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Teses_Monologos-->Da jukebox à vitrola de ficha (4) -- 28/09/2002 - 20:52 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Da jukebox à vitrola de ficha, é todo um percurso a ser realizado pelo tradutor, e que nem sempre passa pelos dicionários.

A primeira obra que traduzi, o Ensaio sobre a Puberdade de Hubert Fichte, havia sido recusada por três outros tradutores, por conta dos jargões específicos ali contemplados: junkies, traficantes, michês, prostitutas, gueto homossexual, a cena do couro, gente de teatro, era um mundo inteiro só de minorias. Ali, todos eles sabiam, não se iam encontrar as palavras propriamente “em estado de dicionário”.

Eu estaria adentrando não apenas "o reino das palavras", eu sabia. Teria de contar com a ajuda de muitas vozes, de percorrer os lugares, de falar com as pessoas, de observar cada conversa, cada detalhe, cada tom de voz. Iria precisar de alguns excelentes informantes.

Deixei passar, certa vez, a oportunidade de trabalhar com Laura Draghi, a tradutora italiana de Monteiro Lobato, instalando-me em Florença para cumprir a função de um dicionário vivo, como me disseram. "Agachar", por exemplo, está nos dicionários, explicavam, mas vai ter de fazer para que ela entenda.

De pronto, passei a calcular todos os possíveis desdobramentos no cumprimento da tarefa. Certos verbetes podem exigir demais de um dicionário vivo. Mas, naquele momento, eu já estava a caminho de Paris. Hoje lamento e não lamento ter trocado a promissora profissão de dicionário vivo pelas aventuras nos palcos do Quartier Latin.

Muitas vezes, mais do que dicionários ou dicionários vivos, vale a intuição. No livro de Hubert Fichte, quando o narrador descreve o que vê no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador, vamos saber que ali "os mortos são enterrados em caixões de maravalhas". Foi assim que eu preferi, por ter achado a palavra "maravalhas" mais interessante do que "pó de serra" ou "serragem", "raspas" ou "aparas de madeira", que eu já conhecia.

Algum tempo depois, o livro publicado, fui à Bahia e quis visitar aquele cenário brasileiro descrito por um alemão e por mim reinventado na medida do impossível. O Instituto, na ocasião, passava por reformas. Havia raspas de madeira por toda parte. A uma senhora, que varria um dos cômodos, eu perguntei como aquilo se chamava. Com sotaque inconfundível, ela não fez senão confirmar o acerto da minha escolha: "Maravalhas".

Traduzir é "lutar com palavras", correria insana atrás do indizível. O tradutor é antes de tudo um esbaforido, um monomaníaco, a perguntar a tantas e quantas pessoas pelo sentido ou pelo nome das coisas, e mui raro em raro apenas, como no percurso que vai da jukebox à vitrola de ficha, por alguma das inesperadas mágicas do destino, foge de ser, como queria o poeta, apenas uma "luta vã".

Da jukebox à vitrola de ficha é um longo e duro percurso, e que nem sempre passa pelos dicionários. Antenas ligadas, o tradutor é um forasteiro assumido, a contemplar o mundo como se ele não fosse a sua casa; um ser à espreita do que ainda não é; alguém que consegue divisar, no fundo mais fundo das águas de um lago, as ruínas da cidade.

Da jukebox à vitrola de ficha, façanha entre façanhas, algum poeta anônimo, algum popular, algum bebum subitamente iluminado, um pagodeiro da Baixada Fluminense terá completado a travessia.

[fim]
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