Ontem, por questões de foro íntimo, resolvi ir à UFPA apenas para o segundo horário. Peguei o ónibus faltando pouco mais de vinte e cinco minutos para as seis da tarde. Era o Guamá-Montepio, que dá voltas e voltas até chegar ao seu destino. Pelas tantas desse passeio, algumas evocações surgiram na mente, e todas tinham a ver com o modo de as pessoas de Belém, nossa linda cidade das mangueiras, comportam-se ao cair da tarde, quando os raios do sol se tornam deliciosos e convidativos a uma boa prosa entre amigos nas portas das casas, à semelhança das cidadezinhas do interior.
Belém cresceu muito nos últimos anos, tomando ares de cidade grande, imensa, dessas que, ao se urbanizarem rapidamente, afastam os pequenos hábitos interioranos do centro da cidade para as periferias, onde os interesses maiores não são os mesmos do epicentro comercial, ou os dos bairros chiques, de mansões portentosas e prédios de luxo, cercados todos por muros imensos e vigilància acirrada, fazendo com que um vizinho sequer saiba exatamente como são fisicamente os outros, e, muito menos, como são os hábitos, as peculiaridades de quem mora ao lado, os gostos pessoais, o tipo de música, a novela predileta, enfim, aquelas minúcias que nossos vizinhos deixam escapar de sua intimidade caseira, dando-nos quase o direito de opinarmos, de discordarmos disso ou daquilo, feito familiares que gostam de meter o bico em tudo.
Graças a Deus, pensava comigo, que os moradores das periferias de Belém não se deixaram vencer por esse isolamento que o progresso urbano impõe aos moradores do centro. Em quase todas as calçadas das casas por onde passou aquele ónibus havia pessoas conversando, sentadas coladas umas à s outras. Outras, jogando partidas de baralho, pif-paf por certo. Também havia solitários, sentados numa cadeira, olhando o movimento da rua. Todos, contudo, pareciam felizes, apesar de suas óbvias preocupações cotidianas. Era a celebração da vida manifesta nesses magníficos instantes de comunhão entre amigos. Ou, no caso dos solitários, do compartilhar dessa vida com outros solitários que não se isolam do mundo por medo de serem vistos ou encontrados por alguém, fato que os tiraria dessa aparente solidão - solidões amalgamadas em uma comunhão pelo encontro de quem ama a vida...
Já no meio do percurso para a UFPA, junto ao muro lateral do cemitério de Santa Izabel vi uma pequena banca de venda de mingaus: milho, tapioca; talvez tivesse café, não sei. Em um banco próximo, a dona da pequena venda (sei disso porque ela usava um lenço a cobrir a cabeça, como sinal de higiene) e mais dois, um homem e uma mulher, espremiam-se numa conversa agradabilíssima, perceptível pela expressão de contentamento que cada um deles deixava patente aos viajantes daquela condução coletiva.
Do outro lado do muro, separados por frias e duras catacumbas, os mortos descansavam em sua última morada. A ausência de movimentos nesse lado do muro, o silêncio, a paz apenas quebrada pelo cantar de um curió ou pelo cair de uma deliciosa manga madura, contrastavam com o barulho de carros, risos e gritos de meninos correndo atrás de pipas e bolas no lado onde há vida.
Ainda era dia, mas o sol já se despedia desses personagens vivos das cenas periféricas de Belém. A noite que se avizinhava provavelmente modificaria o ambiente. A pequena venda seria recolhida, a dona e seus amigos iram para as casas descansar, dormir o sono dos justos. Talvez não tivessem coragem de ficar ali quando a escuridão chegasse. Quem sabe por respeito aos que não mais podiam celebrar a vida sob os raios tímidos das tardes de Belém; quem sabe pra deixá-los sossegados em seus jazigos. Afinal, um dia estarão do outro lado muro, e não querem, por certo, incomodar aqueles que já se livraram dos barulhos da vida...
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