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Contos-->O homem que saiu de um conto -- 29/03/2003 - 19:50 (Suzie Tibiriçá) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sentou-se na grande cadeira de couro marrom, escolheu os jornais, separados pela secretária e postos em sua mesa, bem como o café, antes do patrão chegar. Quis os internacionais primeiro, conferiu as notícias políticas, econômicas, algumas sociais. O único som na sala, fria e perfeitamente organizada, do barulho fraco das folhas de jornal... Chegou finalmente ao nacional. Passou pelas notícias do governo, de fusões de empresa, privatizações, acordos... Interrompido. A secretária, muito séria e de voz baixa, porém não tímida, discreta, anunciando com a luz refletida dos óculos, a boca descolorida e os cabelos rigidamente presos, que a reunião das oito seria atrasada, e foi-se retirando imediatamente depois de um com licença, está bem, obrigado. Olhou o relógio, suspirou. Tempo de sobra. Parecia não estar certo, não encaixar, que as coisas sobrassem assim como o tempo, sem nunca se encontrarem, um a favor do outro. Falta de praticidade. Isso sim. O acaso nunca é funcional. As coisas nunca estão a favor, e por isso temos que ser sérios, competentes, responsáveis... Só os homens sérios podem dar ordem no tempo desvairado e desleixado, cheio de artimanhas contra o nosso trabalho. É preciso ter atitude, firmeza... Tomou um gole de café, achou fraco, pediu outro a secretária pelo telefone.
Checou as pastas, todas completas e organizadas. A mesa arrumada. Ordens dadas. Tudo feito. Suspirou. Olhou-se sozinho na sala, recém decorada e com poucos ou nenhum, é, nenhum, definitivamente, nenhum pertence próprio... Fotos, enfeites, nada... Nada que referisse a algo fora dali. Nada para se desviar os olhos do que deveria ser prioridade. Rejeitou até mesmo o computador, Muitas vezes usado indevidamente na empresa, entregando-o a secretária, que o usasse quando fosse necessário. Assim, estaria longe de qualquer possibilidade de fuga. Ele e o trabalho deveriam estar sozinhos, sem distrações, para expurgar o máximo de sua eficiência. Nem mesmo foto de família. Assuntos pessoais não deveriam se relacionar a empresa, o trabalho não deveria ser incomodado. Mas... E se não houvesse trabalho? Se viu sozinho na sala, impotente, castrado. Sentiu uma leve agonia.
Hesitou alguns segundos. Resolveu entregar-se, sem opções, às coluninhas inúteis de crônicas, em tom pejorativo, de um dos jornais, o de cima da pilha, mais perto das mãos, tanto faz, são todos iguais... Nunca lia as coluninhas. Considerava perda de tempo, e um material de baixo valor. Textos aumentados a toa, sobre teses populares (medíocres) e nada novas, nada criativas ou informativas. Folclore de pouca qualidade. Filosofia barata. Desnecessária. Detestava qualquer coisa que se referisse ao povo, sentia-se como se quisessem sentenciá-lo a todo momento de uma criatura abobalhada e estúpida, fraca, cheia de defeitos, uniformizada e fadada, como só os humanos poderiam ser. Também rejeitava todo e qualquer contato social que se extrapolasse a educação. Não tinha filhos, ou esposa, tampouco mantinha contato com os irmãos, que não se tratavam como tais, por puro desafeto. Seria perda de tempo ter que cultivar relações com pessoas, nada especiais, e igualmente as colunas, filosofia e ideologia ridículas. Sem valor. Porém, por pura falta do que fazer, sentença horrível que se entregava, e ausência de outro passa-tempo mais produtivo, começou a ler a primeira coluna ao lado de um desenho, (as notícias sérias deveriam vir ao lado de fotos) qualquer.
