Nem sei dizer de onde veio, mas o fato é que o baratão surgiu no meio da redação, buscando um pouco de papel para nutrir suas poucas necessidades. Bicho nojento, capaz de ficar muito tempo sem bebida e comida, o baratão se escondeu num canto, próximo de uns papéis.
Acredito que a coincidência tenha algo a ver com o presente que recebi da simpática moçoila na semana passada, a obra "Metamorfose", de Franz Kafka, considerado gênio por alguns, louco por outros.
Mal comecei a ler a obra no meu esconderijo quando um baratão surgiu. Toquei o bicho a vassouradas, evitando a morte pelo cheiro asqueroso que poderia invadir o ambiente.
Nas poucas páginas que manuseei pude perceber que o personagem central era um caixeiro viajante, desses seres quase em extinção que se dedicavam a difundir produtos no surgimento do capitalismo industrial, sendo responsável pelo sustento da família.
Lembrei dos tempos em que atuava na área de vendas, cobrindo os territórios catarinense e paranaense, passando muitos dias em hotelecos de cidades sem importància demográfica.
O baratão de Kafka não é tão louco assim, afinal de contas está cercado de responsabilidades sociais, vive numa sociedade que oprime sua família e é obrigado a trabalhar para evitar a vergonha geral.
Pais fracos, como os da sociedade marginalizada pelo processo capitalista, multiplicados por milhões em todo o planeta. Se o personagem central da história fosse considerado como um padrão de sobrevivência, comendo e bebendo pouco, trabalhando para juntar os restos dos outros e viver numa birosca qualquer, não haveria nada de surpreendente.
O baratão que surgiu na redação era do tipo folgado, sem nada a ver com o personagem estranho do Kafka, antecessor dos cucarachas latinos, como somos carinhosamente designados pelos norte-americanos.
Baratões sem destino, andamos a esmo, tentando fugir de nossa sina de submissão aos interesses transnacionais, e pasmem, nossas vidas são pesadelos muito maiores que os do pobre personagem central. Ele se vira para tentar explicar aos pais e patrões que está sofrendo, mas o patrão quer lucro e os pais imploram pelo pão de cada dia, como os supliciados das favelas. Deixei que o baratão fosse embora. Não sou patrão, e a luta continua.
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