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Contos-->Galinha psicodélica -- 02/09/2000 - 22:59 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Rio de Janeiro, anos 60.
Cabelos compridos, camisão florido, calça vermelha boca-de-sino velha de guerra - "paz e amor, bicho!", nem era preciso dizer mais nada.
Uma ponta, às vezes, é o quanto basta para se fazer a cabeça. Um lance que funciona, mas muito mesmo, quando o bagulho, por exemplo, começa a rarear, ou a grana anda curta. Funciona ainda em tempos de arrocho por parte dos da lei.
É o quanto basta, se a alma não é pequena, cabeça povoada por guitarras distorcidas e, depois, quebradas ao término de algum concerto. Muitos deles entraram para o domínio da lenda. Monterrey, Woodstock, o fim do mundo. Cena longínqua e inacessível. Papos intermináveis noite adentro, caras muito, mas muito loucos mesmo! Bandas que saíram do nada e chegaram lá. Droga pesada. Sexo selvagem. Festas intermináveis. Capas de disco. Revistas especializadas. Aquele papo de que Paul havia morrido. Bastava ouvir a última faixa do Sgt. Peppers. Aquela minúscula, só uma frase. Mas ao contrário. Esse o grande barato. Ou aquele outro papo sobre a Yoko. Que era artista plástica, japonesa e que fez a cabeça do grande Lennon, acelerando a - já praticamente inevitável (pegava muito bem aquele olhar de quem possui um domínio quase científico sobre o que está falando) - dissolução do fabuloso quarteto de Liverpool.
É isso aí, uma ponta é o quanto basta!
A outra, guardara no bolso da camisa para quando a bola fosse baixando, acabou sendo encontrada por um dos milicos que lhe deram aquela geral inesperada. Sem conhecer muito bem a cidade, inadvertidamente se metera por umas quebradas. O que ele tinha em cima era, na verdade, só um trocado para o ônibus na volta, o convite para o show de uma banda que ainda não conhecia (mas diziam que era da pesada!) e... ah! sim, ali estava ela, a fatídica. Prova cabal de dois delitos em um, como queria o fardado. Quanto ao primeiro, nada a fazer, já estava consumado. Já o segundo, aí que a porca torcia o rabo, para arrochantes e arrochados: o ainda por consumir. Uma negra. Negríssima.
Jogado para dentro da cela apinhada, o hippie paulista, interiorano, sentiu sobre ele o peso daqueles olhares. Sobre a sua figura, digamos, pouco convencional. Pelo menos ali, naquele aglomerado sub-humano (duvido, em todo caso, que ele fosse, ali, capaz de reflexão tão elaborada, com esse vocabulário...).
Era como se já o despissem do camisão florido, em cujo bolso - ele apalpara, na dúvida, aproveitando um vacilo do milico - resistia, ainda, valente e insidiosa sementinha. Pressentia o instante em que as sandálias de couro cru, companheiras fiéis e inseparáveis de tantas viagens, lhes fossem arrancadas, à força, dos pés agora mais do que fatigados.
Também de couro cru, também inseparável, a bolsa a tiracolo. Para tod o sempre estufada de inutensílios inconfessáveis, essa tinha ficado com os homens. Na dúvida. Aquilo, ali dentro, era uma maçaroca indevassável.
E temia pelo pior. Maldita hora! Bem que ele podia ter posto aquela outra de flanela, florida. Mas não teve por onde. Estava muito suja. Tinham sido ums trinta caronas, por aí, de onde morava a São Paulo, primeiro, e depois de São Paulo ao Rio. Sim, ele pressentia aquilo. Era como se já se atrevessem a meter a mão no que de mais sagrado ele ostentava, a eficiente e prestativa calça vermelha boca-de-sino velha de guerra.
Ao apoiar firmemente as costas contra a parede, andando arisco e de fastos, pensava ter erigido uma fortaleza inexpugnável. Eram ele e a parede, um escudo. Será que suficiente? Contra a bad trip que se avizinhava, insidiosa, sinistra. Com mais do que prováveis atentados à sua hippie integridade.
Súbito ouviu quebrar-se o silêncio, que só fazia realçar a sua respiração ofegante. Lapso de alguns poucos intermináveis segundos. Era a intervenção banguela e sacana de um dos seus, agora, companheiros de "pousada": "É isso aí, rapaziada, é isso aí. Hoje tem galinha psicodélica."
E ele, ali, duro feito uma pilastra, colado contra a parede. E aquela frase teve o condão de desatar gargalhadas estrídulas, impenitentemente medonhas. Não havia como fugir à dura realidade dos fatos, mesmo porque, àquela altura dos acontecimentos, a bola, inexoravelmente, já ia mais do que baixando. Incômoda, uma certa larica era o prenúncio apenas de que atravessar a noite e a madrugada não ia ser mole. Como não ia ser refresco - dura, duríssima realidade dos fatos - salvar a calça vermelha boca-de-sino velha de guerra. Tantos serviços prestados à humanidade a caminho da Era de Aquarius, em geral, e à sua mente de natureza pacífica e libertária, em particular. Impossível salvá-la do olhar careta, machista e perverso daquelas almas penadas, empenhadas em disputar espaço em poleiro único de tão minúscula gaiola.
Mas seria desafiado a pôr abaixo a parede. E isso ele queria ver. Ele e a parede, pensou. Uma fortaleza. Um escudo. Queria era ver quem ia se atrever a cantar de galo.
Era ele, querendo, por toda a lei, botar em funcionamento o juízo que, desde pequeno ainda, ouvira ser de galinha. E, agora, ainda mais essa: galinha psicodélica. Na dúvida, decidiu-se por não pregar o olho de jeito ou maneira.
Também tinha o seguinte: já que estava mesmo nessa barca, não ia deixar passar a oportunidade. Poder dizer, depois, que já tinha visto o sol nascer quadrado!... Neguinho não ia acreditar, pensou. Depois ficou muito puto. Essa mania de pensar piada sem graça e fora de hora.
Atento ao mais imperceptível movimento - ainda que em esboço -, tratou de pôr na boca a sementinha. Aquela. A que sobrara escondida. No fundo do bolso do camisão florido.
Mastigar. Mas muito bem mastigada mesmo, pensou. Bem moída. Era isso aí.
Um brilho que fosse! Uma luz! Um tchans! Quem sabe?
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