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Contos-->HOMEM DIVIDIDO -- 15/05/2003 - 11:12 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Rodrigo e Encarnación levantaram-se cedo. A decisão estava tomada. Iam voltar a Avis, terras de sonho que ele tanto amava, à terra onde nascera e vivera até à idade de adulto.
Na véspera, Rodrigo tinha acertado os últimos pormenores com Urbano Martinez, o seu sócio venezuelano. Considerava-o como sendo quase da família. A cadeia de pequenos super-mercados, todos situados na Capital, ficaria sob a sua responsabilidade. Em caso de necessidade, os filhos Tiago e Rita dariam uma mãozinha, se bem que pouco percebessem de negócios. Tiago formara-se em engenharia informática e chefiava um serviço da Administração Pública. Rita tirara o curso de biologia e trabalhava num Laboratório de renome. Apesar de terem dupla nacionalidade, consideravam-se venezuelanos acima de tudo. Nem Portugal conheciam…
A ausência não seria longa. Assim esperavam. Apenas o tempo necessário para recarregar baterias. Os últimos dias tinham sido muito conturbados. Greves, manifestações, assaltos… Desde que Hugo Chávez ganhara as eleições, e passados os primeiros meses de euforia, toda a Venezuela se encontrava dividida. E na sombra, as associações patronais, certos sindicatos e certos partidos, movimentavam-se para o tentar derrubar. Fervilhavam os boatos. Rodrigo, já dividido entre dois países, também se sentia dividido quanto a Chávez. Tentava não se meter nem falar muito sobre política, mas toda a sua simpatia ia (talvez paradoxalmente) para o líder venezuelano. Sempre fora de esquerda e honestamente achava necessária uma revolução que trouxesse mais justiça social para os venezuelanos mais necessitados, que eram a maioria.
Deu uma volta pelos seus estabelecimentos, para se despedir do pessoal e dizer «até breve!». A todos deixou uma palavra de amizade e de esperança. Aliás ele era considerado e respeitado por todos como um bom patrão.
Foi almoçar com a mulher, que conhecera em Caracas pouco depois de emigrar, e com os dois filhos e respectivas esposas. Subiram ao Monte Ávila e saborearam uma óptima refeição olhando a cidade que estava a seus pés, grande urbe com quatro milhões de habitantes.
Voltaram a casa para ir buscar as malas, que já tinham ficado preparadas, e dirigiram-se ao Aeroporto Internacional de Maiquetia. Preenchidas todas as formalidades, chegou a hora do embarque e dirigiram-se para o avião que os traria até Lisboa. Rodrigo, mais uma vez dividido: tristeza por partir, mas ansiedade e alegria por voltar ao seu Alentejo natal.
◊◊◊◊◊
A viagem levou muitas horas, mas Rodrigo, entre o jantar, a projecção do filme e o pequeno-almoço, já de manhã cedo, não conseguiu pregar olho.
Relembrou a sua adolescência, os seus pais e o Alentejo natal. A falta de trabalho e quase sempre sazonal… A necessidade que todo o alentejano sentia, naqueles começos dos anos 70, de emigrar nem que fosse para a Capital.
Por intermédio de um tio, irmão do pai, conseguiu um contrato de trabalho numa padaria em Caracas. Os pais, com as suas economias, pagaram-lhe a viagem e ele lá abalou numa viagem contrária àquela que estava fazendo agora…
Trabalhou muito, tanto naquele emprego como numa oficina de reparação de automóveis. Chegara a dormir apenas quatro horas por noite. Juntou dinheiro. Os velhotes, donos da padaria, deram-lhe sociedade tal a confiança e a gratidão pelo modo como ele geria o negócio. Conheceu Urbano na oficina de automóveis e conversaram enquanto ele lhe reparava o carro. Urbano Martinez tinha um super-mercado, gostava muito dos portugueses (conhecia muitos madeirenses) e procurava justamente alguém em quem pudesse confiar, que fosse trabalhador responsável, para o ajudar a desenvolver o seu comércio. Era um negócio muito lucrativo se bem orientado… Logo ali combinaram um encontro para a noite seguinte.
◊◊◊◊◊
As coisas aconteceram depois de uma maneira vertiginosa. Transformaram a padaria em super-mercado de bairro, com a anuência e entusiasmo dos velhotes e em breve abriram um terceiro. Rodrigo investia tudo, trabalhava como um louco (quem disse que os alentejanos eram lentos?) e gastava apenas o estritamente necessário para viver com dignidade.
Conheceu Encarnación, namoraram pouco tempo e, vendo que ela era uma linda e honesta moçoila, logo aprazaram o casamento, do qual viriam a nascer um casal de filhos. Tiago e Rita como já viram. Em breve estavam adultos, com estudos e com empregos. Quando a vida corre bem, até parece que o tempo voa!
Os negócios e a vida familiar, durante anos, correram de vento em popa. A ensombrar toda esta felicidade, apenas a notícia da doença e morte de seus pais. Ainda pensou ir aos funerais, mas o próprio irmão, que vivia com eles em Avis, cada vez lhe fez ver que não valia a pena, pois o funeral seria logo no dia seguinte e nada adiantava. Além disso evitava a despesa. Os velhotes da antiga padaria também faleceram entretanto, não sem antes terem feito testamento a favor de Rodrigo, visto não possuírem família.
Antes, soubera do 25 de Abril e teve ganas de vir a Portugal. Ele viu pela televisão a alegria do Povo e as manifestações, a reforma agrária, os alentejanos a tomarem as terras e o destino nas suas mãos… Lembrou-se então que, também ele, em Avis, chegara a fazer uns servicitos para o «Partido».
Com tristeza viu que, passados tempos, houve certos exageros e que, a pouco e pouco, tudo voltava àquilo que chamavam «normalidade». Pelo menos, recuperara-se a liberdade e acabara a repressão, o que já era muito importante! Havia que ter esperança.
◊◊◊◊◊
O avião começou a descer, atravessando as nuvens. Em breve se viu uma nesga de mar, depois a Ponte 25 de Abril, o planar sobre a cidade e a aterragem suave na Portela.
Saíram do avião, passaram a polícia e a alfândega e foram alugar um automóvel que, para além de lhes ser útil durante o tempo que passassem em Portugal, lhes permitiria o transporte imediato para Avis. A casita dos pais ainda estava devoluta, segundo lhe contara o irmão e assim não teriam problemas de alojamento.
Atravessaram a Ponte Vasco da Gama, que só conheciam pela televisão, e em breve atravessavam as terras de sonho rumo a Avis. Encarnación não dizia palavra para não interromper os pensamentos do marido, tão comovido com este regresso. Tinham passado mais de 30 anos mas, ao aproximar-se da terra em que nascera, Rodrigo começou a reconhecer tudo. Via-se mais gente nas ruas, mais automóveis do que antigamente, mas as várias Igrejas lá estavam, desafiando o tempo, o Pelourinho, a Torre de Santo António, as Muralhas do Castelo, o Jardim do Mestre… Mesmo pertinho, a casa de seus falecidos pais, com o irmão de braços abertos à espera. Cabelos todos brancos. Como o tempo transforma as pessoas! Abraços e beijos, misturados com lágrimas, e apresentação de Encarnación que se sentiu bem acolhida e alvo da curiosidade dos vizinhos. Iam começar as férias de que tanto precisavam.
◊◊◊◊◊
Nem por uma vez, Rodrigo pensou ficar em Portugal. Sentia-se aqui bem, mas a sua vida era na Venezuela. Os negócios, os filhos, os hábitos e amigos granjeados em mais de três décadas de emigração… Vendo bem, ele já se sentia quase venezuelano e, por vezes, até tinha dificuldades em falar português.
Na primeira oportunidade, foi ao cemitério curvar-se junto dos restos mortais de seus pais. Foi como se lhe tirassem um peso de cima. Era como que o final do ritual de luto.
Percorreu o Alentejo de ponta a ponta. Encarnación entendeu bem a razão porque Rodrigo lhe chamava as «terras de sonho» …
Todos os dias falava para os filhos e para Urbano. As coisas pareciam acalmar-se. O negócio quase se normalizara. Às manifestações com o bater de caçarolas (a lembrar o Chile) e às greves, respondiam os apoiantes de Hugo Chávez com manifestações monumentais e vivas ao líder venezuelano. Rodrigo torcia para que tudo se normalizasse e para que Chávez conseguisse fazer as reformas que prometera, mesmo à custa de algumas cedências às forças mais conservadoras e, claro, aos Estados Unidos… Chávez aguentava-se mas, na América Latina, com os militares nunca se sabe. A recordação de Allende e Pinochet ainda estava fresca na memória, apesar dos anos já passados. Também o mês de férias se passou rápido. Mais do que devia… Últimos telefonemas para Caracas e confirmação de que tudo estava mais calmo. Falava-se num eventual referendo e, felizmente para Hugo Chávez, os americanos estavam agora mais preocupados com o Iraque e com a Coreia.
Comoção nas despedidas, também de novos amigos, e promessa de que agora viriam mais vezes a Avís, que passara a ser igualmente a terra dos sonhos de Encarnación.
◊◊◊◊◊
Outra travessia do Atlântico, a terceira, e Maiquetia à vista. Desembarque e confirmação de que a situação estava calma, quase normal.
Relembrando embora o seu Alentejo, Rodrigo olhou resoluto em frente. Era um homem dividido entre dois países, mas a esperança, a calma, voltaram a habitar o seu coração. Confiava no futuro. Tudo correria bem. Principais desejos: ser avô e voltar a Avis. Os deuses não o abandonariam… Estava certo disso!
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