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Contos-->O último nome -- 08/03/2003 - 20:53 (Rodolfo Araújo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Schneider afastou a mesa velha, separando-a das outras que na sala estavam. Estimava muito os presentes da família, tanto que não exercitava a coragem de jogar ao sabor do vento ou doar qualquer objeto que recebia de um ente ou amigo querido. Não recebia lembranças de seus amores. Dizia, numa tenuidade entre a pieguice e o entreguismo, que o maior regalo que poderia receber de uma mulher era um beijo fervoroso e sincero.
Como um pianista, soergueu a cabeça e estalou os dedos, um a um, brincando com o ritmo dos rompimentos que podia controlar. Fascinava-lhe a idéia de domínio. Todavia, apetecia-lhe ainda mais a noção de deriva em oceanos - geralmente complicados – de amor.
Novamente a caneta. Suportava o peso com melhor habilidade. Após meses de reclusão, claustro profundo de um poeta submerso em pavores orgânicos e mentais. Por meses, perdera o controle dos movimentos. Arranhava paredes, abocanhava tapetes, corria perigosamente nas ladeiras em dias chuvosos, gritava palavras de ordem contra figuras ilustres e beatificadas da cidade. Movia reclamações até de crianças, incomodadas com a persistência e os devaneios aparentemente infinitos do alemão. O ímpeto entrou em descendência, até cessar. Schneider dormia, hibernava, pálpebras absolutamente cerradas por noites que não soube contar. Sonhou com cada amor por qual sofrera, tecera poemas que lhe causavam aflição, pois apareciam entrecortados, como hologramas, diante de seus olhos. A realidade das estrofes era intensa a ponto de impulsionar o alemão a estender as mãos no ar, em lugares públicos, tentando tocá-las de alguma forma.
Fim do longo suspiro. Foi-se o ar, perdeu-se na janela e alguém foi encontrar. Alvéolos renovados, não mais doentes. Como legado, cicatriz profunda no pescoço. Incompetente para morrer. A única saída para Schneider era conviver com os ranços economicistas, os sorrisos amarelos de bom-dia, poemas incompletos à margem de sua sala, poemas completos à margem da sala de seus amores. Braços livres, sem o duto de soro. Piscava voluntariamente, comia pêssegos, brincava com a calda – saliva de suas paixões. Ajoelhava, desenhava em meio à densa poeira o último nome. Apagava, franzia a testa com expressão de quem era dono dos próprios nervos. Engano.
Os versos que esboçava nunca surgiam a contento. Ora pecavam no formato, ora nas palavras, as quais nunca conseguiam abarcar as hiperbólicas criações mentais do germânico. Como seus nervos estavam sempre a ponto de explodir a epiderme, sua raiva crescia a cada papel amassado. Os vizinhos, em sua maioria senhores de avançada idade, sentiam-se incomodados com os arroubos de frustração do poeta e, invariavelmente, batiam-lhe à porta, já com as vozes roucas, a reclamar dos ruídos. Schneider respondia sempre com a mesma educação. Ao bater a porta, rangia os dentes, roia as unhas, sentava em seu sofá de couro rasgado e, por fim, adormecia.
Em um dos cinzentos amanheceres de Roma, Schneider, impetuoso antagonista dos hábitos da classe média, seguiu seu ritual: saltou do sofá, correu até uma das grandes janelas de sua sala e cuspiu, sem olhar para quem estava a caminhar pela estreita rua de antigos edifícios onde morava. Conseguira a morada por um bom preço, já que os imóveis não eram tão próximos ao centro e tinham fama de mal-assombrados. Para quem era praticamente um morto-vivo, isso não fazia a menor diferença. Caminhou até o apertado banheiro, o qual mal podia fechar a porta e manter-se em seu interior. Escovava os dentes quando o telefone tocou. Correu, com a espuma lhe fugindo pelos cantos dos lábios, a balbuciar no bocal do aparelho:

-Alô.
-Schneider, venha aqui em trinta minutos.
-Sim, estarei em vinte.
-Até.

Pontualidade exercitada até o último filete de sangue nos tempos de garçom. Em vinte minutos, Schneider estava no local onde fora chamado. Terno negro, contornos que seguiam perfeitamente as linhas do corpo esguio, mas não tão alto do poeta. Era, ainda, um homem vaidoso, apesar do sofrimento que começava a cravar-lhe rugas na pele, além das olheiras já conhecidas do espelho.

- Ótimo que tenha vindo. Sente-se e espere.
- Claro.

A sala do apartamento de Zanetti não oferecia luxo. Ilustres, mesmo, eram os que por ali passavam e degustavam doses de scotch. Um pouco atordoado, Schneider demorou a acostumar-se com o silêncio do local. Folhava revistas, dedilhava o sofá para criar sons que não o deixassem sozinho com o ermo. Muitos anos de reclusão voluntária haviam-lhe trasbordado das faltas de som. Agora que saíra de seu apartamento, ruídos era o que mais queria ter por perto.
As dedilhadas do alemão foram suplantadas pelo toque ensurdecedor da campainha. Zanetti correu até a porta, vislumbrou a visita e, de imediato, abriu um largo e desinibido sorriso.

- Olá!!!!!

Schneider, estrategicamente acomodado em um dos cantos da sala por seu anfitrião, podia enxergar somente o homem a expressar uma incomum alegria, radiante, ofuscante.

-Entre, sente-se ali, ao lado daquele homem bem-vestido!
-Sim, obrigada.

Zanetti fulgurava felicidade pelas pupilas. Isabella desenhava um andar fabuloso. Parecia calcular os passos para representar uma dança. Sabia onde e como colocar os pés, um a um em direção à mesma acomodação onde o alemão aguardava os desdobramentos do encontro. Cumprimentou-lhe e ganhou um beijo na mão direita. Cortês, sempre cortês Schneider.

Isabella notava a admiração de Zanetti. Dominava o violoncelo como poucas mulheres no mundo. A leveza de seu caminhar era mero reflexo do que sua essência transmitia a todos os seus movimentos, falas e atitudes. Apesar disso, não se tratava de inocência ou castidade alva materializada em perfeitas formas femininas. A italiana conhecia seu potencial, mas parecia não se dar conta disso. Tinha debaixo das mangas rendadas todos os artifícios para arrastar legiões atrás de suas notas e passos. Mesmo assim, transpirava naturalidade, sempre em formato de sutileza e pretensa infantilidade – no mais nobre sentido.

- Senhora, beijei-lhe a mão sem saber seu nome. Zanetti é um anfitrião maravilhoso, mas se esquece de alguns detalhes cruciais em dados momentos.

- Ah, sim! – respondeu, obviamente, a sorrir – Meu nome é Isabella.

- Isabella?

- Sim, algum problema?

- Não, de forma nenhuma, excelente nome, por sinal.

- Desde quando um nome é “excelente”, senhor...?

- Rupert Schneider, ou Schneider, como de praxe.

- Caro Schneider, os nomes podem ser lindos, doces, mas...excelentes?

- As palavras às vezes soam-me mal. Acontece com bons e maus poetas.

- É poeta?

- Sim, algum problema?

- Não, de forma nenhuma, excelente ofício por sinal.

- Desde quando um ofício é excelente? Ele pode ser nobre, desonesto, doloroso, mas...excelente?

- Perdoe-me, Schneider. Não tenho lá toda essa habilidade com as palavras. Doei-me mais às notas. Sou música. Toco violoncelo. Aliás, acho que acabo de descobrir o motivo de nosso encontro. Zanetti não havia me falado absolutamente nada, mas posso compreender superficialmente suas intenções.

- E quais seriam? Continuo sem entender o que quis meu amigo.

- Veja bem. É poeta, certo? Sou música. É verso, sou nota. Pode compreender a completude artística que se esconde nestes centímetros que nos separam?

- Nunca ouvi suas notas – disse o alemão em um de seus ataques de máxima secura.

- Nunca li seus versos. Entretanto, sou mulher e posso notar em seus olhos que deseja música. Um poeta frustrado, como seu corpo tímido denuncia e Zanetti disse num dia desses, precisa de música. Esqueça quem sou, entretanto, saiba o que posso fazer.

Assim se estendeu a conversa durante três xícaras de chá. Os dois gostavam muito de frutas vermelhas. Preferências afins fizeram com que as amarras do alemão pudessem se quebrar. O tempo passou e Isabella teve que ir embora rapidamente, após olhar em seu relógio de pulso que o tempo urgia.

- Ela é casada, também tem um marido e uma vida com alguns pontos padronizados, disse Zanetti posteriormente ao poeta. Não vá me dizer com esta expressão embasbacada que está apaixonado...

- Não! Esqueceu de minha promessa? Por mais que esta encantadora mulher que acabei de conhecer chame-se Isabella também, saiba que a homônima precedente foi o último nome pelo qual gritaram meus versos. Chega! Sem amor, sem sofrimento. É possível fazer poesia de uma outra forma e vou descobri-la a qualquer custo. Talvez as notas milimétricas de sua amiga possam ser a saída.

- Claro, meu amigo, espero que assim seja, mas, se fosse você, não seria hermético quanto ao coração.

- Vou embora; qualquer coisa, basta ligar. Até!

- Até.

Zanetti levou Schneider à porta e, ao fechá-la, sorriu e disse:

- Eis mais um amor, perigoso amor...

O alemão chegou ao seu prédio em incomum velocidade. Olhos arregalados, veias saltadas pelos braços e mãos. Parecia extenuado, massacrado por uma caminhada árdua ou tarefa ininterrupta. Despertou a atenção dos vizinhos mais observadores. Tomou, lépido, o caminho dos degraus. Abriu sua porta sem titubear, fechou-a apressadamente, desvencilhou-se do paletó e em seu sofá ficou prostrado, deitado. O único ruído que se fazia notar era o murmurante vento que a extensa e reta rua trazia.
Sacou um lenço do bolso que também trazia mais um rasgado poema. Roto, como seu passado recente. Pensava nos humanos, não conseguia enxergar mais, em quase nenhum de seus semelhantes, ínfima migalha de honestidade, compromisso, sentimento. O amor, por excesso de dores que lhe causara, caiu em descrédito nos versos de Schneider. Tentava, pois, retratar todos aqueles que colocaram em seu caminho maiores e menores pedras. Buscava revirar a essência humana de maneira que pudesse encontrar centelhas poéticas em meio às entranhas analisadas. Nada encontrava. Seu confinamento, iniciado após a noite em que Marcela o levou, simultaneamente, às labaredas demoníacas e às púrpuras nuvens que servem de chão aos passos desmedidos dos apaixonados, foi um espaço temporal em que papéis de todas as espécies foram cravados com sangue, poemas arrancados abruptamente do espírito de Schneider, uma alma incendiada e renascida por dezenas de vezes. O poeta, no entanto, estava cansado de amar em precipícios e sozinho morrer, em desilusões.
Levantou e caminhou com certa lentidão até a cozinha, onde preparou um café. Enquanto tomava a bebida, com algumas restrições ao seu próprio feito, debruçou-se sobre a janela. Uma tontura repentina acometeu seus olhos, que embaralhavam as imagens. Piscava, esfregava as pálpebras com ligeira força, mas tudo piorava, somente sombras, impressões, sentidos que se confundiam. A tormenta derrubou Schneider, que, por sorte, reclinou-se, acomodando-se com sorte em seu sofá.

***
Isabella não conseguia prosseguir com seus estudos de violoncelo. Outros sons acabavam por derrotar seus sonhos musicados. Choro dos filhos e brados descontrolados de um marido que parecia por demais inseguro, sem controle dos próprios nervos. Ao saber de Schneider, perdeu, como o hábito manda, as curtas estribeiras.

- Ele pode ser um grande parceiro artístico, você deve entender.

- Eu não quero saber, tampouco entender essas sandices. Eu trabalho ao longo de uma semana inteira para ter que ver esses problemas todos tremulando como um incêndio descontrolado diante dos meus olhos. Tenha mais apreço por sua família, Isabella! Largue este maldito violoncelo e suba, vá para o quarto. E não leve as crianças.

Completamente atordoada, farta da estafante rotina em que imperavam os desmandos do cônjuge, resolveu praticar o que há anos sonhava, mas nunca fazia: ao invés de subir a escada, rumou para a avenida. Subia-lhe no sangue uma exclamação incontrolável de tristeza, que, somada ao medo, resultava em uma energia nunca antes experimentada por seus músculos. Veloz e amedrontada, bateu à porta de Zanetti, que, prontamente, atendeu.
O amigo acomodou a música na suntuosa sala principal. Buscou um copo de água e esperou que as lágrimas fossem estancadas. Ainda inebriada por leves soluços, a surpresa:

- Preciso de Schneider.

- Não estou entendendo, explique melhor, querida.

- Somente aqueles olhos podem me entender agora.

- Como assim?

- Sim, poeta fantástico. O único remédio para esta falésia que sinto em meu peito é a presença daquele homem. Ele, mais do que poeta, é poesia.

- Minha nossa, não sabia que Schneider tinha-lhe causado efeito tão repentino. Sei de suas qualidades, mas estou impressionado...

- Quero Schneider aqui, agora. É ou não meu amigo?

- Claro, claro que sou. Vou até seu apartamento. Fique aqui e espere a minha ou a nossa volta.

Zanetti era um das centenas de servos de Isabella. Tantos homens eram capazes de entregar a vida nas mesmas mãos que tão bem dedilhavam os violoncelos italianos. Voluptuosa, sorria levemente ao perceber os sussurros doces e corteses que seguiam seus passos. Entretanto, tamanho poder tomava contornos de desdém. Eram todos pasmados amadores, sem a essência de um “homem verdadeiro”, que Isabella pensou ter encontrado no cônjuge. Tamanha era a servilidade em relação à artista, que Zanetti foi buscar outro homem somente para satisfazer o que inquietava a italiana. Os limites da escravidão amorosa fazem ruir, inclusive, a lógica.
Chocou os punhos insistentemente na porta de Schneider. O alemão, letárgico, acordou com o barulho. Olhos envoltos por uma camada rósea, como se tivesse passado dias sem dormir.

- Zanetti, não sei como chegou até aqui. Precisava de você meu amigo...- Schneider, aos prantos, cravava as unhas no paletó do italiano.

- Calma, calma, diga-me o que está acontecendo.

- Não consigo esquecer a silhueta de Isabella.

- Ninguém consegue, isto não é um problema.

- Claro que é um problema, Zanetti! Fala isso como se não conhecesse meu passado.

- Tenho um pedido a fazer: venha comigo.

Schneider vestiu rapidamente um paletó e, em silêncio, foi com Zanetti até a casa. Entraram rapidamente. Ao destituir-se de seu semblante cabisbaixo, o alemão sentiu, por mais uma vez, um calafrio de lâmina em suas veias. Diante dele, Isabella.
Um vestido longo, azul. Aquela cor seria a tonalidade perfeita, o pigmento que escolheria se pudesse, um dia, reconstruir o céu. Os cabelos, negros e ligeiramente despenteados –graças à fuga repentina – simplificavam e, por conseqüência, equilibravam os traços altivos da instrumentista. Ao seu lado, o objeto idolatrado:

- Desculpe-me, Zanetti, mas não resisti. De quem é este violoncelo?

- De minha mãe, mas...fique tranqüila, pode pegar o que quiser aqui em minha casa, não tem problema. É tudo seu! – Zanetti estava amplamente atordoado, deixou um cinzeiro cair quase uma dezena de vezes no chão. Não havia quem centrasse os nervos diante de uma artista sensibilíssima e transbordante em volúpia.

- Posso falar com Schneider, Zanetti?

- Sim, claro! Prometi e aqui está o nosso poeta.

- Sim, o meu poeta...

O ex-garçom ouvia todo o diálogo em absoluta mudez. Seus lábios não eram corajosos sequer para arriscar uma distensão em formato de sorriso, ainda que amarelado. Resistia bravamente ao sentimento que estava prestes a tomar-lhe novamente, como um maremoto que engole pedras inquebrantáveis sem o menor consentimento. Zanetti estava já em seu quarto, a ler Werther. Aparentemente, um péssimo indício para a ocasião, mas o italiano era, de certo modo, conformado com as desilusões e sabia utilizar bem seu dinheiro para atrair novos amores, ainda que efêmeros e dissolúveis. Uma instabilidade altamente regular, mas paradoxal, como se percebe, na essência. Isabella, enquanto isso, acomodou-se suavemente em um dos sofás. Schneider permaneceu estático.

- Querido, sente-se...preciso muito conversar com você.

- Precisa de mim para quê?

- Nossa conversa, ontem...senti algo estranho. Ficamos horas trocando palavras sem a mínima vontade de encerrarmos a conversa. O maldito tempo foi o grande vilão, mas agora estou aqui, para continuar o êxtase que deixei interrompido.

- Maldito tempo ou malditos filhos, maldito marido?

- Schneider, suas palavras cortam...

- Minhas palavras simplesmente mostram.

- O quê?

- A realidade.

- Mas não é a realidade que busco em você.

- Busca fuga?

- Busco outra realidade.

- Outra? O que quer de mim? Vivo das Letras, que, ultimamente, têm rendido muito pouco. Elas, apesar de companheiras, nunca puderam livrar-me de minhas confusões, sobretudo as amorosas. Já passei por todos os tipos de profissões, arrisquei minhas vidas, supliquei a tantos deuses...e, veja, veja só quem sou. Um ser, um monte de carne que quase morreu de amor. Nem disso fui capaz. Um herói, um mártir do coração. Nem isso pude ser. Entende o que digo?

- Medo, Schneider, medo...

- Não é medo, é simples prudência. Somos adultos e sei que germinou uma chama diferenciada em nossas pupilas naquele encontro. Sabemos claramente de nossa completude. Não consegui dissociar sua vida da minha neste tempo em que passei refletindo e desmaiando em meu apartamento. Este caos, esta melindra suburbana, uma mistura que já saturou meus versos. Vejo em você a música, a cor que falta ao cinzento presente que assola estes braços, estas pernas, estes sonhos que eu tenho. Vê estes olhos? Estas lágrimas? São lágrimas de amores, amores perdidos por desencontros, mortes, medos, fugas, músicas descompassadas, vozes desafinadas, sonhos incompatíveis, sóis que se puseram antes ou tarde demais. A desilusão é minha companheira e sinto que é momento de aceita-la e cultiva-la sob meu braço.

- Não diga uma coisa dessas, poeta...você é fantástico. Faz poesia e, ao mesmo tempo, materializa os versos, o que lhe faz também um poema. Não precisei ler seus escritos para notar em sua conduta, em sua timidez, no claustro em que se envolveu, um homem que, se exibir e admitir a grandiosidade que tem, será maior que o mundo, maior até mesmo que o amor que me acometeu...

- Amor?

Isabella, terminação que rima com o amor suicida do restaurante, era também o nome do amor maior do poeta alemão. Difícil para Schneider classificar sentimentos, ainda mais para um iconoclasta, às vezes frustrado, que era. Perdeu Isabella em suas mãos, vítima de uma moléstia que devastou sua capacidade motora. Degenerou-se até a morte. Deste então, o germânico, a cada desventura de seus versos e sentidos, procurou Isabella, como fez com os cacos da garrafa. Isabella era, definitivamente, independentemente do corpo que intitulasse, o último nome. Uma segunda aparecia, alva, fulgurante, em ebulição permanente de música e paixão. Uma ressurreição necessária para um funesto poeta, que se admitia cinzento, sem rima, sem som.

- Amor, Schneider, amor. Meu medo é enorme, mas minha vida não pode esperar. Pensei ter em um marido, em uma família, norte e solidez; entretanto, notei, graças ao convívio e à queda das máscaras, que comportamentos forçados não sustentam uma conquista. Apaixonei-me por quem não existe mais, apesar da presença física ser marcante e atraente. Agora, você, meu doce poeta, você...

- Afaste-se...eu não posso ouvir isso...

- Você, meu poeta, não tem máscaras. Seus olhos falam, sempre vencem as batalhas contra suas palavras. Mesmo que não seja sincero nas frases, deixa-se, cedo ou tarde, guiar-se pela pureza. Sua máscara é este rosto verdadeiro, esta pele que pode ser mais lívida...seu sangue quer correr com mais vivacidade, eu sei disso...

- Isabella, o que há com você? Não percebe que isso vai dar errado?

- Eu sou sua música, meu poeta...

Isabella, sôfrega, aproximou-se de um alemão sem resistência, esgotado, fatigado de tanto lutar. Estavam despidos das máscaras, nus perante convenções, preconceitos, medos e quaisquer impedimentos que pudessem barrar o beijo fremente da instrumentista. Schneider, antes senhor de seus atos, nada mais era que um menino indefeso que seguiu à risca a profecia de Zanetti: estava em delírio, completamente dominado por uma mulher. Amplamente vencido e apaixonado.
A união repentina durou, se muito, dois minutos. Carícias, afagos do menino-poeta que, ainda mergulhado em desventuras, reunia em seus toques o conhecimento do genuíno amante. Em pouco tempo, sua inibição deu lugar novamente ao másculo, que dominou a italiana com as mãos, firmes e, simultaneamente femininas. Masculinas no poder, fêmeas na sapiência. Somente um homem com a sapiência da mulher tem em si o caminho do verdadeiro toque.
Como um caminhante empolgado que vislumbra um abismo quase sob seus pés, Schneider parou e, relutante, afastou seu corpo. Isabella, ligeiramente encabulada, sorria em direção ao chão.

- Estou, mais uma vez, rendido. Ora, homem! Quando vai tomar jeito? Parece um menino que não aprende a lição depois de uma severa bronca da mãe? Deve ser isso, não tem ninguém que lhe tome pelas rédeas! Inútil, maldito! – esbravejava Schneider consigo mesmo.

Isabella não sabia o que dizer. Estava realizada, desprendida do medo. Já não tinha mais o remorso de um marido para servir como muralha para seu amor repentino e flamejante. Inspirou lenta e profundamente, como se quisesse presentear todos os alvéolos com o mesmo ar que atingia o alemão. Dedilhava sobre o couro do sofá com suas unhas pontiagudas e reluzentes. Começou a discorrer, com o semblante de uma oradora das mais convincentes e cativantes – e o era, por sinal.

- O medo que sente, Schneider, é pura vontade. Não quero aqui me desenhar como a mais bela. Também não serei hipócrita a ponto de dizer que nunca encantei nenhum homem em minha vida. Vivo, hoje, a crueza do cotidiano. Escolhi um marido. À época, fiz sem medo. Hoje, faria novamente, se fosse minha pulsão. Mas, Schneider, minha vontade foi outra. Cansei das convenções, das regras de uma gente que a cada dia me causa mais repulsa. É um nojo progressivo, intermitente, que desembocou na minha libertação. O medo foi meu grande inimigo, mas ele está dominado. O pó das grades que me prendiam já foi levado. Resolvi entregar minhas vontades aos seus olhos, pupilas sensíveis de poeta que se faz de duro. Você é uma muralha doce, Schneider. Seu beijo é o reflexo da sua essência. Se meu medo fosse proporcional ao seu, isso não teria acontecido, não é? Diga!

- Não é medo. É segurança.

- Que raio de segurança é essa que não lhe permite viver! Vejo suas cicatrizes, sei de seus amores. Amei demais, Schneider, todos amamos e parecemos não aprender. O único inimigo da paixão é o medo.

- Você é louca, tem uma família, é estruturada dentro da sociedade, por mais pífia, falsa e inócua que seja! É melhor um de nós ir embora. Como tenho mais condições de fazer isso, parto eu. Até.

Schneider não enfrentou resistência, como era de se esperar. Isabella guardava resquícios de orgulho, mesmo face à aterradora paixão pela qual rastejava. Ao debruçar-se sobre a velha mesa que separara das outras, pensou, com as pupilas fixas no papel branco que tinha sobre o móvel. Escreveu, explodiu em versos. Todos mutilados pela incompletude. Correu, desesperado, a remontar seus verdadeiros amores, em direção a casa de Zanetti. Invadiu as dependências do amigo e viu o marido de Isabella partindo pela saída lateral da casa, sem vê-lo. Ao contrário do usual, o homem partia lentamente, uma silhueta conformada.

- Suba – disse Zanetti.

Schneider encontrou Isabella a dedilhar seu violoncelo, soluçante.

- Meu querido...veja, este é o meu violoncelo!

- Ele que...

- Sim, ele que trouxe.

- Trouxe um poema.

- Precisa de música, poeta?

- Sim, é absolutamente necessária.

Perderam-se por horas infindáveis aos beijos e em amor profundo, viril, como se tivesse sido contido há longínquos anos. Isabella, em um dos momentos de confissões mútuas, disse, radiante:

- A muralha veio abaixo!

- O medo dissolveu-se. Impressiono-me com sua coragem. Agora, diga-me: como serão os dias seguintes?

- Esses são outros dias, meu amor...viva, por enquanto, este.

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