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Contos-->Acordou em um susto... -- 21/02/2003 - 14:14 (JANE DE PAULA CARVALHO SANTOS) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um conto a quatro mãos, as minhas e as de Marcel de Alcântara

Acordou em um susto. Não sabia onde estava, nem por que sentia tantas dores. A cabeça estava completamente zonza. O ambiente estaria em completo breu, não fosse por uma gama de fiozinhos de luz que vazavam nas brechas da parede de madeira. Aquela constelação amarela no chão, envolta em brumas do que se imaginava ser poeira, incomodava. Bateu com o cotovelo e forçou a entrada da luz, onde supôs ser uma janela. O sol entrou inclemente e inundou o cômodo; sujeira, lixo, baratas e uma cama de campanha fechada no canto, compunha o cenário macabro. Lá fora, uma comunidade pobre, muitas crianças e esgoto vazando a céu aberto.
Tentou se erguer, mas suas pernas estavam trêmulas. Quis pedir ajuda, mas apenas conseguiu balbuciar alguns sons ininteligíveis. De repente, uma porta de madeira abriu-se violentamente, trazendo uma rajada de vento que impregnou o local com um odor fétido e mais poeira. Tossiu com dificuldade, sua garganta estava fechada e quase sufocou. Uma bola de futebol atravessou a porta e lentamente rolou até tocar seus pés. Um garotinho seminu e descalço, correu para pegar a bola e estancou na sua frente, observando-o curioso. Tentou falar ao moleque e pedir ajuda, um pouco de água, mas ele pegou o brinquedo e correu fechando a porta atrás de si.
Aquela situação o estava enfurecendo e, rastejando, buscou as últimas forças para abrir a porta. Encontrou um corredor comprido, vazio, com uma porta ao fundo. No beiral, rindo inocentemente, estava o garotinho abraçado à bola. Apoiando na parede corroída, que quase veio ao chão com o seu peso, conseguiu se erguer e se manter em pé. A cabeça rodava muito e uma dor lancinante na coxa da perna esquerda ameaçou o derrubar novamente; passou a mão no local dolorido e sentiu uma secreção espessa. Aquilo não era sangue, a ferida devia estar purulando, já. Mas, como??? Por quanto tempo ficou desacordado, afinal?
Seguiu o corredor e, lá fora, gritou para algumas mulheres que lavavam roupa.
- Ei!
As mulheres viraram em sua direção e, como que coreografadas num balé lento e cheio de movimentos delicados, juntaram as peças de roupa nas bacias reluzentes e rumaram para os barracos.
- Mas, que merda! Alguém pode me ajudar????
Então, ouviu um tiro. O cheiro de pólvora queimada se misturou rapidamente ao odor podre de coisa morta, de carniça. As mulheres apressaram o passo, fecharam as janelas e portas; os meninos se entocaram no mato. E ele ficou só outra vez.
Tentou pensar, mas não havia tempo para nada, por que ouviu outro tiro, próximo, depois outro ainda mais próximo. Correu e se enveredou por uma viela estreita, correndo o quanto podia. A dor na perna esquerda tornou-se insuportável e ele caiu quase desfalecido.
Então, sentiu alguma coisa tocar-lhe os cabelos e depois a testa. Era molhado, cheirava mal, parecia uma língua, e era! Um vira-latas lambeu-lhe o rosto suado, depois mordeu a gola da sua camisa e começou a puxá-lo, arrastando-o até um beco escuro. Ouviu vozes cada vez mais perto, uma delas era rouca e predominante. Certamente estavam à sua procura. Permaneceu em silêncio absoluto até que as vozes fossem afastando-se até sumirem de vez. O cachorro deitou-se ao seu lado: enfim, um amigo.
