e alguns milhares de dólares. No quarto do casal, existe um outro com a mesma finalidade, caso os ladrões desconfiarem da existência da armadilha. O cofre principal está noutra repartição e eu lhe garanto que tem capacidade para guardar um grande arquivo de documentos, dinheiro, ações e jóias, além de objetos de arte.

— Eu gostei do apartamento, principalmente porque poderei manter meus empregados, sem precisar vê-los entrar e sair, dado que existem elevadores de serviço muito bem situados. Para mim está perfeito. O senhor lavra o contrato e meu advogado virá assiná-lo, trazendo as testemunhas de rigor.

— Quanto ao fiador?

— Nenhum problema. Faremos um depósito na sua conta particular e o senhor mesmo irá deduzindo mês a mês o valor a ser transferido para o dono, desde que se comprometa, por contrato, a não divulgar o nosso negócio.

Surpreendeu-se o gerente com a inédita proposta, principalmente porque vinha de um jovem que poderia ser seu neto. De qualquer modo, preferiu outra maneira de solucionar a questão:

— Talvez seja preferível, em lugar de imobilizar o dinheiro, deixar assinados tantos cheques quantos os meses do contrato, cheques visados pelo banco.

Juvenal não se satisfez com a fórmula e propôs outra, a definitiva:

— Nem no seu banco, nem no meu. Faremos o negócio em dólares. Eu entrego, contra recibo, o valor total do aluguel e o senhor mantém tudo em segredo, inclusive sem referi-lo sequer ao meu advogado.

Um aperto de mão selou o acordo.

Sem receio de estar lidando com impostor, o senhor fez questão de mostrar o cofre principal ao cliente, demonstrando que não exagerara ao descrever-lhe as dimensões.

Combinaram a assinatura do contrato e a entrega do dinheiro e das chaves para as onze horas e cada qual foi para o seu lado.

Ainda no carro, Juvenal ligou para as duas outras imobiliárias, anulando os encontros marcados. Também ligou para a oficina em que se reformava o carro, obtendo a informação de que o serviço ia adiantado e que poderia terminar antes do prazo.

Tendo voltado para casa, surpreendeu as mulheres com sua presença, já que havia dito que não iria almoçar. Na verdade, precisava abastecer-se de dólares e providenciar a transformação de alguns em moeda nacional, para as despesas em que não poderia utilizar-se do cartão de crédito.

Retornando à imobiliária, encontrou o contrato pronto, conforme lhe fora prometido, faltando apenas a assinatura do locador, assinatura que lhe foi assegurada para aquele mesmo dia.

O senhor ficou muito satisfeito ao receber os dólares, afiançando que tudo se manteria em segredo, inclusive para o dono do apartamento, que receberia mês a mês o aluguel, já que Juvenal não autorizou o pagamento das vinte e quatro mensalidades de uma única vez.

De posse das chaves, dirigiu-se ao apartamento para tomar posse dele, principalmente porque precisava conhecer os funcionários do condomínio, inclusive o síndico, os quais foram alertados pelo corretor para a presença do novo inquilino.

Familiarizado com as pessoas e com o prédio e arredores, passou a examinar detidamente os cômodos, escolhendo o mais resguardado e silencioso para seu dormitório e o contíguo para os computadores, já que havia extensões dos dois telefones em todos os quartos, extensões de que precisava para conectar-se à Internet.

Almoçou um sanduíche que levara de casa, verificando que não havia talheres nem pratos. Também não havia roupa de cama, de mesa e de banho. Margarida precisaria entrar em ação. Por isso, ligou para ela, deu-lhe o endereço, determinou que fosse imediatamente para lá, explicando-lhe por alto o que se passava.

Quando ela chegou, ele foi avisado pelo interfone, descendo para liberá-la na portaria, já tendo os porteiros indicado como deveria proceder para chegar ao local de trabalho.

Às duas horas da tarde, estavam de volta, encontrando em grande agitação os três empregados, Valéria embalando as roupas, Glorinha, os petrechos da cozinha e Tadeu transportando tudo para a garagem vazia.

