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Contos-->As Afinidades Eletivas -- 03/03/2003 - 18:37 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
As Afinidades Eletivas

Ela ouvia “El Dia que me Quieras” e dizia que muito pouco ou nada houve depois de Gardel, o único que entendeu que a alma humana é um troço feito para se consternar. E chorava uma tristeza argentina que era mais de Gardel do que dela e que não caberia nunca nem no mais passional de todos os tangos. Uma tristeza particular e intransferível, além de transcendente, porque não tinha nada a ver com sentimento. Uma tristeza ideal.

- “Como que vinda das esferas platônicas, entende?”

Francamente, não. Raras vezes a entendi. Talvez a única coisa a fazer seja mesmo dançar um tango argentino, que a vida é, sem dúvida, cretina e isso não poderemos remediar. Confesso que sou um tipo meio ordinário, sem destino e outras coisas do gênero. Isadora, não, é maior que a vida e, de tão grande, parece não caber em si, e passa a ser o mundo a sua volta. Por isso seu olhar azul chega sempre primeiro; ela mesma só aparece meia hora depois. É uma pena que tipos meio ordinários e os maiores que a vida não nascem uns para os outros.

- “Tem dias que me sinto inútil e submersa... Dói... É como se tivesse nascido para me machucar... Não sei...”

E dançávamos pelos calçamentos amarelecidos da noite. Dançávamos ao som de qualquer velha música. Imaginávamos. Isadora era sempre um desastre dançando. Eu sempre tive uma imaginação imprestável. Juntos éramos perfeitos como esses fins de tarde que ardem sem motivo, quando duas cores encontram-se para formar o milagre mais enorme deste mundo. Esperávamos tanto! Quer dizer, ela sempre esperou bem mais do que eu: das pessoas, dos seres, das coisas.

- “Tudo tem seu tempo sobre a terra... Esperar é um dom do espírito...”

Juntos nada sabíamos do mundo, da vida, do contentamento ou do desgosto. E era como se as coisas não carecessem nunca de ordem ou de cuidados. Isadora e eu aprendêramos a ser silenciosamente, sem sobressaltos ou desassossegos grandes. Porque havíamos compreendido que as coisas existem sempre independentemente de nossa vontade. E que é inútil resistir ou mesmo suicidar-se. Isadora, tão antiga quanto a noite, como que saída de um poema de Paul Celan: “À Noite, quando o pêndulo do amor oscila, entre Sempre e Nunca, tua palavra junta-se às luas do coração e teu tempestuoso olho azul entrega à terra o céu.” Paul Celan e o abandono das palavras, a transitar entre a morte e o silêncio, como se houvesse para nós alguma esperança que fosse, como se nada, nada estivesse perdido. Celan, procurando nos redimir em ritmos, sons e signos, nos salvar de nossa falência múltipla e diária. Isadora ensinou-me que somente a poesia cabe todas as nossas dores, sonhos, medos, iras, revoltas ou amores. Só a poesia nos sabe de cor.

- “Quem arranca do peito seu coração para a noite deseja a rosa.”

Isadora ou Celan? Não sei. E nenhuma resposta verdadeiramente importa, que a vida continuará, sempre, se configurando em drama ou princípio de aurora, disso estou certo. Aqui, um abismo. Lá, a aventura maravilhada do salto e da queda. A história perdida dos coisas... A argentina azul ensinava-me um mundo que eu ainda não conhecia de todo muito bem, dizia que Celan desmentiu Adorno em seu engano mais cruel - a crença de que não haveria poesia depois de Auschwitz.

- “Quando leu Celan, Adorno afirmou que a dor perene tem tanto direito à expressão, como o torturado ao grito; por isso pode ter sido errado afirmar que não se pode escrever mais nenhum poema após Auschwitz.”

A tristeza de ter o que lembrar é maior que o desejo de esquecer.

“El Dia que me Quieras” a noite toda. Gosto de Gardel porque ele parece sempre algo muito antigo. A ausência de Isadora me incomoda porque há muito de insônia, angústia e solidão por detrás de cada pequena ausência; porque pesa em meu peito desajeitado essa distância feita falta; porque nem mesmo Celan me salva em dias assim.

- “Do Azul que ainda busca seu rosto, sou o primeiro a beber.”

E apesar de tudo, os poetas me salvam nas mais variadas ocasiões. Uma deixa, uma tirada espirituosa, um verso de efeito. Menos Paul Celan, que me oprime com suas cores, com sua crença num mundo ideal e possível, arquitetando em espaço e som a esperança e a utopia de uma poesia redentora, que ultrapasse a dor de sermos apenas e tão somente o que somos: tristes e humanos - a síntese de Bilac sobre nós mesmos me fascina e consterna -; Celan aprendeu como poucos o sofrimento de ser judeu na Alemanha genocida, etérea e oblíqua dos anos quarenta, sem se referir a Deus, o que é pior - um judeu ateu e humanista.

Sinto pena de Celan - outra coisa que Isadora me ensinou: os poetas merecem muito mais a nossa pena e comiseração do que os dramaturgos ou romancistas, porque sofrem na alma tudo o quanto os prosadores sofrem na imaginação, simplesmente.

- “Não há poesia sem desespero ou sofrimento... O poeta tem de ser um sofredor... um sujeito que carregue consigo o sofrimento de um mundo inteiro... Nada menos...”

Às vezes sinto que acordo poeta, embora seja incapaz de escrever um verso que valha qualquer literatura. Suspeito que perdi o jeito para o sofrimento. Talvez porque Montaigne tenha sido mesmo o meu pai, e eu já tenha sido um cínico antes da puberdade. Isadora desconcertava-me quando me definia ou me ensinava como ser feliz à sombra de seu olhar azul, de sua juventude loura e romântica - coisa que ela não reconhecia nem sob tortura chinesa -, de seu jeito único e indistinto de ser desumanamente livre.

- “Você é a mulher do fim do mundo...”

Metade pássaro. Essa era Isadora. E ainda o é: a mesma leveza, a idêntica serenidade, gestos e movimentos, que, imagino, só não voa porque não quer, já que todos sabem sua essência de nuvem, sua presença aérea e todos os substantivos celestes de que se faz tranqüilamente. Isadora, que Celan me valha:

“Estou só, arrumo a flor de cinzas
no vaso cheio de maduro negrume. Boca-irmã,
falas uma palavra que sobrevive diante das janelas
e escala muda o que sonhei em mim.

Eis-me na flor da hora murcha
e poupo um resina para um pássaro tardio:
ele traz o floco de neve na pluma vermelho-vida;
o grãozinho de gelo no bico, e atravessa o verão."

Assim como a tua lembrança me atravessa hora após a hora. Sei que não hei nunca de vencer a distância entre nós. Não sou um sujeito de extremos, de longas viagens, de partidas e adeuses. Não, não sou. Qualquer gesto triste desabriga-me assustadoramente. Fui ficando pelo caminho. Inevitável. Sigo andando cambaio, meio de lado, sozinho. E a falta que me fazes é mais daqueles momentos de acolhedora liberdade quando dançávamos por essas ruas eternas sem destino; daqueles instantes em que a vida valia a pena de tão parecida com você; é mais do cristal azul de teus olhos que me falavam sempre em renúncia e abandono.

Cristal
Não procura nos meus lábios tua boca,
não diante da porta o forasteiro,
não no olho a lágrima.

Sete noites acima caminha o vermelho ao vermelho,
sete corações abaixo bate a mão à porta,
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.


Valha-me Paul Celan, o poeta dos que, como eu, também naufragaram um dia... E andam a espera de alguma redenção.

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