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Contos-->Nasceu nessa noite (Saudades, pai... ) -- 19/03/2003 - 13:04 (M a r t i n h o J C B r a n c o ^^^@r 2005) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos





Nasceu nessa noite
...Liberdade...

Hoje
apetece-
-me
desenhar
uma
flor

Meus companheiros de jornada, Homens valorosos de trabalho, depois do silêncio da noite escura, como quem procura uma outra estrada. Levantaram-se cedo e fizeram aquela doce madrugada. Nasceu nessa noite às três da manhã a Liberdade na aldeia mais recôndita, na vila mais distante, em toda e qualquer cidade deste nosso Portugal, em que alguns estavam bem e muitos viviam mal. Nasceu nessa noite às três da manhã a Liberdade. Lembras-te, pai? Estás sentado na velha cadeira de madeira onde cortaste tantos cabelos a crianças e lhes fizeste tantas barbas, já em adultos. Nos joelhos repousas o velho bombardino de filarmonista. Na mão esquerda seguras uma partitura com toda a ternura da tua mão forte e meiga, como quem segura um filho, com todo o cuidado para que não se magoe. Por detrás de ti avisto uma velha talha de barro onde se guardava a cal, aquela cal com que caiámos paredes onde projectámos tantos sonhos, em noites de verão, como se fosse a tela de um cinema, onde se contavam histórias de outros tempos. Histórias da tua aldeia para os lados da serra, de quando eras menino e, mais tarde, da tua juventude e do amor da tua vida. É claro, também se contavam histórias da minha infância. Perdão, da nossa infância, porque também tenho uma irmã e gosto muito dela. Na verdade, nesse tempo contavam-se muitas histórias de bruxas e lobisomens que tanto assustavam o nosso imaginário, mas, ao mesmo tempo, empolgavam e arregalavam os nossos olhitos de crianças.
É verdade, antes de Abril havia bruxas mil, lobisomens e outros seres medonhos de assustar
neste nosso Portugal à beira-mar adormecido. E, quando não comíamos a sopa, a malfadada e indesejável couve branca com feijão e nabos, lá vinha a ameaça:
- “Olha o homem do saco!...” Ou, então, “ ...Olha o cigano que te leva!....” Em último recurso, havia a colher de pau... Era remédio “santo”, a maior parte das vezes, em tantos e tantos honrados lares de gente pobre ou mais ou menos remediada.
Por seu lado, na escola de um país de analfabetos, governava a menina dos cinco olhos, “a bruxa má”, a régua agressora, o terror das nossas mãos de crianças.
Lembras-te, pai?
Todos sonhávamos, e ainda sonhamos, com uma vida melhor. Uns emigraram a salto (clandestinamente) ou legais para França, outros para a Alemanha, alguns para o Canadá e a Austrália (como o teu amigo Fernando, lembras-te, que fazia anos no mesmo dia que tu?). Alguns ainda foram para África trabalhar e muitos jovens, obrigados a lutar na guerra colonial, perderam a vida sem saberem porquê. Alguns desertaram e fugiram para França. Eu, mais cedo que tarde, talvez o fizesse também, se não tivesse acontecido Abril nas nossas vidas.
Ainda me recordo com mágoa da morte de um jovem da nossa terra, que morreu na guerra de Angola. Pobre, Manel! Não me recordo se era este o nome dele...
Na altura, com raiva e sem entender a razão da sua morte, até lhe dediquei um poema que mostrei a uma professora da escola onde estudava, a qual ficou admirada de eu escrever poesia e sobre temas como aquele, estávamos em 1973. Fiquei deveras triste com esta inútil e brutal morte.
Ainda guardo na memória aquela canto que passava na rádio de então, “Angola é nossa! Angola é nossa!...” Era “nossa”, de alguns, e os nossos jovens lá iam morrendo aos poucos, como carne para canhão, numa guerra que não era deles.
Lembras-te, pai?
Quantos rostos cansados de esperar, de vaguear numa vida sem sentido, com tanto sonho adiado ou destruído, como o do jovem que morreu na guerra. Quantas viúvas e órfãos ficaram à sua sorte, já quase sem lágrimas para chorarem? E quantas pessoas sem saber ler e escrever sobreviviam por todas essas terras do nosso Portugal? Foram tempos difíceis e de memórias amargas!
E nós morávamos perto da Estação e eu via passar os comboios e sonhava viajar neles e ser maquinista. Um dia ofereceste-me, pelo Natal, um comboio de plástico no sapatinho. Como eu fiquei feliz!... Deve-te ter custado uns bons tostões. Sonhos e recordações de criança que nos tocam o coração.
Agora, tocas o bombardino, que refulge ao sol, parece uma estrela que brilha na minha memória. Talvez toques a “Terra da Fraternidade...” Quem sabe? Quem sabe?
Enquanto os teus dedos saltitam pelos pistões do bombardino, a velha oliveira, que está depois de ti, tudo escuta e acena com um ramo mais jovem, confirmando todas as histórias que me contas. Ao som da música, recordando...”dentro de ti, ó cidade...” um arrepio de emoção percorre-me, por inteiro, todo o ser.
Olha, pai, até me saiu um poema:

Nasceu nessa noite,
às três da manhã

No ventre das ruas,
a Primavera

No trinar de cada velha guitarra
Acordes de uma nova era

Em cada quarto gelado
O amor numa canção
Sem medo de o fazer
No coração de cada pessoa
Em todas as ruas da cidade
A alegria de viver
E nos cabelos
Embranquecidos
Dos poetas
A flor da Liberdade

“...Dentro de ti, ó cidade...”


Lembras-te, pai?
Os sonhos de Abril, o fim da guerra e dos presos políticos, a Liberdade e o futuro...
O futuro... O futuro pertence aos teus netos e aos filhos deles e por aí fora... A Joana quer ser pianista e o Pedro, arquitecto. A música e a arquitectura de novos sonhos em liberdade. Eles poderão não saber escolher, mas têm a liberdade que tu não tiveste, que nós não tivemos antes de Abril.
Mas, um belo dia também tivemos a liberdade de escolhermos e de plantarmos uma árvore no nosso quintal. Eu estimo-a e, quando posso, trato dela, rego-a, adubo-a e corto-lhe os ramos secos, para que ganhe força e cresça. Em troca ela dá-nos sombra e fruta e refresca-nos nos dias quentes de Verão. Quando me esqueço de a tratar, ela enfraquece e fica em risco. A liberdade é como uma árvore. Temos de cuidar dela todos os dias, com muito amor e sabedoria. Precisamos saber escutá-la com todos os sentidos e em todos os sentidos e falar com ela com carinho, para que cresça, se fortaleça e dê frutos que nos alimentem a imaginação e a capacidade de sonhar com um futuro que satisfaça a todos.
Obrigado, pai, pela árvore que plantámos e pelo filme que fizemos juntos. A cassete chegou ao fim no vídeo.
Teu filho que te recorda com carinho e saudade, por teres partido num dia de Abril.
Saudades, pai...









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