Também lá se achavam Ângela e os alunos, meio desanimados com a notícia, crentes de que as aulas iriam acabar.

Quando Juvenal entrou na sala, sua indumentária passou aos presentes uma imagem de poder e segurança a que não estavam habituados. Mas ali mesmo, enquanto explicava o que estava acontecendo, o rapaz foi despojando-se do paletó, da gravata e dos óculos, tornando-se mais parecido com aquele moço que conheciam.

Disse-lhes ele:

— Vocês devem entender que eu não posso mais morar sozinho aqui. É uma verdadeira mansão. Então, vou mudar-me, mas nós continuaremos com as aulas, como se nada tivesse acontecido. Tadeu vai tomar conta das coisas e vai recebê-los normalmente. Eu comparecerei todo dia, dando preferência aos estudos com vocês aos que recebo na escola. Hoje, como estou atarefado com a mudança, vou permitir-me faltar. Amanhã, tudo entrará nos eixos.

Sem dar tempo a que ninguém dissesse nada, subiu para o quarto com o fito de trocar-se. Em seguida, soltou os três computadores e todos os equipamentos, que ele chamava de periféricos, e desceu-os um a um, colocando-os no banco de trás do carro que ficara no jardim, na entrada da garagem.

Inquiriu de Margarida para que hora poderia chamar a empresa de mudanças e, em seguida, contratou o serviço de uma delas para as seis horas da tarde, garantindo que pagaria em dobro as horas a mais que todos trabalhariam.

— Eu quero passar esta noite na minha nova residência, afirmou como prova de determinação.

Ato contínuo, levou duas malas para o escritório, trancou-se e encheu-as com muitas cédulas e alguns quilos de ouro. Começava a mudança de sua riqueza.

Para que não suspeitassem de nada diferente, avisou que iria levar parte dos livros da biblioteca, deixando a maioria onde estava.

Às nove horas da noite, meio acomodadas as coisas no apartamento, as mulheres se retiraram, deixando Juvenal à vontade para guardar o que trouxera no cofre principal, o que ele fez um pouco contrariado, meditando a respeito de sua dependência às pessoas e coisas. Quando se lembrava de que até bem pouco tempo mandava e desmandava junto aos infelizes de sua gangue, via-se diminuído a dar ordens a serviçais.

Mas, ao reconfigurar os computadores, entreteve-se com eles, dispondo-os em rede, como estavam antes. Contatou os provedores da Internet e habilitou as duas novas linhas telefônicas, deixando tudo em ordem, conforme verificou através de vários testes.

Pensou nos policiais ainda estacionados defronte de casa, eliminando da mente a idéia de realizar outro carregamento. Estabeleceu o plano para os próximos dias e deitou, passando por duas horas de ansiedade, porquanto a recordação da irmã, desde a noite em que a pranteara, não se desfazia muito facilmente.

Imaginou-se a orar pelo descanso da alma de Lutécia, mas não efetivou nenhuma oração daquelas de que ainda se lembrava de quando era criança. Mas só a intenção bastou para tranqüilizá-lo e ele pôde conciliar o sono, finalmente.

O dia seguinte amanheceu sem surpreendê-lo no leito. Ligou para casa, deixando um recado para Margarida no sentido de preparar-lhe o café da manhã, assinalando que chegaria bem cedo.

Enquanto deixava o tempo passar, encheu a banheira da hidromassagem e experimentou um conforto que ele só conhecera nos motéis, visto que não instalara nenhuma em casa.

Julgara que sairia do banho totalmente relaxado.; ao contrário, as pernas e braços lhe pesaram como se o movimento das águas houvessem imposto um exercício violento. Recordou-se de que era dia de enfrentar a sessão de musculação de Elvira, primeira, na verdade, em que se defrontaria com os aparelhos.

Durante a manhã, realizou quatro viagens, aproveitando que as empregadas estavam ocupadas em empacotar outros pertences, enquanto Tadeu continuava a empilhá-los na garagem.

