José passou o dia preocupado com Juvenal. Havia encontrado o telefone celular dele com a bateria arreada, ficando sem compreender por que razão o sobrinho queria evitar o contato com as pessoas.
Ocupado, porém, com tornar o velório e o enterro de Francisca o menos sacrificial para Tadeu e família, não percebeu que as horas avançaram. Quando ligou para a casa do moço, este já havia saído, recebendo a informação de que fora para o hospital.
Juvenal deixou-se ficar na oficina a observar os trabalhos de preparação para blindar seu carro, de forma que ele também não viu que as horas estavam passando rapidamente. Só lá pelas cinco e tanto, quando o pessoal se aprestou para ir embora, é que atinou que deveria ter conversado com o tio.
Do escritório da firma, ligou para José, diretamente para o celular, garantia absoluta de ser atendido.
— Por que você não veio consolar o Tadeu? O moço está desolado com a morte da tia e o seu desaparecimento está sendo interpretado como uma acusação tácita pela tragédia. Ele acha que a morte dos cães vai prejudicar o emprego dele.
Juvenal escondeu do tio que estava cuidando do carro e, sem dar desculpa pela ausência, solicitou o endereço em que poderia encontrar-se com os familiares de Francisca.
De posse dos dados, ao invés de se dirigir para o velório, voltou para casa, que encontrou deserta. Havia um recado de Margarida e outro de Ângela. Em ambos se lamentava que ele houvesse estado longe de casa, o de Margarida para receber dele as ordens necessárias para o encaminhamento dos serviços.; o da professora para avisá-lo que os dois alunos haviam desistido das aulas e que ela se entendera com as empregadas.
Diante do celular descarregado, Juvenal hesitou quanto a reabilitá-lo, mas terminou por ligá-lo à corrente elétrica. Precisaria de algumas horas até ter a certeza de que se manteria ativo até de manhã, uma vez que pretendia passar a noite no velório.
Não tendo o que fazer, uma vez que, para estudar, não estava disposto, dirigiu-se ao antigo aposento da irmã, com o fito de se entreter com o computador.
Ligou-se à Internet e logo acessou o grupo de correspondentes da moça, encontrando dois “on-line”. O primeiro a cujo chamado respondeu logo lhe perguntou de quem se tratava. O rapaz imaginou que não seria plausível fazer-se passar pela irmã, já que a pergunta evidentemente se escudava no fato de o interlocutor conhecer o fato de sua morte.
“Juvenal, irmão da falecida Lutécia”, fez questão de assinalar.
Como resposta, recebeu algumas palavras de conforto e uma pergunta contundente:
“Você não está arrependido por prender a moça em casa?”
Sem saber o que argumentar, surpreendido com o grau de conhecimento da vida reclusa da irmã, interpelou o segundo correspondente:
“ ‘Brother’, você teve muitos diálogos com Lutécia, minha irmã?”
A resposta não se fez esperar:
“Que lhe importa isso, se agora ela já não existe mais? Você gostaria de assumir o lugar dela no grupo?”
Em lugar de responder, Juvenal, simplesmente, desligou o aparelho. Esse tipo de relacionamento era por demais fastidioso para ele. Imaginava-se a passar longas horas conversando a respeito de coisas absolutamente inúteis. Recordou-se de que alguns comparsas lhe disseram que haviam induzido vários adolescentes ao vício através da Internet, mas seu modo de ver as coisas apontava-lhe para riscos de identificação, como o caso relatado na televisão de instituições especializadas entrarem em contato com o banditismo apenas para denunciar à polícia, configurando-se como provas os registros que se mantiveram na memória da máquina.
Buscou, em seguida, um vídeo de sua coleção de filmes de terror, para distrair-se da pergunta que insidiosamente se instalara em sua mente. Não que a acusação de prisão domiciliar o preocupasse. É que não queria imaginar o quanto de suas vidas a irmã relatara para os amigos eletrônicos. Teria alguma vez citado ela seus hábitos noturnos?
Diante dos monstros extraterrestres da película, outra espécie de desvio dos pensamentos se estabeleceu: passou a cismar em que coisas se transformariam os espíritos após a morte, particularmente os dos cães.
Não demorou meia hora e já dormia a ouvir os gritos das vítimas dos seres da ficção cinematográfica. Por influência de todas essas visões fantasmagóricas, acabou com um tremendo pesadelo em que era ele o alvo dos zumbis, cujas fisionomias reproduziam as de suas próprias vítimas.
Acordou procurando a arma, que o instinto de defesa se acendera. Não reconheceu nenhum estímulo ao medo. Muito menos lhe perpassou pela mente qualquer laivo de arrependimento ou de comiseração pelo estado lastimável daquelas criaturas. Recordou-se, sim, do que lhe dissera Elvira a respeito do perdão dos seres evoluídos. Logo quis caracterizar a personalidade dos que reconhecera no sonho, não lhe sendo possível estipular nenhum que o tivesse perdoado. O pai e a irmã é que, com certeza, estariam naquele caso.
O celular estava com a bateria em ordem, de modo que ele poderia levá-lo em sua peregrinação funérea. Constatou que eram quase dez da noite e não titubeou em se armar com um dos revólveres escondidos num escaninho secreto da biblioteca, onde o pai guardava documentos proibidos.
Por medida de segurança, deixou as lâmpadas acesas e saiu pelos fundos, não sem antes observar, através da janela do andar de cima, se poderia escapar sem ser notado.
Instintivamente, dirigiu-se a pé para os lados em que se situava a boca de fumo. Queria voltar a sentir as emoções de outrora. Chegaria ao hospital às seis horas da manhã.