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Artigos-->OS ORIXÁS DE TATI MORENO -- 01/05/2016 - 10:21 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

OS ORIXÁS DE TATI MORENO



L. C. Vinholes



O noticiário dos jornais de Brasília, no mesmo caminho dos programas de televisão, prima pela banalidade, pela preferência dada ao que chama a atenção pelo que há de perverso e cruel ou pelo que expõe o que acontece de pior, onde deveria predominar a moralidade, a ética, o respeito ao indivíduo e à comunidade, a informação que acrescentasse algo de positivo.



Os temas são os mais variados e agradam ao leitor de todos os níveis, ou desníveis. Recentemente chama a atenção a frequência dos que mostram a falta de respeito e consideração para com os princípios que pautam o comportamento e as escolhas da prática religiosa. E não são apenas indivíduos os que ocupam os dois lados desta realidade. São coletividades, facções, países.



No nosso meio, além do racismo disfarçado, um aspecto específico desta abjeta verdade tem chamado a atenção dos que habitam os 5.802 km2 da poligonal do Distrito Federal: a intolerância religiosa, mais claramente para com a diversidade das práticas afro-brasileiras.



Aprendi a respeitar a cor, as ideias e convicções dos negros desde meus primeiros anos de vida. Nasci em uma casa no fim de rua que na calçada do lado oposto, tinha um cortiço ocupado por diversas famílias e onde morava um menino chamado Nei, filho de um lixeiro e uma lavadeira, que era companheiro nas brincadeiras nos finais das tarde. Estudei em colégio dos Irmãos Lassalistas, onde, no meio das centenas de alunos, poucos eram negros. Na adolescência, compartilhava a cantoria do gregoriano nas missas festivas da catedral com o tenor negro Jacinto Cruz, amigo até os dias de hoje. Na mocidade orgulhava-me por cumprimentar ou por ser cumprimentado pelo sargento Pedro, negro altivo e sério, quando passava em frente minha casa em direção à sua, retornando do trabalho de maestro da banda da Brigada Militar, cumprimentos que consolidaram nossa amizade quando ele passou a ser o primeiro clarinete e eu o copista oficial da então criada Orquestra Sinfônica de Pelotas.



Já maior de idade, caí em Salvador, onde ao lado dos estudos programados pelo I Seminário Internacional de Música que frequentei, tive uma imersão que me valeu para não só solidificar a percepção com relação aos que não eram de minha cor, mas também para ampliar a admiração e o respeito que crescia a cada nova experiência. Saí da Bahia sonhando em conhecer a África, sonho que tinha certeza de não ver concretizado, dada a impossibilidade financeira para arcar com gastos de viagem que não deveria ser para simples passeio, mas para, por algum tempo, usufruir da vivência e da convivência dos que, há séculos, deram início às civilizações e, muito mais recentemente, à nossa cultura. Em Salvador, no bojo das atividades do seminário promovido pela universidade local, o programa possibilitou aos participantes assistir evento realizado no terreiro da Mãe Menininha do Gantois, acompanhados pelo reitor Edgar Santos, o escritor Jorge Amado, os artistas plásticos Caribé e Mario Cravo e, entre outros, os professores José Kliass, H. J. Koellreutter, Yanka Rudzka e Rosita Salgado Góes do corpo docente da Escola Livre de Música de São Paulo. Também constava do programa uma noite ao redor da Lagoa do Abaeté, ao som do violão de Dorival Caymme, com suas consagradas melodias. Não imaginava que, cinco décadas depois, às vésperas de aposentar-me, teria a oportunidade de conhecer os cinco países africanos que, como o Brasil, foram colônias de Portugal. Convidado a coordenar os cursos de cooperação técnica a serem ministrados a funcionários e profissionais daqueles governos, estive em Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. Em todos eles estive duas vezes, por períodos curtos de oito dias, mas suficientes para, como esponja, enriquecer-me de tudo que eles tinham para oferecer, além daquilo que, sem nos darmos conta, nós brasileiros somos, graças à influência das culturas do continente negro, principalmente as vindas da costa do Atlântico. Em Praia, Luanda, Maputo, São Tomé e Bissau, os contatos diários aconteciam principalmente com nativos ocidentalizados e, como nós, com comportamento de matriz europeia, mas também, e, felizmente, com aqueles, homens e mulheres simples e africanicamente autênticos, presentes nessas capitais, vindos do interior em busca de soluções às suas necessidades prementes, na esperança de dias melhores. Eu já sabia, mas, àquela altura, convenci-me da força, da beleza, da arte e da originalidade que a África tem. Resumi minha alegria na busca de maior e mais completa identidade, encerrando a experiência africana, com o poema que escrevi no final daquela época:



lá em Maputo



o vento



bule o veludo da pele



da moçambicana



 



beleza jovem vibrante



cheia de sonho, de luz



minhas negras



muitas mais



das que a lembrança reconta



na África, embebedei-me



de tanta negra que vi.



 



Como lembranças das estadas em solo dos países de língua portuguesa na África trousse objetos artesanais de marcheteria, estatuetas de madeira de bustos de duas jovens mulheres, bengalas das feiras de Luanda e Maputo de enorme valor sentimental que não ocupam lugar, mas são singelo apoio às convicções que tenho com relação aos que vivem do outro lado do oceano que nos aproxima.



Anos depois, em solo europeu, acolhi em minha casa a diretora e duas alunas, parte de um grupo de artesãs de recicláveis, vindas de Salvador, da escola do Terreiro da Mãe Stella de Ozóssi, de saudosa memória. Em escala diferente, mas nem por isto menor, recordei os momentos vividos nos quase dois meses da primeira experiência em Salvador. No período de duas semanas, as jovens artistas, Marilia e Carolina - esta com suas coloridas miçangas tererê -, graciosas e cheias de vida, orientadas pela pragmática instrutora Marinalva, transmitiram às coleguinhas italianas, a habilidade e o poder criativo do seu métie, transformando material aparentemente inútil em delicados objetos de decoração e em brinquedos de colorido rico e de custo quase zero.



Infelizmente, por outro lado, no coração do Brasil, de conformidade com jornais e televisões, desde agosto de 2015, mais de quinze manifestações de intolerância para com os terreiros e instituições religiosas de matriz africana ocorreram em Brasília e vizinhança, para vergonha de todos que não suportam esse tipo de ação criminosa, de comportamento antiético e antissocial, discriminativo e desrespeitoso, mas que, de alguma forma, mostra o quanto a sociedade brasileira ainda é crua e necessita avançar no que concerne ao respeito e à aceitação da diversidade de culturas e de princípios religiosos e respeito, inclusive, ao patrimônio público que materializa o intangível. A capital dos Brasis, Patrimônio da Humanidade, é um museu a céu aberto, de templos de arquitetura representativa de todas as religiões e crenças, desde a católica, budista e muçulmana até a ortodoxa, evangélica das mais variadas denominações e espírita, constituindo-se, em rico e invejável acervo cultural, prova da diversidade da sociedade brasileira.



Em um dos episódios mais abomináveis, um dos ícones da umbanda e do candomblé, só não sofreu maior agressão graças à intervenção de um morador de rua, corajoso e digno, que afastou a três vândalos que, depois de cerrar a mão de Oxalá, pretendiam apoderar-se do cajado da divindade, uma das dezesseis estátuas distribuídas no amplo espaço da Praça dos Orixás, na conhecida Prainha, às margens do Lago Paranoá. No mesmo local estava Nanan, outra figura importante para os praticantes das religiões de matriz africana. Esta imagem, em 2005, foi arrancada do seu pedestal, levada para o lixão do Núcleo Bandeirante, cidade satélite de Brasília, e ali queimada. Segundo consta, o reparo destas obras acarreta problemas logísticos diversos e de alto custo, e só pode ser feito em Salvador, no atelier de Tati Moreno artista que as concebeu. A estátua de Nanan foi restaurada pelo escultor e logo voltou ao seu lugar.



Nanan, cujos domínios são Vida e Morte, Saúde e Maternidade, e Oxalá, poder criador masculino, Criação, Vida e Morte, assim como os demais orixás estão há 15 anos no mesmo espaço, são obras do citado escultor baiano que o noticiário da imprensa demorou-se falando sobre os desmandos de vândalos inconsequentes, mas esquecendo-se de informar, como deveria, quem ele é e o que tem feito na sua longa e marcante carreira artística.



Tati Moreno nasceu em Salvador em 18 de dezembro de 1944, iniciando suas atividades artísticas aos 20 anos de idade. Em 1967 ingressou no curso livre de escultura na Escola de Belas Artes da UFBA, estudando com Mario Cravo; começou o curso livre de História da Arte com o professor Romano Galeffi e o curso de Litografia, em 1974, com Rudy Pozzatti. Em 1975, aceitando convite da direção da referida escola, iniciou sua atividade pedagógica no curso de extensão de escultura em metal. Tati, em diferentes etapas, experimentando diferentes tipos de material, trabalhou com sucata, bronze, latão, chapas de ferro, aço, cobre, alumínio e madeira. Como artista estreio na mostra coletiva Artistas Baianos da Nova Geração, do Museu de Arte Moderna da Bahia, em 1970, e, um ano depois, com a primeira exposição individual na Biblioteca Central do seu estado natal. As mostras individuais e coletivas de Tati Moreno que se seguiram, realizadas na Bahia, São Paulo, Minas Gerais e no Distrito Federal são por demais numerosas para serem mencionadas. Suas esculturas estão presentes em instituições oficiais e privadas Brasil afora e, inclusive, no exterior, como é o caso das que figuram nas embaixadas do Brasil na Costa do Marfim e África do Sul. Tati também é autor de inúmeros troféus encomendados por instituições da Bahia. De caráter mais popular e nem por isto menos importante do no seu curriculum são as decorações que criou para os carnavais de Salvador nos anos 1980, 1981, 1983, 1984 e 1985, esses últimos de parceria com Fernando Coelho Edvaldo Gato, Juarez Paraizo e Renato Viana. Como prêmios, recebeu a Medalha de Ouro no Primeiro Salão Baiano de Artes Plásticas (1972), Menção Honrosa no Salão Independente de Brasília (1978), Prêmio Governo do Estado da Bahia – Hospital Edgar Santos (1979), Prêmio O Coringa (1984) e Medalha Jorge Amado – O País do Carnaval (1985).



No catálogo Tati Moreno 1981-1985, fonte dos dados oferecidos acima, encontra-se o texto A Imaginária de Tati Moreno, assinado pelo escritor e poeta Carlos Eduardo da Rocha, que, embora analise a produção e imagens de santos, nos parágrafos iniciais ajuda a entender a singularidade da técnica do artista baiano e da sua linguagem, universal na sua essência.



“Tati Moreno, um Santeiro moderno, cria suas imagens de modo muito pessoal, trabalhando chapas de metal, o latão, cortadas, soldadas e em moldagens surpreendentes nos efeitos figurativos. O latão que se constitui no material de sua escolha propositada, é o principal elemento formador da sua escultura, de expressão tão forte, onde volume, linhas encurvadas e movimentos, compõem uma obra que se poderia chamar de neobarroca.



Sabe-se que o material empregado pelos artistas, na maioria das épocas, em toda a História, define a produção da obra de arte e contribui para a elaboração dos estilos e das poéticas.



As imagens de Tati Moreno, construídas em metal, não fogem à regra apontada e exultam no seu estilo próprio com características nítidas de um artista da Bahia e por isso mesmo, fiel às tradições populares, religiosas e sobretudo do gosto barroco arraigado na quadricentenária Cidade de Salvador.



A modernidade que o metal confere à escultura de Tati Moreno ainda poderia ser uma herança tradicional na memória das imagens revestidas de prata, como a Nossa Senhora das Maravilhas, ligada à legenda do estalo do Padre Vieira, imagens feitas de chumbo e até de ouro, repuxadas e maciças do século XVIII.”



Cumpre ainda registrar que, em 1987, foi publicada a obra Orixás de Tati Moreno, com apresentação de Jorge Amado e Carlos Eduardo da Rocha.


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