As aulas da tarde foram devidamente cabuladas, para que realizasse mais três transportes. Calculou que levaria uns três ou quatro dias para terminar o serviço, isto se conseguisse manter as criadas longe do apartamento, para não levantar suspeitas, ainda mais que precisou levar alguns livros de cada vez ou daria muito na vista.

Às cinco da tarde, chegou o caminhão da transportadora, aliviando a garagem e carregando consigo as empregadas. Juvenal ficou com Elvira, que muito se espantou com a mudança.

— Não se preocupe, disse-lhe ele. O prédio possui um salão bem equipado de aparelhos e eu já me informei a respeito de levar minha instrutora particular, tendo ficado sabendo que muitos residentes fazem o mesmo.

— Trata-se dos “personals trainings”, esclareceu a professora. A febre desses instrutores particulares já está passando, mas houve uma época que não havia senhora ou senhor da alta sociedade que não tivesse o seu. Eu mesma tive muitos clientes, para não dizer instruendos, como Lutécia e agora você. Vamos começar?

Durante quase duas horas, realizando exercícios leves, Elvira pôde demonstrar ao rapaz que precisava reformular muitos de seus hábitos, já que a contextura muscular necessitava adquirir melhor tonicidade. Fez-lhe várias recomendações quanto aos alimentos e lhe pediu para organizar um horário de estudo e de trabalho junto ao computador. Desejava, conforme explicou, conhecer os pontos de abuso e o papel do descanso no equilíbrio das atividades rotineiras, com vista a prepará-lo convenientemente para o ingresso na faculdade.

Juvenal, que não suspeitava que estivesse tão “enferrujado”, admirou-se com o resultado dos testes físicos, vendo-se completamente fora de forma, apesar de não portar nenhum acúmulo de gordura no corpo.

Ao término da sessão, comentou:

— Gostei de sua aula, mas teria gostado mais se tivéssemos conversado sobre os temas espíritas.

— Eu acho que você não tem lido muito os textos que lhe passei. Mas compreendo que estes dias estão comprometidos com a mudança. Tal como não forcei os exercícios, também não irei obrigá-lo a uma realização maior que sua disposição. Fique a lição do equilíbrio, o que não é pouco, caso consideremos que o entendimento desse princípio ou virtude é fácil, mas sua aplicação à vida é extremamente complexa.

Assim que despediu a professora, Juvenal entrou em contato com o tio para saber a que hora iria conhecer o apartamento.

— Depois da palestra que irei ouvir no centro. Ricardo vai falar a respeito de mediunidade. Você não quer ir comigo? Eu passo por aí e o pego.; depois voltamos juntos.

O jovem hesitou antes de dizer que não:

— Preciso ir ver como as coisas estão, para dispensar as criadas. Quero supervisionar tudo. Ainda não confio plenamente nelas.

— Posso passar por lá.

— Vamos ficar assim: se, às sete e meia, eu estiver disposto, eu ligo para o senhor e a gente combina. Certo?

— Certíssimo.

Fez Juvenal o que tinha de fazer e, às sete horas, estava ligando para o tio. Às oito, entravam no auditório lotado do centro espírita, acomodando-se na última fileira, onde havia alguns lugares vagos logo ocupados.

O presidente fez a apresentação do palestrante e do tema sobre que discorreria, solicitou concentração aos presentes e efetuou a prece de abertura, sem ênfase nem comoção, como se rezasse consigo mesmo.

Em seguida, Ricardo assumiu o microfone e começou sua longa peroração, informando como foi que Allan Kardec tomou contato com os espíritos, através de diferentes médiuns, em várias casas onde se efetuavam reuniões mais ou menos sérias. Explicou quais os meios materiais utilizados inicialmente, começando pelas mesinhas e pranchetas, chegando a colocar o lápis diretamente na mão do intermediador. Referiu-se à mediunidade de Francisco Cândido Xavier, dando diversos exemplos de fenômenos que ocorriam sob seu patrocínio.

No princípio, Juvenal dispôs-se a prestar atenção, mas a voz monótona do expositor fez que o cansaço lhe subjugasse a vontade, e o rapaz entregou-se a um cochilar tranqüilo, adormecendo silenciosamente com a cabeça encostada na parede.