Uma tal de Ieda Marcondes, nunca viu mais gorda, não devia ser ninguém. “O homem que saiu do conto”. Título simples, prosaico, quase infantil. Essa tal não deve ter vocabulário, ou só escreve pra gente "simples demais". Leu as primeiras linhas normalmente, pausou, e continuou com estranheza... “Passou pelas notícias do governo, de fusões de empresa, privatizações, acordos... Interrompido. A secretária, muito séria e de voz baixa, porém não tímida, discreta, anunciando com a luz refletida dos óculos, a boca descolorida, e os cabelos rigidamente presos, que a reunião das oito seria atrasada”... Distanciou-se com um empurrão da mesa, na cadeira de couro e rodas. Aproximou-se. E leu isso também. Levantou-se e deu um grito de espanto, horrorizado, seguido de mão na boca, já que havia quebrado o silêncio sagrado do ambiente de trabalho. E leu isso também. Levou as mãos a cabeça, pasmo e boquiaberto. E leu isso também. “Não é possível” , suspirou, e debruçou-se sobre a mesa, encarando a crônica. Leu. "Não é possível". Coçou a cabeça, nervoso, a nuca e voltou a mão na boca. Leu. Ficou pasmo por segundos sem se mover. Leu. Pulou num pé só, chutou o vaso de plantas, jogou as pastas pela janela. Leu. Saiu da sala com a folha de jornal na mão, agarrou a secretária pelos braços, a beijou fortemente na boca, sem maiores movimentos, a soltou e... Leu isso tudo também. Deu um grito desesperado. Saiu aflito pelo corredor, com passos pesados e olhar obcecado. “O senhor está bem?”, gagueja a secretária, elevando a voz, além do normal enquanto ele se distanciava rumo a saída. As pessoas o estranhando. Ele, sempre cheio de etiquetas e modos, andando daquele jeito grotesco e alterado, descontrolado, com os cabelos desalinhados, já com um certo suor no rosto e trajes amassados, sem dizer bom dia, ou dar passagem e com um pedaço de jornal amassado na mão.
Leu tudo isso, dentro do elevador, socou uma das paredes, fazendo-o tremer sem maiores alterações. Passou pelo lobby sem ser notado. Saiu às ruas, sem saber a direção, apenas com passos cada vez mais pesados e certeiros. Leu. Passou por um ponto de ônibus, e duas senhoras e um rapaz o reconheceram e começaram a apontar e cochichar. “É ele! É ele o doutor da história!”. Um homem no bar do outro lado da rua também aponta. "É ele! É ele!". Olhou a todos, sentindo-se ferido e gritou, infantil, “Não! Não sou!” .
Acuado, saiu em disparada, correndo pela ladeira do final da rua, que ia dar na Avenida. Passou por um prédio espelhado, se olhou, sujo e maltrapilho, e virou a cabeça, continuando a correr. Uma mulher, de camisola e roupão, na janela, com o jornal na mão, grita “tá tudo errado,moço!Tudo errado! Sua vida tá toda errada!”. Com terror, apressa o passo, corre mais rápido, perde, finalmente, toda a linha. Perde um dos sapatos, rasga o paletó num gancho de janela de um prédio rosado, a camisa com marcas de suor, o bater forte dos pés no asfalto da rua, o horror. O horror de ter sido retratado e reconhecido. Fechou os olhos. Correu pela ladeira sem ver. Pra não ver as pessoas, nem espelhos, nem nada. Tomado de raiva e dor, rangia os dentes, de punhos fechados e já com os olhos fechados deixando escapar algumas lágrimas. "Pra onde eu vou?", pensou. Abriu os olhos novamente ao escutar a buzina de um carro, bem a sua frente, na Avenida, que por pouco não o atropela. Ele pára. Recua um ou dois passos, paralisado. Senta na calçada, desamassa o pedaço de jornal, alisando-o na coxa. Lê tudo de novo, desde o começo. Desde o “o homem que saiu do conto”, o título que parecia ser infantil e que não prometia nada, a não ser mero entretenimento. Chorou um pouco, com a cabeça recolhida nos braços. “Tudo errado”, lembrou. Levantou-se, se ajeitou. Resolveu tirar o dia de folga...

I. M.
loveibaby@hotmail.com
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