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Artigos-->Pensando em Jônatas e em sua poesia submersa -- 22/08/2000 - 22:37 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Nadejda, Nadeja, en russe

ça veut dire esperance."

(Georges Moustaki)





"Quando Nadejda Shelapenina

partiu de Kursk,

estava esperançosa de que,

quando chegasse a Murmansk

no sábado à tarde,

seu filho Alexei,

um dos membros

da tripulação do Kursk,

estivesse à sua espera,

e fosse, alegremente,

ao seu encontro."







A Jônatas eu também diria que a poesia bem pode estar ali onde menos se a espera, concretamente submersa, como no artigo de Robyn Dixon para o Los Angeles Times, publicado pelo jornal O Estado de São Paulo na segunda-feira, dia 21 de agosto deste ano 2000. Não oferecendo o jornal a identificação do responsável pelo texto em português, vamos chamá-lo de tradutor, tampouco posso aqui atribuir-lhe os créditos pela autoria.

Foi tomado pela comoção da tragédia, que só nesse dia tinha o seu terrível desenlace último revelado, mas igualmente pela justa indignação do povo russo e, mais particularmente, dos familiares das vítimas, ante a inoperância de seus altos mandatários e a patética inutilidade da sua antes tão decantada máquina de guerra, que li o referido texto, pinçado dentre o farto material veiculado pela imprensa sobre o infausto acontecimento. Mas, paradoxalmente, me emocionava também, do ponto de vista estético, ante a poesia despojada e singela da passagem, por isso acima escandida como se fosse um poema. Pensava em como pode alguém alcançar resultados, como esse, à altura das melhores traduções de poemas que conhecemos e somos, não raro, chamados a mistificar - como obra de gênio ou dessa insondável entidade que, sem um pingo de modéstia, nos habituamos a chamar de congenialidade -, e desaparecer desse modo, inominado, nesse mar de palavras maltratadas em que lenta, inadvertida e diariamente nos afogamos.



O articulista do Los Angeles Times não soube ou não quis explorar o significado do nome dessa mãe russa que se dirigia, juntamente com tantas outras, a Murmansk, significado que por acaso conheço, porque uma vez fui chamado a traduzir canções de Georges Moustaki, compositor de origem grega radicado em Paris, para um jamais concretizado disco brasileiro.



A passagem trouxe-me à memória algumas das tentativas de tradução dos poemas de Brecht, por exemplo; o mesmo clima épico-descritivo, a mesma estranheza causada pela quase ficção de um texto em português que pretende dar conta de vivências e comoções tão profundas quanto nunca por nós vivenciadas, de uma outra latitude geográfica, de uma outra dimensão lingüístico-sonora, alheias esferas desconhecidas da emoção humana.



Há correntes da Teoria da Tradução a defender, e muito delas eu discordo, que a boa tradução devesse, necessariamente, ocultar ao leitor a sua natureza, as suas entranhas, as suas impossibilidades. Algo assim como fazer um poema, conto ou romance alemão passarem ao leitor como tendo sido escritos aqui mesmo, em alguma aldeia perdida de uma das colônias alemãs do Paraná, Santa Catarina ou Rio Grande do Sul. É, pelo menos, o que se deduz do princípio de que se devessem transpor, ainda que criteriosamente, nomes de localidades e pessoas, por exemplo, para maior conforto talvez do leitor, é o que suponho, que se veria livre de estranhezas incômodas e não perderia seus vínculos com a nacionalidade. No meu entender, o leitor não deve perder, jamais, a certeza de estar a ler um texto traduzido, um entre outros resultados possíveis, com suas lacunas, sua quase precariedade sonora, seus momentos de intradutibilidade e, às vezes também, é claro, a mágica de alguns instantes de verdadeira poesia.



O texto que acima reproduzo, entre as aspas que lhe são devidas, é de difícil classificação, arrancado que foi ao contexto jornalístico e à condenação ao anonimato que este lhe reservou, nesse sua passagem a um outro gênero, que não sei bem se poema, e não sendo meu, ainda que por mim publicado na forma como está. Chamei-o, entre parênteses, de "ready made", para fazer uso de uma termo do âmbito das artes plásticas. Desde o urinol e a roda de bicicleta, expostos num museu e assinados embaixo por Marcel Duchamp, o século XX assistiu, atônito, ao ataque desferido pelas vanguardas contra a instituição autônoma da arte, como seguiu contemplando, catatônico, ao vale-tudo desse "pasticciaccio brutto" que nos obrigamos a chamar de pós-modernidade. Em todo o caso, que fique sendo o meu gesto um documento - risco calculado, bem sei -, um achado curioso de um que não se quer "tradutor", mas simplesmente alguém que traduz - e nisso se veja uma importante distinção - e que respira esse ar do tempo, condicionado e em tudo semelhante ao dos ambientes em aeroportos, em sua quase indeterminação geográfica e seu pairar acima das contingências materiais propriamente terrenas, que é o espaço mesmo da tradução, onde se dá o embate, de conseqüências sempre e felizmente imprevisíveis, entre as assim chamadas línguas de partida e de chegada.

Não é incomum que boa parte dos tradutores se deixe seduzir pelos logotipos, pelos fetiches de uma terminologia supostamente científica, que possam mesmo se sentir como que enviados de algum planeta distante, outras galáxias, detentores de poderes muito, mas muito acima dos normalmente atribuídos à espécie.

Mas isso é bastante compreensível, convenhamos, pois a solidão é um dos elementos inerentes a essa sua circunstância, elementos que um dia, se devidamente ponderados, ajudariam, e muito, a desvelar a verdadeira natureza dessa tarefa, entre tantas outras, demasiado humana.

Em número recente da revista CULT, para minha imensa e grata surpresa, o tradutor Paulo Henriques Britto veio a tocar num desses elementos, quase um tabu, a humildade. E concluiu ser, no entanto, extremamente difícil falar em humildade nestes tempos de tanta prepotência.

Quanto a mim, que não falo como tradutor, mas como um que traduz, entre tantos outros - reitere-se a importante distinção -, sempre ensaiei dizer, sem ter conseguido uma formulação adequada, que o que mais aprendi, no ofício de traduzir, foi a humildade. Não a virtude cristã que os catecismos católicos nos impingiram, e que é um dos pilares a sustentar as nossas tão gritantes desigualdades em todos os âmbitos do fazer humano e da convivência social. Penso, isto sim, na humildade que é reconhecimento das nossas humanas limitações, aquela que nos faz, decididamente, abraçar as diferenças, sendo, por isso mesmo, produtiva. Eis o que o fazer da tradução nos ensina de mais estimulante: não somos super-homens, mas humanos, e falíveis. E o nosso barco singra as águas plácidas de um lago, para usar uma imagem do escritor austríaco Peter Handke, e podemos divisar, lá no fundo, as ruínas de uma cidade submersa. Cumpre resgatá-la, tarefa que em muito se assemelha à do escritor. Este também percorre em seu barco o mesmo lago, tendo que resgatar lá do fundo uma cidade que não vê, apenas adivinha.

E é bom que seja assim. Tarefa humana, factível e, por princípio, nunca passível de perfeição. O fato de alguém ousar afirmar fazer tão-somente traduções definitivas, só pode ser mesmo creditá-lo ao fato de ser a nossa vida cultural assentada sobre os esteios do arrivismo e da arrogância.



Mas, voltando ao nosso texto e à tragédia que ele nos descreve, a tripulação do Kursk, agora sabemos todos, 118 jovens na faixa dos 20 anos de idade, pereceu numa operação de treinamento, e os jornais continuam a vasculhar cada momento, cada pequeno romance pessoal e familiar destruído no interior de um engenho de guerra. Alexei não veio, sorridente, ao encontro de Nadejda Shelapenina, no momento em que esta, movida pela virtude que o seu próprio nome designa, desembarcava na estação de Murmansk.

Já o tradutor do texto publicado pelo jornal O Estado de São Paulo não contava com tal acidente em seu anônimo percurso, e é muito provável que jamais venha a ter notícia de que um leitor qualquer, não importa onde, possa ter descoberto e tentado resgatar a sua "poesia submersa", destinada que estava a se perder nas águas turvas do inominado.



"Poesia submersa" é uma formulação que remete ao poema "Poesia Submarina", de Jônatas Micheletti Protes, cuja arriscada travessia poética eu acompanho com olhos de quem, neste usinadeletras , vive também a sua inesperada aventura de proporções e conseqüências, para melhor proveito de todos, de todo imprevisíveis.
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