José bem que notou que dormia mas não quis acordá-lo, considerando que tal sono poderia estar sob o controle dos espíritos, acreditando que, naquele ambiente, haveria muitos capazes de exercer uma influenciação sonambúlica, de sorte que bem poderiam estar ministrando-lhe conhecimentos mais importantes que aquele que o palestrante se esforçava por explicar ao auditório.

Na verdade, havia uma participação espiritual particular, mas no sentido de serem postos em contato os irmãos, porque Lutécia fizera questão de demonstrar que o perdoava por todas as atitudes que ele tomara contra ela. Renato, consultado a respeito de acompanhar a filha, negou-se a fazê-lo, afirmando que não se encontrava ainda preparado para estar na presença de um ser que, finalmente, havia reconhecido como seu antagonista em anteriores encarnações e em perseguições na erraticidade. Pai Benedito desconfiou de que estivesse com medo de envergonhar-se perante as acusações que o filho vinha fazendo-lhe quanto a ter-lhe sonegado seu carinho assim que a esposa o abandonou.

Ao acordar, ao término da palestra, Juvenal carregava a impressão de que algo muito bom lhe havia acontecido.; o alívio de uma sobrecarga moral que vinha afligindo-o desde o último pesadelo.

Quase sem pensar no que dizia, em meio ao burburinho da saída das pessoas de seus lugares para formarem uma longa fila junto a uma porta lateral, Juvenal dirigiu-se ao tio:

— Sabe que estou passando por uma transformação surpreendente? Outro dia, eu afirmava que não tinha sentimentos. Naquela mesma noite, emocionei-me com a lembrança da Lutécia. Agora estou me lembrando dela a todo momento e cada vez com mais saudade. Quando vejo as mocinhas trabalhando em casa, a coisa fica verdadeiramente feia.

José admirou-se muitíssimo com a abertura sentimental do sobrinho. Era a primeira vez que testemunhava uma confissão dele. Sem saber direito a que atribuir o fato, arriscou uma explicação:

— Eu acho que a solidão o pegou direitinho. Você disse que não mudaria para lugar nenhum e, logo depois, mudou. Quem sabe o espírito dela não esteja acompanhando-o e protegendo-o?

Em lugar de responder, Juvenal não deu trela ao tio, fazendo, com seu mutismo, que a conversa terminasse ali. Mas justificou sua vontade de ir embora antes de tomar o passe e antes de conversar com Ricardo, afirmando que estava muito cansado. Quando ia mencionar a aula de Elvira, encontraram-se com ela, que se despedia dos conhecidos.

Sorrindo muito satisfeita, abraçou o jovem, cumprimentando-o pela deliberação de ir ouvir algo mais a respeito da doutrina espírita.

José, no entanto, abreviou as expansões de alegria da professora:

— Ele pode ter aproveitado a reunião, mas de maneira inconsciente, porque dormiu o tempo todo.

Juvenal não deu demonstração de haver ficado abalado com a revelação nem atenuou o efeito das palavras com algum gracejo oportuno. Simplesmente se despediu de Elvira e puxou o tio para fora.

No apartamento, foi a vez de José não entender por que o sobrinho escolheu algo tão suntuoso. Sabia que os rendimentos de seus bens dariam para arcar com as despesas, principalmente agora que não precisava mais dividir em duas partes, para guardar a de Lutécia, conforme prescrição testamental do irmão.

— Juvenal, você está ciente de que pouco irá sobrar para cair em sua caderneta de poupança?

— Mesmo que for necessário sacar em lugar de depositar, sempre haveremos de contar com a poupança de Lutécia. Mas eu acredito que logo vou poder vender algumas das propriedades para aplicar na aquisição de um apartamento deste padrão.

— Você não vai passar-me o contrato, para eu dar minha opinião, se bem que agora já deva ser tarde demais?

