Usina de Letras
Usina de Letras
171 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62268 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10450)

Cronicas (22539)

Discursos (3239)

Ensaios - (10379)

Erótico (13571)

Frases (50658)

Humor (20039)

Infantil (5450)

Infanto Juvenil (4776)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140816)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6203)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O primeiro nome -- 22/03/2003 - 14:11 (Rodolfo Araújo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A mãe de Isabella havia preparado alguns quitutes para receber os amigos da filha, que iriam participar de uma ciranda literária. Enquanto isso, recostado em uma confortável poltrona de couro marrom, lia jornal o pai, Gianni. Sisudo, barba cerrada e dedos grossos – fruto do árduo passado rural na infância – derretia-se somente diante daqueles que considerava “cultos”. Entretanto, suas armas críticas eram tão pontiagudas que quase nenhuma pessoa conseguia passar ilesa pelos crivos incisivos do homem. Patriarca, centralizador, gostava de notar sua voz refratar-se em forma de cumprimento de ordens, tanto por parte da mulher, Laura, como da jovem e única filha, por quem nutria um contido e fervoroso apego. Ainda assim, fazia-o por não por vaidade de líder, mas por plena insegurança em ver as duas mulheres que mais prezava à deriva no mundo, por qualquer motivo. Funcionava como uma parede contra os males que tentavam acometê-las. Entretanto, sua dedicação era invejada, obviamente, por muitos – sobretudo os vizinhos. Uns até arriscavam hipóteses sujas, que passavam pela pedofilia, violência conjugal e demais barbaridades que, na verdade, não passavam de boatos sem o menor alicerce.
Gianni casou-se com uma flor, uma senhora que sempre agiu com a sutileza de pétalas. Voz tímida e sussurrante davam a Laura o que nenhuma outra mãe daria a Isabella. Era a real antítese da rudeza refreada do pai. Ainda assim, não contrapunha seus pensamentos. Se Gianni deixasse marcas profundas por frases desmedidas, surgia a mãe para estancar a ferida e providenciar as mais poéticas curas. Senhora alta, loira, corpo esguio, heranças que conseguiu transmitir à filha, que já acenava com seus dezoito anos.
Fruto de uma flor escondida na rocha, Isabella mostrava, graças à sensibilidade herdada da mãe, um prazer caríssimo pela literatura. Rabiscava versos desde os seis anos, quando foi ensinada por Laura que a melhor forma de dar vazão aos temores era, justamente, escrever. Assim – dizia a mãe – era mais fácil de destruir os inimigos, pois, postos em versos, ao invés de morrer, tornavam-se lindos poemas. A menina havia vencido as tentações que o rádio e a televisão começavam a mostrar.
Poucos anos depois, Isabella passou a freqüentar grupos de escritores que trocavam impressões, críticas e juras de amor sobre um palco circular a poucos metros de sua residência. Já imaginavam os progenitores que um eventual genro germinaria daquele convívio. Lá, havia poetas em todos os tipos de pele de cordeiro. A maioria, obviamente, não agradava a Gianni, tradicional reprovador daqueles que arriscavam jantar em sua casa e travar conhecimento por alguns minutos. Ninguém, até então, conseguiu resistir ao peso das frases e armadilhas lógicas do homem, que mais era um estrategista dedicado a humilhar os pretendentes de Isabella para adiar o quanto fosse possível o desligamento da filha em direção aos cuidados e braços de um estranho. Isso, de certa maneira, ocorria em vão, já que, apesar de poetas, todos estavam suportados por famílias abastadas, o que não favorecia os corações destes pretendentes com o que Isabella chamava de “verdadeiro sentimento”. Exigente, pois, assim como o pai. Até os vinte e um, nenhum rapaz que realmente fizesse jus aos sonhos arrojados da pequena flor.
E, sozinha, ingressou nos corredores antes inacessíveis da Universidade. Abraçava com vigor os livros que lia, sonhando em ser, algum dia, autora de linhas iguais ou melhores àquelas que absorvia diariamente.
Despertava rubor invejoso na maioria das colegas, as quais, em grande parte, vestiam casaca de amigas, já que, com o inimigo a sorrir diante de si, torna-se menos doloroso vencê-lo. Conciliava neurônios velozes e vestidos impressionantemente bem contornados, que pareciam especialmente adestrados, tal era a forma que conseguiam impelir ao corpo calculado pelos bons ventos da natureza. Seu caminhar, fruto da postura polida que aprendera no rígido claustro familiar e no rebuscamento dos livros, ofuscava ainda mais quem desejava sobrepujá-la de alguma maneira.
Toda essa descrição era o que se apresentava à distância, ou seja, a primeira impressão já causava efeito aterrador nos espectadores bons e maus da vida. Por meio de uma espécie de “seleção natural”, poucas dezenas enchiam-se de coragem para enfrentar a aura de Isabella. E, pior: mais ainda se tornavam devotos. Voz serena, que chegava aos tímpanos alheios em passos delicados, como uma bailarina a tomar doce o rumo de casa após uma apresentação de gala. Um carinho leve, que superava a sutileza da seda, mas, concomitantemente, convidava os ouvintes a mundos de delírio até então inimagináveis para os mesmos. A articulação de Isabella era a forma mais prazerosa de torpor já criada. Uma flor vermelha, que se abria a cada palavra, renovava a vida diante daqueles que estavam diante de seus traços unicamente por devoção, a aguardar por um minuto de carícia oriunda de uma aura tão dourada.
Por conseqüência, aumentavam os jantares na casa de Gianni. Semanalmente, pretendentes que Isabella não podia conter, arriscavam vencer o vivaz italiano. Era como uma muralha: os infantes ricocheteavam nas amargas frases do homem e sem seus labirintos mentais como balas de borracha. O mais interessante era notar que, quantos mais fracassavam, mais loucos surgiam. Os casos chegavam a um grau considerável de comicidade, tão patéticos que eram. Alguns demonstravam habilidades atléticas para Gianni, enquanto outros levavam um quadro negro para convencerem o homem dos poderes matemáticos dos quais eram dotados. Entretanto, nenhum apetecia ao paladar de Isabella e, obviamente, de seu pai.
As águas, que pareciam permanentemente revoltas, retrocederam e os corajosos tornaram-se progressivamente escassos, até sumirem. Para as amigas que imaginavam Isabella em depressão por conta disso, um arrebatador engano as tomou pelos pulsos. Continuava a jovem compenetrada nos estudos e não menos cordial e sorridente. Desabrochava a cada alvorada e parecia não ter como perder a cor vívida que sua pele exibia.
Em um dos dias chuvosos do rápido verão, Isabella resolveu ir até à biblioteca, mas foi um pouco infeliz na idéia. O lugar estava lotado, pois a maioria havia pensado exatamente na mesma saída. Examinou bem e notou, ao fundo, uma vaga. Aproximou-se de um homem magro, que empunhava com bastante vigor uma antiga caneta, que parecera um presente de avô. Suspirou, tomou coragem e pediu licença para acomodar-se diante dele:

- Posso?
- Claro, tome cuidado apenas com esses papéis – respondeu a tímida voz, que não levantara as pupilas por um centésimo sequer.

- Tudo bem, fique calmo...nossa, sua mão treme! O senhor precisa de algo?

- Tremo porque sinto.

- Sente o quê? Dores?

- Da alma.

- Oh, desculpe...é melhor começar minha leitura. Perdoe-me...

- Tudo bem, nada que me atinja mais do que as lanças que tenho no peito.

- Lanças?

Neste momento, Schneider levantou os globos na direção de Isabella e, imediatamente, disse, com a voz embargada:

- Sim...lanças...

Ao perceber a profundidade resguardada por aquela pausada e desesperada frase, a jovem resignou-se e, sem compreender o que havia dito o alemão, acomodou-se na vaga, o que não deixava de configurar-se como um ato de coragem. Afinal, nem todas as pessoas compreendem nervos à flor da pele, em pulsão constante, cuja vitrine são dois olhos prestes a esvaírem-se no mais cortante destempero. Era, pois, a silhueta de Schneider.
A usual empáfia aveludada de Isabella ruiu. Leu duas páginas de seu Stendhal. Quando foi dobrar a primeira folha, viu sua mão e a do alemão na mesma direção. Comparou os movimentos. Uma, trêmula, madura, com a pele rija, chocava os dedos contra a superfície do móvel. A outra – a que podia controlar – desejava apenas trocar a página. Entretanto, enfrentava uma paralisia momentânea. Inconscientemente, queria saber o porquê daquele descontrole. Algo a convidava a melhor conhecer tão pedintes olhos, cuja imagem que ilustravam era de rudeza, resistência, distância. Em um impulso rompante, os nervos venceram a filha de Gianni, que segurou firmemente os inquietos dedos de Schneider.

- O que está acontecendo? Precisa de ajuda sim, veja só como eu estava certa! Espere só um minuto que...

- Não, não tente.

- Mas...

- Não. Deixe-me aqui com minhas lanças. Aliás, está lendo Stendhal, tem um bom gosto.

O peso da voz do alemão abria entre os poros de Isabella feridas às quais não estava acostumada. Nunca havia sido um homem rude com tão sensível rosto, com tão flutuantes gestos. Preferiu permanecer calada. Passou por mais algumas linhas de seu livro vermelho, até que desviou a atenção para as expressões do alemão.
Schneider escrevia mergulhado em um transe que o fazia movimentar rapidamente a caneta, da qual floresciam letras disformes, sem regras, sôfregas. Versos curtos, rodeados por exclamações. Queria gritar, permitir-se à loucura, ganhar os jardins da Universidade, despir-se, juntar-se aos grãos do solo, beber as gotas que repousavam intactas sobre as folhas das árvores que da chuva acabavam de se safar. Entretanto, redigia. Desenhava, veloz e voraz, cenários que transfiguravam seu rosto. Separava os lábios, mas deixava os dentes cerrados, em contornos de esforço. Um parto.
E este movimento repetia-se em dezenas de folhas. As palavras pareciam iguais, mas ordenadas sempre sob diferentes critérios, os quais somente os devaneios do germânico eram capazes de elucidar. Papéis que pareciam usados, amarelados; poderia ser fruto de uma doação. Schneider vestia-se de forma alinhada, não lhe sobravam tecidos sobre os punhos, tampouco sobre os pés. Paradoxalmente, tão fulgurante nas ações e matematicamente produzido em seu rótulo.
Foi o que Isabella pôde contemplar no espaço de um minuto. Não se tratava de um homem comum. Além do masculino: ser humano. Os evidentes nervos, o silêncio contido, a timidez brusca daquela pessoa que por conspirações de uma tempestade, acabou por estar ali, dando à luz poemas indecifráveis, mas doces pelo que a menina conseguia ler e, com um pouco de imaginação, abstrair. A tormenta havia regalado a jovem com uma flor, a qual estava materializada ali, embrutecida e, simultaneamente, sensível. Não resistiu e voltou a interromper os partos do alemão:

- Posso ler um desses que está fazendo?

- Stendhal é melhor – castigou Schneider.

Isabella parecia não ver mais ninguém na biblioteca. Os corpos sublimaram-se, volúveis. Estavam todos ali, posicionados da mesma forma; porém, sentia-se em um universo deslocado, um encanto paralelo, sobre o qual não podia refletir. Este sopro insuflou a coragem da alva entorpecida, que disse:

- Pode ser melhor, mas gosto de seguir as minhas vontades. Onde já se viu um poeta esconder o que escreve? Isso deve ser público! Está vendo isso aqui, entranhado nessas folhas? É sentimento! Perdemos isso, o senhor sabe! Onde estão os cumprimentos nas ruas, os caminhantes felizes, as passantes com expressões joviais? Estamos entregues, absolutamente presos a uma frieza, a uma previsibilidade que me enojam! Quem lê, hoje em dia? Quem escreve? Ninguém, ninguém, caro...

- Schneider, senhora. Contenha-se, isso é uma biblioteca!

- Não quer ouvir? Ouça! Se pudesse, gritaria novamente todas as frases!
Não sente orgulho de seu dom? Pois então o abandone! Escrevo, amo os versos, as Letras e alquimia que as cerca! Sei da perdição que estrofes podem causar, sei da sinceridade que um poeta pode emanar. Se eu fosse o senhor, estaria envergonhado, pois, pelo visto, nada mais é do que mais um freqüentador infame dos círculos de literatura, que mais sabem inteirar-se na alta sociedade do que propriamente executar esse trabalho tão nobre, tão...

- Eu acho que a senhorita está um pouco exaltada...

- Digo o que penso, somente isso. Confesso que não costumo perder as rédeas desta forma, mas não posso deixar um poeta morrer assim, com o que escreve somente para si mesmo! Deixe-me ler um verso seu...

Schneider escondeu as folhas, como uma criança amedrontada, prestes a ter seus segredos violados.

- Vamos, senhor Schneider, permita! Vejo que é um ser humano sem o mínimo de coragem...um pequeno cervo indefeso, sem o ímpeto, a personalidade dos honrados que tanto admiro...acho melhor mesmo voltar para meu Stendhal.

Isabella mostrava fulgor, deixava a face enrubescida causar náuseas ao poeta que se arriscava a encará-la um pouco mais. Diante das cortantes frases da moça, o alemão viu-se completamente envolvido por uma força que lhe faltava. O temeroso poeta estava diante do seu berço faltante, do manto que deveria envolver-lhe, protegê-lo dos medos e intempéries da vida. Schneider, pouco a pouco, concluía que Isabella era o destemor que a chuva fizera germinar em sua vida.
Um intervalo de aproximadamente dez minutos transcorreu, quando Schneider desdobrou um dos papéis amassados. Colocou-o sobre a mesa, estendeu os longos dedos da mão direita e arrastou-o até que tocasse a pele a mulher que lhe fazia fronte. Isabella, como se esperasse a atitude, agiu naturalmente, sem estupefação:

- Muralha forte, mas cedeu. Obrigada, poeta, vamos ver do que é capaz.

O semblante adulto de Isabella percorria os versos pausadamente. Segurava a folha com o cuidado que Schneider não tinha. Tratava a criatura com muito mais destreza e apreço que seu próprio escultor.

“Floresceste, repentina, fruto rubro

Da densidade de minha desventura,
Elucubro:

Diante, logo, de poeta covarde
Radiante em versos sem alardes
Suplicante em silencioso fulgor
Nada mais do que um refém do temor”

- Sofre bastante, mas prefiro este produtivo fardo. Saem dele belas notas, escreve bem, parece que tem mãos orientadas para tocar, invariavelmente, o coração do outro. Pertence ao senhor esta penúria?

- Sim, não tenho muita habilidade para registrar nos meus versos o sofrimento alheio. Muitas vezes considero isso o mais completo retrato do egoísmo literário, mas é o meu limite, é onde consigo chegar. Se minhas forças não permitem, que assim seja, até o dia em que este egoísmo e estes versos perderem a fonte de vida.

- Não pensa escrever em alegria? Já escreveu motivado por algum sorriso?

- Já, claro, mas não é o usual. Bons momentos são flores de outono para mim. Florescem com a intenção de voarem, perderem-se e deixarem como herança somente a saudade, a cicatriz que faz jorrar gotas adocicadas de um sangue gasto à toa, sem validade alguma.

- Arrepende-se do que sente, do que escreve?

- Do que faço, sim; do que escrevo, não.

- Mas, senhor...

- Schneider.

- Schneider, se não abrisse seu peito aos punhais, seus versos não existiriam. Trocaria seus versos pela sorte?

- Talvez.

- Escreveria em ode à sorte?

- Não sei. Pelo visto, sou invisível. Meu outono nunca será primavera.

A jovem perdera completamente seu interesse por Stendhal. Viu-se com o rosto apoiado sobre as duas mãos, como se estivesse posicionada em idolatria a uma pessoa com a qual havia sonhado por noites em conversar. Devaneios noturnos sem rosto ganhavam, pois, contornos reais, em concretude castigante, trêmula, tensa, indefinida. Não se fazia possível calcular o que Schneider poderia dizer três minutos adiante.
Mesmo assim, o diálogo foi interrompido por um imperioso silêncio, que aparentava necessário. Despertaram reflexões mútuas. Schneider tentava descobrir, aflito, qual seria a origem de tão venturosa mulher. Isabella projetava um encontro – sabia que tinha sob seu domínio um poeta que sobrepujava, somente com o lacônico olhar, todos aqueles que enfrentaram Gianni e, obviamente, foram vencidos pela impalpável intelectualidade e o desprezo conseqüente da jovem.
Seguindo a ordem de iniciativa, Isabella retomou o diálogo:

- Schneider, gostaria que conhecesse também meus versos.

- Mostre-os, estão dentro deste livro? – referiu-se o alemão ao Stendhal que repousava obsoleto sobre a mesa.

- Não, estão em minha casa.

- Pois então os traga amanhã, estou sempre por aqui, a fugir da chuva.

- Ultimamente não tem chovido, Schneider...

- Punhais sempre me furam como tempestades impiedosas.

- Quais são esses punhais que tanto menciona?

- As facetas incontáveis da solidão, as manifestações múltiplas do desamor.

Isabella parecia vencida. Toda a sua habilidade fora colocada em xeque pelos desvios psicológicos e líricos do poeta que acabara de conhecer. Estava materializado “o verdadeiro sentimento”, a fusão entre simplicidade e radiante fervor. Novamente, o espírito dos dogmas ruiu entre os dois:

- Gostaria que conhecesse meu pai.

- Quer que eu conheça quem? Seus versos ou seu pai?

- Ora, Schneider, os dois! Os dois!

- Calma, não se exalte novamente, por favor. Vejo que você não vai jogar sobre mim mais terra. Como faço para ir até sua casa?

- Eu farei. Venha.

Stendhal e os poemas ficaram sobre a mesa. Foram recolhidos por um faxineiro da Universidade, que colocou a obra sobre a prateleira de livros consultados. Os papéis adormeceram ao lado de copos plásticos, cinzas de cigarro e outros semelhantes – no lixo.

Isabella chegou apressada, o que não era habitual. A placidez de Laura havia tomado formato de preocupação. Afinal, o que os ponteiros não fazem com os escravos do tempo que somos!

- Menina, por que demorou tanto assim? Seu pai está furioso!

- Choveu muito forte, não pude voltar, ou gostaria que ficasse doente? Foram minutos que me pouparam bastante, fique certa disso!

- Por favor, não repita isso! Avise-nos, ao menos.

Como todos os embates entre filhos e pais, a conversa perdurou até a rápida exaustão que este tipo de diálogo traz às partes.
Gianni apareceu, caminhando tranqüilamente, com um leve e irônico sorriso no canto da boca. Disse, firme, como ordena o hábito dos chefes familiares:

- Filha, reparei que, ultimamente, os rapazes não andam muito interessados nos pratos de sua mãe. Qual seria o motivo?

- Ah, papai, o senhor sabe que é justamente por conta das suas. Sempre tem armas em punho, mas lhe confesso que fez muito bem em todos os casos; nenhum era muito digno do mínimo sentimento. Uns materialistas com raciocínio raso, aparente. Nada tentador.

- Você sabe que eu confio em seu julgamento, filha. Sinto falta somente dos embates homéricos que travei com estes pretensiosos.

- Faça-se a luz, papai! Entre, Schneider!

A porta rangeu, enquanto os brilhantes sapatos italianos do alemão chocavam-se ritmados sobre o lustroso chão de madeira que revestia os passantes da sala. Sacou as mãos do bolso, descolou os vultuosos cílios e dirigiu a atenção, primeiramente, para Gianni, estendendo o braço direito:

- Boa noite, senhor...

- Gianni. Muito prazer, sente-se ali, naquela poltrona. Aguarde um minuto enquanto trago um delicioso Flaubert para nós.

- Senhor Gianni, desculpe-me, mas não se bebe Flaubert, a não ser que esteja fazendo uma metáfora!

O velho italiano sorriu, mais uma vez:

- Passou pelo primeiro teste. Afinal, uma garrafa de vinho não seria tão perfeccionista com as Letras!

- Não mesmo, senhor Gianni, acho até que sou um pouco mais indócil com os erros do que ele.

- Além de escritor é pretensioso?

- Não sou nenhum dos dois. Sou uma espécie de operário, de proletário dos versos. Dói-me muito arrancar cada um deles do baú em que se encontram. Nada mais justo do que verificar a disposição, a rima, a musicalidade que as desventuras são capazes de produzir. Nada mais recompensador para quem sofre em nome de uma causa, digamos, “letrada”.

Isabella prostrava-se ao lado de Laura. As duas abandonaram o preparo da perdiz que assava – ou melhor – carbonizava no forno. Os olhos arregalados e incrédulos denunciavam que a visita era corriqueiramente inédita. Contradição perfeitamente possível: era, sim, mais um poeta. Entretanto, um poeta capaz de vencer Gianni e sua filha. Continuava a parábola do poeta. O italiano permanecia em silêncio:

- E, pelo que notei por sua brincadeira inicial, está acostumado com a presença daqueles infames dos círculos literários ou então da rançosa Universidade, como todo o respeito à sua filha, de cujo caráter não duvido. Faço questão de não ser como nenhum deles, senhor Gianni. Prefiro ser andarilho, de buscar os versos na lama, desde que a mesma seja sincera, pura. Amo as obras do acaso, os frutos vermelhos e vivazes da contradição natural, da luta entre o dia e a noite, entre a paixão e o ódio, entre a chuva e o Sol. Confesso que me senti particularmente feliz hoje. O fato de me entregar por inteiro às contradições da vida faz com que o sentimento de derrota seja muito mais forte em meu peito e em meus versos. A frieza impera, o medo. Veja só os olhos de sua mulher. Veja! O medo do qual estavam tomados era assustador, tamanha a insegurança diante do “sumiço” de sua filha. Tudo é medo, tudo é frieza. O sentimento há muito parece ter morrido para a coletividade. E, em seu enterro, poucos estavam presentes. Muitos se agarraram ao caixão e junto faleceram. Eu preferi carregar as máculas e aqui permanecer, diante do produtivo caos que é a vida. Caos este que me traz amarguras incontáveis, porém me regalou com esta bela jovem.

- Onde mora, poeta? – questionou Gianni, já ciente de que não era, realmente, um burguês corajoso que se acomodara na poltrona de couro.

- Sou inquilino de um velho homem, vendedor de cereais. Sinto-me inseguro em relação a isso. Afinal, esse já parece dominado pelas chagas da morte. Entretanto, ali permaneço. Sou acostumado aos deslocamentos. Prefiro esperar.

- Fique aqui hoje conosco; quero contar um pouco de minha infância. Acho que entenderá o porquê destes calos – disse um emocionado Gianni.

- Claro.

Isabella, também envolvida pelas habilidades reprimidas do poeta, bradou, em plena admiração:

- Eu não acredito!

E assim permaneceram até a alvorada. Laura sucumbiu ao sono na metade da madrugada. Adormeceu feliz. Isabella caminhou pouco depois em direção ao seu quarto, mas não para dormir: sentou-se na ponta da larga e confortável cama para pensar na surreal aparição de Schneider. Um conto que se materializava – tudo o que uma jovem impulsionada por delírios gostaria de viver. Era a protagonista, a artífice de uma história aparentemente sem previsões. Nunca odiara tanto o futuro como naquele momento. Gostaria de perpetuar o presente, de fazer repetirem-se as palavras de Schneider confluentes com as suas e as de seu pai, em um tempo paralelo, o qual as mãos das divindades não poderiam atingir, tampouco cessar.

O dia seguinte deixou nos lábios de Isabella um gosto que misturava desejo e saciedade. Procurava nas lembranças aquela que melhor refletisse o rosto de Schneider. Simultaneamente, dizia para seus pensamentos que, naquele instante, o amor assumia um corpo ideal. As aulas de Literatura – justamente as de Literatura! – não foram tão reluzentes como as outras. Queria mesmo é sair breve da sala e correr para biblioteca, tanto que, uma hora antes do almoço, estava na mesma mesa do dia anterior.

O relógio parecia letárgico, o que produzia uma ebulição desesperada em Isabella. Schneider não apareceu até o meio da tarde. A jovem mal sentiu a falta do almoço. Os hormônios e substâncias passionais barraram qualquer outra vontade que não fosse a de dominar, aos beijos, o poeta ausente.
Apareceu, movimentando-se em rápidos passos, um homem de baixa estatura. Era um dos mensageiros da Universidade:

- Olá, senhorita Isabella, desculpe-me não ter feito isso antes, mas essa chuva me atrapalhou. Um homem, aparentemente mais velho, com a barba por fazer, vestindo um sobretudo preto, deixou este bilhete comigo. Tome.

A pequena italiana leu o bilhete e não se conteve. Uma sensação gélida percorrera seu corpo em um caminho inverso à irradiação da paixão. Os nervos abalaram-se primeiramente na cabeça; a tensão culminou no peito, forte, fulminante, como se as garras de um animal revolvessem, inclementes, o coração vulnerável de Isabella.

“Tamanha é a desventura do homem que se arrisca a viver a felicidade quando sua linha final é a tristeza. Tomo o caminho de Roma. Fui despejado pelos filhos do comerciante que me abrigava. Achavam que era desonesto e desejava conquistar o pouco que o velho deixaria como herança. Como não quis incomodá-la com meus desvios, busquei apoio em um de meus amigos. O nome dele é Fabio Zanetti. Aqui está o endereço, caso queira escrever. Em tempo: aqueles versos da biblioteca eram seus.

Um beijo em suas mãos de poetisa,

R.S”


E assim foi Schneider aventurar-se pela capital. Isabella sentiu a perda como se fosse a morte daquele que seria seu único amor. Não acreditava no encontro de outro ser que se assemelhasse aos olhos misteriosamente doces, piedosos e surpreendentes do alemão. Justamente ele, que se imaginava o grande vitimado, era o algoz da desilusão maior da jovem. O sofrimento, dizem as mães, é peculiar nessa idade. Entretanto, a menina atravessou o ano sem conformar-se com a perda. Não escrevia para o alemão. Para ela, isso só aumentaria o corte. Queria tocá-lo, sentir o etéreo fervor daquelas mãos distantes, que se fizeram impossíveis.
A tormenta das veias transferiu-se para os nervos. O que era fruto do amor passara a moléstia física. Isabella, ao invés de recuperar as forças, submergiu, devastada por um mal que afetou - com uma voracidade desconhecida pela mais avançada ciência média da época – seus movimentos. Estava, em poucas semanas, paralisada. Ainda assim, sua fadiga ainda permitia que o nome de seu poeta saísse por entre seus cinzentos e mortificados lábios.


Um domingo ensolarado na alegre Roma. Schneider acomodou-se no Café Reine, como seu hábito novo o conduzia. Ali, preparou mais alguns versos. O estabelecimento, que muito remetia aos bistrôs de Paris, ficava diante de um dos restaurantes melhor freqüentados da cidade. Ali adentravam mulheres estonteantes, que já atraíam alguns centésimos da atenção de Schneider. Ele, que enviara algumas cartas em vão para Isabella, estava convicto de sua falta de sorte e, até por isso, atravessava uma ligeira calmaria. A placidez de seu cotidiano dava-se exatamente pela constante solidão, apesar das tentativas de Zanetti de acabar com isso. Era exatamente ele que apontava ao final da rua, gritando seu nome:

- Schneider! Schneider! Carta para você! Notícias de seu antigo paradeiro.

- Deixe-me ver isso. Nossa, Gianni! Por que não Isabella? Vejamos...

“Meu filho,

Não sei para quem isto é mais doloroso. Sei que isso ocorreu depois de sua partida, mas não o culpo, ainda que o considere orgulhoso por demais. Isabella, nossa filha, faleceu há uma semana. Relutei demais, mas decidi avisá-lo. Após sua partida, ela mergulhou profundamente em uma desilusão da qual não conseguiu sair. Ao passo que seus versos o renovam da tristeza e o salvam da morte, os versos de minha filha não foram capazes da canalizar a má-sorte da mesma forma. Ela tomou outro rumo, ganhou as estrelas, talvez zele por nós de maneira mais intensa ainda. Passado o fervor do pai sem rumo, acho que não merece perdão, meu filho, justamente por que não precisa disso. Você foi esperança de vida para minha querida criança, mas assim quis o destino. Acho que você entende melhor as tragédias que eu.

Fique com Deus e não se abale tanto.

Gianni”

Schneider, imediatamente, agarrou, ao final das linhas, o paletó de Zanetti. Olhou fixamente, desprovido de palavras, como um mudo que utilizava todas as energias para falar. Somente o choro conseguiu, caudalosamente, espalhar-se pela mesa do café. Zanetti pegou a carta e, após, lê-la, acariciou os lisos cabelos do alemão. Sabia que qualquer consolo seria inútil e, por que não, hipócrita. Somente após alguns minutos, ouviu do poeta a pior das mortes: o falecimento em vida do artífice das estrofes mais promissoras que já vira. Aos soluços, disse Schneider:

- Meu amigo, meu amigo...de nada, de nada adiantam os versos!

E, ali, abraçados fraternamente, permaneceram, até que a noite desse algum sinal para que os dois partissem de volta para casa. Restou, à rua, o ruído áspero do pranto, o drástico som da fragilidade humana.


Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui