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Contos-->5. O CEGO -- 19/03/2003 - 07:33 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Laurindo nasceu cego. Naturalmente, filho de família rica, teve os melhores especialistas a observar-lhe os órgãos da visão, todos unanimemente declarando que nada pôde ser constatado que justificasse a trágica condição.

— Defeito congênito, arriscou um deles, cuja causa deve repousar nos cromossomas, no que respeita ao jogo de correspondências entre os fatores paternos e maternos. Quero crer que, em havendo maior contato entre os neurônios no cérebro, o que só o crescimento da criança irá determinar, possa dar-se reação orgânica capaz de permitir-lhe enxergar.

Tal vaticínio não se realizou mas se constituiu para os pais num ponto de extremada fé. No decorrer de toda a infância de Laurindo, repetiram eles, cada qual a seu modo, as expressões do médico, que se transformaram em ansiedade, em angustiosa espera e, finalmente, em desalentada aferição da impossibilidade de cura.

Mas Laurindo era muito bem dotado de inteligência e melhor ainda de memória, de sorte que os esforços dos preceptores em fazê-lo entender as ciências e as artes se coroaram de êxito.

Aos vinte e um anos, formava-se o rapaz na Faculdade de Direito, laureando-se com louvor.

Não demorou para que surgissem empecilhos para o exercício da advocacia, precisando contar com o poder econômico paterno para abrir escritório próprio, ainda assim em sociedade com três colegas de turma, todos brilhantes em seus resultados acadêmicos.

Mercê de seu notável pendor intelectual, trazia Laurindo embutidas na memória todas as leis e decretos, cuja leitura lhe vinha sendo feita por secretária paga especialmente para isso. Mercedes era uma jovem recentemente aprovada no concurso de habilitação da mesma faculdade.

Eis que o inevitável acontece. Dadas as largas horas empregadas diariamente na forçada convivência, logo se afeiçoou o rapaz pela mocinha, que se via cortejada pelos quatro latagões togados.

Era de esperar-se que Mercedes cedesse ao assédio de um deles, no entanto, esquivava-se de todos, não aceitando convite algum para passeios, festas ou reuniões de estudo e de trabalho, nem mesmo deixando-se acompanhar após o expediente, quando voltava a casa.

Laurindo é que não tomou conhecimento jamais de nenhum galanteio dos colegas, que, finórios, nada diziam ao alcance da audição do cego, limitando-se aos trejeitos sugestivos e aos bilhetes sentimentais.

Dois anos se passaram nesse labirinto de perseguições infrutíferas, até que a moça, argumentando que necessitava dedicar-se mais aos estudos, que se tornaram bem mais sérios no quinto semestre letivo, deixou o escritório, visitado nos últimos tempos pelas noivas e namoradas dos três videntes.

Foi um choque para Laurindo a perda da companhia diária. Tinha tanta certeza de que seu interesse estava sendo correspondido que, ingenuamente, ia deixando o tempo passar sem declarações de amor, adiando para um futuro mais distante a proposta de consórcio comercial e matrimonial.

Três meses depois, caiu doente, debilitado pela falta de apetite que o fazia deixar a comida no prato, por mais que insistissem os pais. Foi preciso consultar um médico, cujas receitas tiveram o condão de restabelecer-lhe, ao menos, o vigor físico, já que o moral permaneceu baixíssimo. Trabalhava com muito pouco entusiasmo.

Os parceiros logo desconfiaram da verdade e correram com o substituto de Mercedes, um rapaz meio efeminado que não tinha outra aspiração na vida senão a de se tornar imprescindível para o patrão.

Os três combinaram reaproximar os dois, oferecendo o escritório para Mercedes cumprir estágio, remunerando-a com salário fixo mais comissões, nos casos em que atuasse.

Era oferta tentadora, bem melhor que as que os colegas de turma não cansavam de elogiar. Entretanto, Mercedes “pôs a pulga atrás da orelha”, desconfiando muitíssimo das intenções dos bacharéis. Por isso, estipulou uma condição:

— Não quero receber ordens do Dr. Laurindo, porque ultimamente ele não vinha mais assimilando as leituras, preocupado em saber se eu estava bem, como ia na faculdade, se estava namorando e coisas assim.

Antes que lhe perguntassem por que não admitia os bons sentimentos do cego, ela adiantou:

— Estou noiva, ou quase, faltando apenas pôr a aliança no dedo. E meu namorado ficou muito enciumado com a intimidade que exigia a função de leitora. Por outro lado, como a cegueira de nascença é prova de deficiência genética, não vou arriscar-me a ter filhos cegos.

A franqueza da estudante deixou os rapazes espantados, tanto que, antes que a reaproveitassem, julgaram por bem levar ao conhecimento de Laurindo a idéia de trazer de volta Mercedes.

Quem possui amigos como os de Laurindo não precisa de inimigos. Realmente se açodaram tanto para contar o que lhes dissera a moça que, enquanto um iniciava, já vinha o outro desenvolver a idéia, não deixando o terceiro de encerrar. Ao chegarem à parte em que ela lhes falou a respeito da geração de filhos, não hesitaram e despejaram em coro que ela não queria ter filhos cegos.

Laurindo não teve tempo para refletir a respeito da atitude precipitada dos sócios ao irem atrás da secretária. Mal ouviu as explicações e logo se abateu com a crueza do fato genético. Abaixou a cabeça e chorou convulsivamente.

Os apalermados companheiros, sem saber o que fazer, ofereceram a um tempo três lenços para ele enxugar as lágrimas, lenços que lhe foram postos nas mãos que seguravam o rosto.

Aí os panos tiveram uma segunda utilidade inesperada: mascararam a luz que inundava as retinas e dava ao mundo o milagre de mais um que passava a ver pela vez primeira. De fato, Laurindo obteve a visão através do impacto emocional que o desesperançava da vida.

Está claro que passou a enxergar como qualquer que nasce com tal propriedade, ou seja, de maneira confusa, não se capacitando a reconhecer as coisas em sua profundidade. Precisava aprender a ver. E foi assim que o conduziram para o médico da famosa sentença e que o acompanhara até aquela data sempre esperançoso de ver sua previsão vingada.



Dez anos depois dos acontecimentos acima narrados, ainda Laurindo não havia assumido total controle da visão, necessitando de lentes corretivas. Mas enxergava e reconhecia pessoas e objetos. Casado com jovem que conheceu no primeiro baile a que compareceu vidente, tinha três filhos sem qualquer anomalia visual.

Quanto aos colegas, cada qual se instalou em escritório próprio, reunindo-se regularmente para rega-bofes comemorativos. Mercedes jamais aceitou os convites que lhe chegavam sem falta, sempre impedida pelo ciumento marido.

O advogado que fora cego não aceitou a explicação do milagre nem as justificativas científicas. Dizia que seu caso deveria ser estudado em suas raízes espirituais, mas não acatava nenhuma sugestão para investigar as vidas passadas.

Quando lhe pediam um comentário a respeito, dizia, entre sério e jocoso:

— O melhor cego é aquele que não quer ver, ou melhor, o pior cego é aquele que deseja enxergar.

E ficava gozando a regalia única de ter sido deficiente visual por tanto tempo.

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