— Perante a lei, sou maior de idade e já é chegada a hora de assumir a direção dos meus negócios. Só lhe peço para continuar administrando-os até o começo do ano letivo, quando eu tiver ingressado na faculdade. Depois a gente poderá tratar melhor da transferência da responsabilidade.

— Você é quem sabe. Mas, primeiro, vamos ter de vencer a ação movida por sua mãe.

— Por que o senhor não vai falar diretamente com ela, em meu nome, e perguntar se ela ainda está interessada na casa.

— E se estiver?

— Diga-lhe que abro mão dela com todos os bens que lá se encontram, inclusive as obras de arte. Vamos fazer uma partilha amigável, apesar da vontade manifesta de meu pai. Quanto à parte de minha irmã, que ela ainda não reivindicou, eu aceitarei dividir, menos a quantia depositada no banco, que, perto dos valores que lhe estou passando, não tem peso algum.

— Você vai sair perdendo.

— Não tem importância. Pelo menos vou ajudar minhas irmãs e deixar minha mãe satisfeita. Ela não merece, mas a desgraça que nos está perseguindo deveria unir-nos e não separar-nos cada vez mais.

— Quer dizer que você a perdoa...

— Quer dizer que eu não estou dando tanta importância ao sofrimento material que lhe estava ocorrendo.; o sofrimento moral deve estar atormentando-a.

— Isto também está a demonstrar que você está mais sensível. Será por influência da doutrina espírita?

— Não parei para pensar, mas até pode ser que sim. Como eu lhe disse, Lutécia está fazendo muita falta, eu que a acorrentei ao pé da mesa durante um semestre inteiro.

— E teve a infelicidade de vê-la atingida na primeira oportunidade em que lhe permitiu sair.

— Vamos jantar?

— Vamos. Eu avisei em casa que não me esperassem. Contava ir a um restaurante com você.

— Esqueça o restaurante. Margarida deve ter deixado a comida preparada, precisando apenas passar pelo microondas.

De fato, na cozinha, em pratos individuais, havia duas porções de cada acepipe.

José admirou-se por tamanho capricho:

— Esta empregada você não pode perder.

— Quando eu disse a ela que nós estávamos indo ao centro, parece que se deu o encantamento. Foram mágicas aquelas palavras, como o “abre-te, sésamo” da caverna do Aladim.

Enquanto degustavam os pratos bem temperados, Juvenal ia prestando atenção no valor nutritivo de cada alimento, lembrando-se de que precisava seguir uma dieta balanceada, segundo a prescrição de Elvira. Considerou que não podia esquecer-se de avisar a empregada para receber as instruções da professora.

A presença do tio fez que se lembrasse também de que precisaria fazer as retiradas de sua conta bancária correspondentes ao valor dos gastos com a nova moradia. Determinou-se, então, a abrir uma conta secreta em outra instituição bancária, para o que precisaria de um endereço desconhecido do tio, para onde seria encaminhada a correspondência. Não desejando ficar na dependência de ninguém, avaliou a importância de alugar um apartamento modesto, onde se refugiaria em caso de necessidade. Eis o que considerou prioritário para realizar após transferir sua pequena fortuna para o cofre.

À noite, no leito, repassou todos os planos, julgando-os seguros. Foi quando lhe voltou o pensamento de que havia cordéis invisíveis a movê-lo de um lado para outro. Crescia sua ânsia por liberdade.

Altas horas, acordou assustado, como se alguém o chamasse insistentemente. Consultou o relógio e verificou que, não há muito tempo atrás, estaria com alguns da turma, realizando as transações do tráfico no varejo e no pequeno atacado. Lembrou-se da última ligação frustrada para Armando e discou para o celular dele, não obtendo resposta. Atendeu-o a caixa postal, onde deixou registrado apenas o número de uma de suas novas linhas telefônicas.

Meia hora depois, estando a conciliar o sono, recebeu uma chamada.

— Alô!

— Juvenal?

— Sim.

— Desconfiei que só podia ser você. Estou ligando de um telefone público, porque o meu celular está sob controle. Não dá para falar à vontade, desde que tomei o seu lugar.

— Armando, precisamos conversar com segurança, mas eu me sinto seguido o tempo todo. Mudei para um apartamento mas não vou dar-lhe o endereço. Você está entendendo?

— Claro. Só não sei como tratar de certos assuntos.

— Podemos tentar a Internet. Se você acha que consegue entrar num grupo que eu vou indicar, a gente pode estabelecer um contato mais ou menos seguro.

— Eu não confio. Essas coisas ficam registradas na memória dos computadores e dos provedores. É melhor eu procurá-lo na escola.

— É o pior lugar. É lá que eles sempre me acham. Outro dia me seguiram por toda a parte, até dentro de um cinema. Depois eu lhe conto o caso. Agora vamos desligar. Eu vou deixar a seu encargo...

— Nada feito. Eu não vou colocar em risco a operação. Aliás, eu acho que estou sendo observado. Se der, eu ligo de novo.

Nem deu tempo de Juvenal se despedir pois o comparsa desligou em seguida.

Conseguiu adormecer para ter um pesadelo em que se via cercado por bestas-feras a que chamava de Brútus, de César e de Mocinha, que o dilaceravam junto à porta de entrada do apartamento. Acordou suando, decidido a realizar naquele mesmo dia o restante de sua mudança.

De fato, saiu bem cedo, chegando logo à sua casa, dispensando com um sinal os guardas de prontidão.

No fundo, além das lâmpadas discretas da segurança, nada mais se via. O rapaz concluiu que Tadeu estaria dormindo e evitou denunciar sua presença ali. Com isso, conseguiu encher suas malas sem juntar nenhum livro, partindo em seguida.

Ao meio-dia, já havia realizado cinco viagens, tomando todo o cuidado possível para não dar na vista, tanto que em uma delas, transportou apenas livros, solicitando que Margarida e Glorinha o ajudassem a distribuí-los nas prateleiras do escritório do apartamento, conjuntamente com os demais que havia amontoado desde o primeiro dia.

Ao voltar, levou Margarida para ajudar Valéria e Tadeu a empacotar alguns objetos artísticos, quadros, vasos e estatuetas, conforme as etiquetas autocolantes que ele ia fixando.

No apartamento, encontrou-se sozinho com Glorinha, que cuidava do almoço. Ficou tentado a dispensá-la da tarefa, mas se lembrou de que naquele sábado a transportadora marcou para a uma da tarde, portanto, às duas, as outras estariam chegando.

Na verdade, Margarida veio com o furgão da mudança, tendo Valéria ido exercer, pela primeira vez, sua atividade de animadora de torcida.

Às quatro horas, viu as empregadas irem embora. Imediatamente se dirigiu para casa, mandou Tadeu cuidar da piscina e pôde, com tranqüilidade, realizar o restante de sua secreta mudança.

Quando pegou os últimos lingotes de ouro, deixava no fundo da adega apenas o armário fechado. No entanto, tomou todos os cuidados para disfarçar a entrada secreta, como se lá quedasse ainda sua riqueza.

No domingo, rejeitou o convite do tio para almoçar na casa dele, dedicando-se o dia inteiro a conversar com o grupo de que participava a irmã, buscando desfazer as más impressões que ela deixara dele. Havia uns vinte correspondentes e todos sabiam que não permitia que ela saísse de casa. Os que se identificavam com nomes femininos eram ainda mais incisivos nas críticas que lhe endereçavam. Queriam que ele enviasse uma foto, porque a que Lutécia tinha mandado datava de quando ela tinha doze anos e ele, quinze. Juvenal, contudo, não possuía nenhum retrato recente, o que lhe pareceu algo bastante saudável. Imaginou como receberiam uma fotografia antiga do pai, mas resolveu que não era o que de melhor poderia fazer. Finalmente se cansou e desligou a máquina.

Desceu para a área social do prédio, ocupada pela criançada com suas babás e por alguns adolescentes. Sentiu-se mal ao se aproximarem dois moradores para entabular conversa. Com pouca elegância, sem receio de ofendê-los e sem dar desculpa, deixou-os logo depois de haver declinado o nome, buscando rapidamente a porta de saída.

Ganhando a rua, deixou-se levar sem destino, escolhendo as melhor iluminadas e mais movimentadas. Logo se cansou da multidão, regressando para o apartamento, desejoso de ficar sozinho. Foi quando, mais uma vez, tomou o livro de Kardec e leu alguns trechos ao acaso. Lembrou-se de que poderia encontrar informações sobre o autor e a obra na Internet, passando duas horas entretido a levantar alguns sites importantes para o movimento espírita, onde encontrou as obras oferecidas gratuitamente, inclusive na língua original, o francês, que ele não havia jamais estudado.

Na segunda-feira, levantou-se tarde, tomou o café e foi matricular-se em outra escola preparatória para o vestibular, abandonando de vez a anterior, tratando de saldar o débito pelo correio. Levava consigo o endereço de outra imobiliária. Pretendia efetivar o projeto do apartamento secreto.

Não notara que Valéria não comparecera ao trabalho, de sorte que, ao retornar, após efetivar o contrato de aluguel do segundo apartamento, discreto imóvel em um bairro de classe média, foi procurado por Margarida, que lhe passou a informação de que a filha desistira do emprego.

Respondeu-lhe Juvenal:

— É uma pena porque meu tio e eu estávamos gostando do jeito que ela mantinha as coisas em ordem. Como a senhora espera resolver o problema?

— Glorinha e eu damos conta de tudo, porque está bem mais fácil. A casa era muito grande e nós já percebemos que a cozinha dá o mínimo de trabalho.

— Vou fazer o seguinte: o salário de sua filha fica integrado ao seu. Está justo para mim, porque eu acho que vocês duas vão dar conta do recado.

Margarida ficou muito contente com o trato e Glorinha, mais ainda.

Imediatamente, Juvenal eliminou a figura de Valéria da lembrança, já que a presença dela chamava pela de Lutécia.

Assim que almoçou, dirigiu-se para casa, onde se encontraria com Ângela e alunos. Ia disposto a estudar com afinco para recuperar a semana de idas e vindas. No entanto, ao se deparar com as quatro figuras, sentiu-se mal e, sem premeditação, dispensou as aulas, nos seguintes termos:

— Professora, sinto muito, mas eu acho que estas aulas vão ter de acabar, porque vai ser um sacrifício muito grande ficar estudando de manhã e de tarde e ainda ficar cruzando a cidade de um lado para outro. A senhora me diz quanto estou devendo-lhe, para eu pagá-la já.

Sem dar demonstração de surpresa, Ângela estipulou uma quantia modesta, esclarecendo que vinha recebendo regularmente dos demais e que ele mesmo não lhe dera trabalho algum.

Generosamente, o moço lhe fez um cheque com o dobro do valor solicitado e despediu-os, acompanhando-os até a porta. Quando a professora ameaçou abraçá-lo, ele apenas estendeu a mão, sem nenhum toque sentimental.

Em seguida, foi em busca de Tadeu e, inesperadamente, despediu-o, pagando-o regiamente, dizendo que as questões trabalhistas seriam resolvidas por José.

O pobre empregado, pego de surpresa, não tinha para onde ir. Então Juvenal permitiu que ficasse ocupando as dependências do fundo por mais uma semana, até arrumar acomodação, o que não seria difícil com a “bolada” que lhe dera, à qual se acrescentaria o que lhe era de direito, inclusive a retirada do Fundo de Garantia. Dito isto, cobrou-lhe as chaves do prédio, dispensando-o de qualquer cuidado com a propriedade.

Ao fechar a porta dos fundos da cozinha, Juvenal sentiu como se estivesse fechando o coração para todo o passado na companhia daquela família. Francisca nem como uma sombra passou por seu pensamento.

Ao transitar pelos cômodos meio despojados de seus enfeites, pareceu-lhe ver a figura esguia da irmã. Riu do susto quando percebeu que a visão lhe havia sido sugerida por uma cortina que esvoaçava e se refletia no amplo espelho da sala.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui