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Humor-->Xuxa Afro: Um Mito Profanador -- 04/09/2000 - 13:00 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“Conheci uma crioula de encanto ignorado./ A graciosa morena, cálida e arredia,/ Tem na postura um ar nobremente afetado;/ Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,/ Seu sorriso é tranqüilo e seu olhar ousado.”
Charles Baudelaire


A Xuxa afro-brasileira, personagem criada pelo músico e ator Geovane Sassá, que se apresentará no sábado que vem no festival da música popular brasileira junto com os componentes de grupo Tambolelê, busca parodiar Xuxa Meneghel, uma gaúcha de clara ascendência européia e corpo escultural. A “rainha dos baixinhos” exerce seu reinado submetendo seus súditos a seu otimismo kitsch e a sorrisos pré-fabricados. A Xuxa Negra se autoproclama “rainha dos neguinhos”, constituindo-se mito dessacralizador. A personagem se cristaliza absorvendo elementos do belo grotesco e cômico que:

São duas formas do belo que se tocam, que se enlaçam até se confundirem numa única emoção. De comum, têem o elemento do ridículo, que nunca pode faltar nelas; de diferente, têm um grau diverso da deformidade ou da caricatura da verdade.
Assim como as cócegas e certas formas de volúpia confundem as fronteiras do prazer e da dor (demonstrando-nos pela centésima vez que as nossas classificações são brinquedos infantis, fios de seda tecido entre os granitos da natureza);assim como o grotesco e o cômico parecem folgar nos confins do belo e do feio, confundindo-os um com o outro, com mão travessa.1

A personagem de Geovane Sassá toma conta do ator, possuindo seu corpo numa transmutação exuberante e esdrúxula como a descida de uma pomba-gira ou a queda de um anjo. A Medusa de Ébano possui uma força que se assemelha a um grito primal, telúrico, dionisíaco. A Xuxa Negra dá à sua homônima um espelho circense: a loira narcísica e ariana, ao tentar vender o mito da supremacia branca num país mestiço, é subitamente colocada frente a frente com uma imagem caricata e deformante de si mesma, mas que mostra a modelo e dublê de artista na sua verdadeira face; a modelo "alemoa" é denunciada, suas vísceras são postas à mostra. Fechou-se o ciclo. A divindade africana lança uma luz desmistificante sobre a face da Eva da burguesia brasileira, petrifica-se a megera. Aquilo que na moça gaúcha era pura empulhação, sorriso de propaganda de creme dental, manipulação mercadológica e ingenuidade calculada, ganha um contraponto de impulsos vitalistas, convites indecorosos à fruição imediata dos sentidos e volúpia das sensações mais lúbricas.
Exibindo seu corpo de ninfa multicolorida, cortesã apocalíptica e sensual, nossa personagem remete a obras palpitantes de vida e vigor como os quadros de Jackson Pollock; ela é, como as telas do referido pintor americano, uma rede intrincada de gotas, redemoinhos e salpicos. “A pintura tem vida própria” - disse ele uma vez - “eu tento deixá-la acontecer”. Geovane também poderia dizer o mesmo com respeito às suas criaturas.
E a criatura em questão usa um óculos de armação antiga e demodeé. São óculos de velha encarquilhada que escondem olhinhos brilhantes de moça nova.
Sendo assim, a Xuxa Preta roda a baiana com a europeizada e etnocêntrica vedete da TV.
A xuxa negra é santa e prostituta, homem e mulher, frágil e sedutora, um misto de Marilyn Monroe e Benedita da Silva, e parece ter nascido da conjunção carnal de Pelé e Hebe Camargo.
Ao apresentar-se, a Xuxa Preta evoca um clima de confraternização que também está presente, por exemplo, no rito do vodu, no Haiti:

O vodu é, basicamente, a religião e o culto aos espíritos ou divindades chamados loa. A classificação dos loas é muito complexa, não somente por causa da grande diversidade de origem geográfica e étnica dos africanos trazidos ao Haiti, mas também pela existência de uma infinidade de divindades regionais ou locais.(...)Cada loa tem sua morada particular: no mar, num rio, numa montanha ou árvore, de onde vem para ajudar seus servidores fiéis, quando ouve suas orações ou o som dos tambores sagrados pedindo a sua presença. Cada loa tem também seu dia ou dias próprios durante a semana.(...) As cerimônias do vodu são executadas em locais abertos ao público.2

Igualmente são feitos às claras os rituais lúdicos da Xuxa Afro. Podemos dizer que Geovane Sassá, também percussionista, inconscientemente encarna um loa que sobrevive na sociedade de consumo.
Quando achamos que já rimos da piada, a Xuxa Africana nos dá um tapa de luva, transcendendo a herança católica de Minas Gerais: ela rebola, nos remetendo ao homossexualismo baiano no tempo de Momo. Digere Minas e silencia impávida como se quisesse nos devorar, colocar-nos de volta para o útero. Uma música picante e, sarapatética, espargirá energia como lança-perfume cintilante.
Só mesmo uma Xuxa Afrodescendente para nascer nos trópicos e afugentar a tristeza destas plagas com uma descarga de alegria tão vulcânica!
Uma Xuxa Preta está ligada ao espírito dionisíaco do carnaval, afinal ela é intrinsecamente brasileira. Ela nos lembra do carnaval do passado, expressão espontânea da vontade coletiva de libertar-se, divertindo-se. Ela está ligada ao caráter dionisíaco e mesmo histérico da festa carnavalesca (no sentido grego de rito coletivo uterino e afrodisíaco) que imprimia à diversão um forte sentido de contestação psicossocial. A personagem também estaria ligada à escatologia e ao grotesco, no sentido que explicita Muniz Sodré:

A Escatologia implica numa atitude cultural com relação à história. A cultura oral brasileira foi marcada, desde as suas origens afro-indiano-portuguesas, por uma Escatologia naturalista - que vê o homem como parte de uma natureza manifesta em ritmos cíclicos, recorrentes. Como o homem estaria integrado organicamente na natureza, qualquer desacerto, injustiça, aberração do estado natural, remediável pelo culto ou pela magia. (...) Essas escatologias influem poderosamente na imaginação coletiva. O portador de deformação física, por exemplo, é percebido historicamente como um desvio da organicidade natural, como monstro (Teratos). Isto gerou em nossa mitologia figuras como o lobisomem, o mão-de-cabelo, etc. Ainda hoje, em cidades do interior do Brasil, o deformado físico (a mulher macaco, o menino com cara de jumento, etc.) é vivido como um fenômeno de origem sobrenatura - castigo dos céus - e, às vezes, como espetáculo, já que pode ser exibido, a dinheiro, em feiras, ou simplesmente vendido como história na literatura de cordel. (...) O ethos da cultura de massa brasileira, tão perto quanto ainda se acha da cultura oral, é fortemente marcado pelas influências escatológicas da tradição popular. O fascínio pelo extraordinário, pela aberração, é evidente nos programas de variedades (fatos mediúnicos, aberrações físicas como as irmãs siamesas, aleijões, flagelações morais, etc.). A esta altura a Escatologia consegue juntar os dois sentidos: o místico e o coprológico.(...) Em Medicina, o termo (Escatologia) tem sentido coprológico_é o estudo dos excrementos.3

É desta tradição popular que a Xuxa Preta, vista pelo público dos programas onde se apresenta como bizarra ou aberrante, se alimenta e se insere.



Notas:



1.Grondim, Marcelo. Haiti, Cultura, Poder e Desenvolvimento.
2. Mantegazza, Paulo. A Fisiologia do Belo.
3. Sodré, Muniz. A Comunicação do Grotesco.



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