O sol se punha devagar, tudo ia ficando envolto na penumbra mansa do fim da tarde; sentia um cansaço imenso e todo o desconsolo da face da terra... Quando a noite caiu intensa e pesada, o encontrou chorando. Dia nascendo, nesgas vermelhas cortavam o manto negro da noite, sentiu novamente a língua viscosa do amigo na nuca e se virou para apreciar o único amparo conseguido naquelas horas loucas. E ele parecia inquieto, se abaixava, rosnava, fungava... Está certo - pensou - se é isso o que você quer, eu o sigo. A perna parecia melhor, o corpo demonstrava reagir à seqüência de ataques bárbaros e sem explicação; se pôs ereto e seguiu o cão.
Se embrenharam no mato atrás da comunidade e andaram por horas a fio até chegarem a um vilarejo de casinhas brancas. Foi recebido por um senhor vestido de monge, que apenas lhe sorria francamente. Não pensou duas vezes antes de bombardear o homem com perguntas ansiosas e aflitas, e em resposta obteve outro sorriso claro e uma frase tranqüilizadora:
- Vamos cuidar do corpo, depois veremos o que pode ser feito...
O homem lhe deu o que comer, um banheiro, roupas limpas e uma cama para descansar; tratou a ferida da perna impondo as mãos em forma de concha e emitindo uma luz verde tão sutil, que parecia haver um vaga-lume escondido sob as mãos. Tudo acontecia tão naturalmente - e era tão bom ter alguém a seu favor - que mesmo sendo céptico em relação a tudo, não abriu mais a boca. O alívio foi surgindo em ondas suaves, como se tivesse tomado um analgésico, todo o corpo parecia imerso uma grande bacia de éter. Em pouco tempo, dormiu a noite mais restauradora de sua história de vida.
Ao acordar, seu primeiro pensamento foi para o vira-latas que tinha evitado que seu corpo ficasse enfeitado com dezenas de buracos de bala. Observou ao redor o pequeno cômodo e passou a mão na perna verificando admirado que o ferimento havia cicatrizado.
Por mais que se esforçasse, não lembrava como toda aquela odisséia tinha começado, lembrava apenas de estar dirigindo à noite, quando repentinamente, luzes policromicas surgiram do nada, ofuscando sua visão e fazendo com que perdesse o controle do carro, que capotou. Depois disso acordou num barraco no meio de uma favela. Perguntas fervilhavam em sua mente e ainda precisava agradecer o monge misterioso e perguntar onde se encontrava..."Que dia seria, quanto tempo havia se passado?”. Então ouviu:
- Calma meu jovem, estou aqui para ajudá-lo.
Nem percebera a presença do monge, tão imerso estava em seus pensamentos.
- Desculpe-me se o assustei, pensei que poderia ainda estar dormindo, então entrei sem fazer barulho.
- Senhor, quero agradecê-lo por tudo, pensei que ia morrer e...
- Não me agradeça, mas a Deus que o trouxe até aqui. Me chame por Frei Silas, e o seu nome?
- Paulo.
- Paulo, o nome do apóstolo que uma vez viu luzes misteriosas no céu...
- Como? O que o senhor disse?
- Calma, você precisa se alimentar, depois tentarei dar respostas às suas perguntas.
- Diga apenas que dia é hoje...
- Hoje é quatorze de dezembro.
- Dezembro?! Impossível! Quando saí de São Paulo era janeiro! Não posso ter voltado no tempo!
- Entendo Paulo, creio então que sua jornada tenha sido maior que a planejada?
- Minha noiva, meus pais, minha família! Um ano fora...Devem pensar que estou morto!
- Não adianta se afligir, agora precisa manter o equilíbrio, pois pode ter uma recaída, você chegou aqui muito debilitado.
- Mas eu saí logo após as festas de ano novo... Janeiro de 2003, como posso ter passado um ano desacordado?
- Bom, filho, não se assuste, então. Você passou bem mais que um ano longe dos seus... Estamos em dezembro de 2006.
Dois – mil – e - seis. Aquilo varou a massa encefálica como um dardo, se alojando na perna que já estava sã, fazendo a cicatriz se abrir e o sangue jorrar em jatos. Frei Silas recuou assustado e correu chamando por ajuda. Mais uma vez sentiu suas forças se esvaírem e desmaiou.
Paulo acordou desta vez numa sala iluminada por uma luz azul tênue, com muitas pessoas vestidas como Frei Silas. Era estranho, mas não sentia medo... Aliás, não sentia nada, era como se não estivesse em seu corpo, era como se estivesse apenas apreciando a cena. No canto da sala, como se estivesse a vigiar, estava o frei amigo que, assim que o viu, soltou o mesmo sorriso franco com o qual lhe recebera antes e Paulo ficou mais confiante. Então olhou o corpo inerte e a junta médica que o cuidava, olhou a perna e viu novamente a ferida escancarada em pústulas. Ante essa visão, o desespero o encampou novamente e a luz azul se tornou violeta e rubra e era como se alguém tivesse ligado uma sirene e não via mais nada, só a dor, a dor profunda e agonizante de sua perna; ele não era mais Paulo, ele era apenas uma ferida em sua perna, um câncro em metástase que agonizava, apodrecia e morria. Frei Silas voou em sua direção e o retirou dali, levando-o para uma cachoeira e o manteve em seus braços sob a água que descia numa fina cortina, lavando, lavando, recuperando. A água, que, contrariando todos os postulados científicos, não molhava, breve ficou um fiozinho e secou. Frei Silas o deitou na relva próxima e disse:
- Paulo, por pouco não o perdemos... Essa sua curiosidade é a maior que já vi na vida...
Frei Silas tentava controlar o riso, mas não conseguia. Parecia cansado e ofegante. Paulo não conseguia falar e isso o foi angustiando, fazendo a respiração acelerar. Frei Silas o acalmou.
- Está bem, Paulo. Antes que você tenha outra síncope - riu novamente - vou explicar a situação atual. Não sou o super-homem, apenas estamos, eu e você, fora de nossos corpos terrenos. Foi preciso retirá-lo da sala de cirurgia astral, pelas razões óbvias de seu desespero ante o desconhecido. Essa água da cachoeira não é água, nem essa relva é vegetal. Estamos em um espaço paralelo, cujo aspecto é o que mais lhe conforta. A ferida de sua perna é algo que não consegui sarar da primeira vez, quando fiz a imposição com minhas mãos, você se lembra, não é? Parece que é nesta ferida que você deposita cada partícula de stress, ansiedade e angústia acumuladas nestes anos que passou fora do ar. Então, como você viu, pedi auxílio aos outros irmãos da fraternidade e eles estão reunidos sobre seu corpo físico, tentando direcionar os sentimentos escuros para outro lugar, um objeto, talvez, até que possamos conversar com você e descobrir o que passou. Sim, eu sei que você não se lembra, mas tenho certeza de que em algum lugar em você há o registro. Ele só está apagado, não sabemos por que razão. Você parece uma pessoa muito determinada, de uma energia positiva, mas com cargas elevadas de intransigência, talvez um muito de ceticismo e isso pode estar causando o conflito. É tudo o que sei. O restante poderemos descobrir depois.
Frei Silas colocou as mãos sobre os olhos de Paulo e iniciou um mantra suave e leve, Paulo sentiu odor de flores e uma brisa calma. Adormeceu outra vez e quando acordou estava no quarto que lhe fora destinado quando chegou ao vilarejo. O cão amigo estava ao seu lado, parecia fazer sua guarda. Paulo o afagou e mentalmente agradeceu mais uma vez a companhia.
Paulo estava mais tranqüilo, parecia haver compreendido que era necessário se recuperar de todo, para conseguir compreender as razões de sua situação. Achava risível aquela conjuntura anômala: ele, ateu fervoroso, ali em meio a uma fraternidade religiosa, vivenciando circunstâncias tão vanguardistas e aguardando que uma figura esotérica lhe trouxesse respostas críveis... Sentiu uma saudade imensa de Célia, seus planos de felicidade a dois, a casa já montada e a conta conjunta no banco... Quatro anos sem notícias era mais que motivo para endereçar a outrem a cama que lhe seria destinada. Seu trabalho, seu chefe... Sua vida inteira despedaçada como num puzzle por montar.
Mais tarde, Frei Silas o encaminhou novamente a um recinto fechado, o acomodou em uma cama, fechou as janelas, retirou um colar do bolso e o entregou.
- Este é o objeto para o qual serão direcionados os seus sentimentos inferiores, que acabam materializando-se nessa sua ferida da perna. Isso significa que a ferida não vai mais abrir e você não vai mais sentir dor. Coloque em seu pescoço e não o retire até que tenha certeza plena de autonomia. Será como um amuleto.
Paulo analisou o objeto: Era um cristal azul pendurado num barbante. Seu senso crítico parecia fervilhar, mas Paulo se esforçava por acreditar, precisava daquilo - não havia nenhuma outra alternativa. Depois de tudo o que tinha visto e sentido, suas convicções estavam ruindo e ele sabia que nunca mais seria a mesma pessoa...
- Agora vamos fazer uma sessão de regressão. Eu vou impor as mãos novamente sobre seus olhos e você vai ver uma luz púrpura brilhante. Quero que você se concentre nela e escute apenas a minha voz.
- Frei Silas, interrompeu Paulo, perdoe-me a intromissão em seu trabalho, mas como pode esse colar curar a ferida da minha perna? Como pode o senhor criar luzes coloridas a cada vez que impõe as mãos? Como posso ficar fora de meu corpo e flutuar para uma cascata de água que não molha? Como pôde o senhor me sustentar ali?
Frei Silas coçou a cabeça e tranqüilamente disse:
- Paulo, esse não é o momento certo para explicações, mas lhe adianto que não faço milagres, tudo o que você viu está em conformidade com as leis da natureza. Independente do que iremos descobrir com a regressão que faremos agora, desde já convido-o a permanecer aqui em nossa comunidade para aprender um pouco dos mistérios que o intrigaram. Agora esqueça todas essas preocupações, procure relaxar para iniciarmos o processo...
Frei Silas esperou alguns minutos, então impôs suas mãos sobre os olhos de Paulo e pediu para que ele se concentrasse na luz púrpura que começava a surgir:
- Agora quero que você ouça a minha voz e relaxe cada vez mais, conforme a luz for ficando intensa, seus olhos ficarão pesados e você irá fechá-los vagarosamente, sentindo-se transportado para o passado, irá lembrar-se de detalhes do que fez há poucos dias, depois há um mês atrás e assim por diante...
Paulo sentiu-se leve, parecia que flutuava e girava sobre o próprio eixo, lentamente. A luz púrpura não incomodava seus olhos, muito pelo contrário, era bom olhá-la fixamente. A intensidade da cor luminosa aumentava de forma gradativa, enquanto o Frei Silas com uma voz hipnótica, procurava induzir o subconsciente de Paulo a revelar suas memórias bloqueadas. Paulo acabou fechando os olhos, mas não sentia sono, permaneceu consciente do que estava acontecendo e aos poucos foi transportado para o dia em que a sua vida deu uma reviravolta de 180 graus.
Ele novamente estava dirigindo na estrada, exatamente como há três anos. Tudo parecia tão real; sentia a brisa no rosto e ouvia novamente a música no rádio, quando de repente, surgiram as luzes e ele perdeu o controle do automóvel. O carro capotou muitas vezes e quando parou, Paulo estava com as pernas presas entre o volante e o painel retorcido. A dor era insuportável e ficou imaginado que morreria ali mesmo... O teto do carro também amassado, empurrava a sua cabeça de tal maneira que forçava seu queixo contra o peito. Pela primeira vez em sua vida rezou com um fervor. E, como que atendendo a sua rogativa, sentiu o carro todo tremer e serras elétricas começaram a cortar o veiculo. Pensou que fossem os bombeiros, tentou divisar os salvadores, mas as luzes fortes estavam direcionadas em seu rosto, Paulo não conseguia ver nada, a dor ainda era muito forte, sentiu que ia desfalecer... Quando o corpo estava livre da carcaça do automóvel, Paulo foi depositado no gramado ao lado da pista e as luzes fortes se apagaram de súbito. O breu da noite tomou conta de tudo, inclusive dele próprio e Paulo perdeu a consciência.
Frei Silas continuou a regressão pedindo para que Paulo se lembrasse da primeira coisa que viu ao acordar, imaginado que já conhecia a história dali em diante, mas Paulo relatou fatos diferentes. Quando recobrou os sentidos, Paulo notou que estava em um hospital, cercado de médicos e foi submetido a uma bateria de exames que se repetiriam muitas vezes. Paulo apagava e quando recobrava a consciência, percebia que estavam coletando seu sangue e amostras de tecido, não sentia dor, por que parecia estar anestesiado, ou dopado. Muitas vezes se viu num aparelho semelhante ao de raios x e outro como o de tomografia – uma câmara pequena e abaulada, que girava ao seu redor. E assim aconteceu diversas vezes, sem que Frei Silas ou Paulo pudessem saber quanto tempo estava se passando... E, num desses estados rápidos de vigília, o pobre Paulo relatou a Frei Silas que os médicos comentaram sobre os exames em sua presença, falaram em “DNA”, “genoma” e “células-ovo” e outros termos técnicos. E falaram também em aceleração de crescimento.
A regressão continuou sem novidades até que finalmente Paulo se viu acordando na favela. Então Frei Silas pediu para que Paulo abrisse lentamente os olhos enquanto a luz púrpura ia desvanecendo.
Terminada a regressão, os dois ficaram se olhando por algum tempo até que o Frei sugeriu que fossem beber um café bem forte. Tomaram a bebida em silêncio, ambos não sabiam o que dizer, a regressão não havia esclarecido muita coisa. Paulo então lembrou-se da noiva... Célia, Célia... O seu coração deu um nó dentro do peito, um vazio e uma melancolia abraçaram a alma do rapaz que desabou entre lágrimas... O cão amigo apareceu de mansinho e sentou-se ao seu lado. O rapaz o abraçou e desesperado pediu para que Frei Silas novamente impusesse suas mãos sobre si e fizesse a dor moral passar.
- Não meu amigo, dessa vez não, todos temos que enfrentar nossas dores com fé e valentia, se eu ficar ministrando passes magnéticos toda hora em você, nunca conseguirá realmente superar o que aconteceu.
Paulo permaneceu ainda alguns dias na comunidade, aprendeu um pouco da doutrina, mas percebia que precisava perseguir o seu destino. Precisava ver Célia, saber como ela estava, saber como estavam seus pais, sua vida.
Frei Silas deu a Paulo o pouco de dinheiro que havia na caixinha da comunidade – de doações das quais sobreviviam – que Paulo relutou em aceitar, mas foi convencido por Frei Silas de que precisaria de algo para recomeçar sua busca.
Paulo partiu e o cão o acompanhou, chegaram a uma cidade pequena e tomaram uma condução rumo à capital, rumo à sua casa – se é que ainda havia casa. O ônibus estava lotado, não havia assentos para todos os passageiros e havia muitos animais a bordo, mas foi o que conseguiu com o pouco que frei Silas lhe dera.
Chegaram à cidade, a casa de Paulo era próxima, mas sua intuição não o traiu. Realmente não havia mais casa, não havia mais sequer a rua – tudo agora era um supermercado enorme, com estacionamento pago. Paulo procurou um orelhão e ligou a cobrar para a casa dos pais, mas a voz feminina que o atendeu disse que a casa e o telefone haviam sido vendidos há muito tempo e ela não conhecia os donos anteriores, que não poderia lhe ajudar.
Paulo ligou a cobrar para a casa de Célia, mas não queriam receber sua ligação. Ele insistiu muitas vezes e venceu o interlocutor pelo cansaço, a voz do futuro sogro lhe pareceu bem cansada no outro lado:
- Mas o que é que você quer, afinal?
- Seu Vicente, sou eu, o Paulo... Lembra de mim?
- E que novidade é essa agora, de ligar a cobrar? Aliás, nem sei por que quer ligar para cá. Que história é essa de “lembra de mim”? – Seu Vicente demonstrava uma antipatia que nunca havia percebido antes
- É que eu estou numa situação complicada e queria ver se o senhor podia...
Seu Vicente interrompeu secamente:
- Não, senhor Paulo, não “podia”, não posso e nem não quero nada que venha de sua pessoa. Eu imaginava que essa situação já estivesse bastante clara. E eu já estou muito velho pra ficar sendo seu garoto de recados. Quer falar com a Célia? Ligue diretamente para ela.
- Seu Vicente, por favor não desligue!
- Essa sua pose de “bom moço”, senhor Paulo, guarde para enganar outro.
- Seu Vicente, eu não tenho o telefone da Célia...
O velho deu o telefone da filha e desligou bruscamente. Paulo ligou para Célia, mas esta se mostrou ainda mais arredia que o pai e da conversa obteve algumas novas informações: eles foram casados por dois anos e tiveram dois filhos. Ele, Paulo, era um calhorda traidor, um monstro enquanto pai, um trator enquanto marido e estava impedido judicialmente de ver os filhos ou de se aproximar de Célia a menos de cem metros de distância. E Célia disse tudo isso acrescentando a frase “como você bem foi informado” ao final da ligação. Soube também, da metralhada verbal recebida, que ele morava num apart hotel ali próximo, visto que na divisão dos bens, a casa havia ficado para Célia e as crianças. E Célia também foi portadora da pior das notícias do dia: seus pais não deviam mais estar vivos, por que Célia estava na justiça para obter uma parte da herança que os velhos deixaram.
Paulo segurou o amuleto que Frei Silas lhe dera e percebeu que o cristal havia mudado de cor, estava preto. Não havia mais o que fazer ali, não havia mais para quem ligar, o mundo parecia ter acabado para ele.
Seguiu com o cão para o tal apart hotel e ficou esperando, de longe, perscrutando alguém que se parecesse com ele, pois não havia outra explicação para tanta loucura: alguém havia tomado seu lugar. E era alguém bem cafajeste.
A noite caiu serena, Paulo se aninhou com o cão e esperou o novo dia, que veio sem novidades. Os passantes deixavam cair algumas moedas piedosas, cumprindo o dever de bons cidadãos, cristãos e caridosos e assim Paulo e o cão comeram alguma coisa. Outro dia se passou e mais outro, sem novidades. Os mendigos da rua se juntaram a Paulo, fizeram amizade, dividiram o pouco que tinham. E nada de seu sósia aparecer.
Até que numa tarde o viu. Era um homem alinhado, vestindo um terno escuro, que fumava nervosamente na porta do prédio. Paulo deu um salto do chão e correu até o homem, havia recuperado as forças no ódio que sentia daquela criatura que havia lhe roubado tudo que tinha e havia desprezado e destruído a parte mais linda de sua vida.
- Filho da puta! Quem é você???
Dois seguranças armados renderam Paulo e o prostraram de joelhos ante o homem, que se agachou, segurou o rosto de Paulo e sorriu cinicamente.
- Você está vivo? Ora vejam só!
Paulo foi arrastado para um carro e recebeu uma pancada violenta na nuca, que o fez desfalecer. Quando recobrou os sentidos, abriu os olhos e viu uma constelação amarela no chão, reconheceu o odor fétido da favela e desejou morrer.



jane_de_paula@yahoo.com



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