On achève bien les hommes
Curioso, comprei o livro A existência de Deus comprovada por um filósofo ateu, de
Dany-Robert Dufour. Queria ver como esse filósofo ateu comprovaria a existência
de Deus e quais os argumentos que ele utilizaria. Conseguiria ele o seu
intento? Se ele atingisse o seu objetivo, na prática ele seria um convertido,
um ex-ateu. Provada a existência de Deus pelo autor, caberia a ele acreditar em
Deus e, por conseguinte, deixaria de ser ateu. Eu, descrente, coloquei pouca fé
no que o título do livro se propunha.
Bastou-me a leitura
das primeiras linhas para ver que o título não se encaixava, era inapropriado.
Para começar, o autor fazia uma citação de Jean Rostand, do livro Pensamentos de um biólogo: “Está no
destino do homem inventar deuses cada vez mais plausíveis nos quais acreditará
cada vez menos.”
Na primeira página,
na “Introdução”, o autor faz um alerta: “Para evitar qualquer mal-entendido,
previno desde logo que me penso como um ateu, se não militante, pelo menos
convicto. E se reconheço de bom grado que os caminhos de Deus são
impenetráveis, é bom que se saiba que até hoje não senti nenhum sinal
prenunciador de uma possível e próxima conversão. Feitas estas ressalvas,
espero, com a possível clareza, afirmo, no entanto, que não podemos sem grande
prejuízo ignorar a questão de Deus.”
Nas páginas
seguintes, ainda na “Introdução”, após algumas considerações, o autor afirma
“De minha parte, situo em outra parte o lugar onde busco provar a existência de
Deus. No meu entender, é, antes de mais nada, nessa ínfima parte do universo
que convém provar sua necessidade: na cabeça dos homens. De todos os homens.
Pois incluo nesta proposição o ateu: ele teve necessariamente de se deparar com
a questão de Deus para responder negativamente a ela”.
Bem, pensei, então se
trata de provar a existência de Deus na cabeça dos homens, o que, vamos convir,
seria a mesma coisa que provar a inexistência de Deus. Novamente o título do
livro me incomodou, era um título enganoso. Será que foi essa a intenção do
autor? Só então recorri ao título original do livro. Em francês: On achève bien les hommes.
Antes de continuar,
devo esclarecer que não é meu objetivo tratar aqui da tese do autor. Aqueles
que quiserem andar nesse sentido terão que seguir os passos do escritor lendo o
seu livro, o que, indubitavelmente, recomendo. É especialmente instigante o
desenvolvimento do conceito da neotenia, teoria que “entende o homem como um
ser de nascimento prematuro, incapaz de alcançar seu desenvolvimento germinal
completo e, no entanto, capaz ao mesmo tempo de se reproduzir e de transmitir
suas características de juvenilidade, normalmente transitórias nos outros
animais. Ao contrário dos outros animais, esse animal não acabado deve,
portanto, finalizar-se fora da esfera da primeira natureza [o vivente], numa
segunda natureza [o falante] geralmente chamada cultura”.
Pois bem, o que estou
me propondo a escrever é sobre essa pequena investigação que fiz em decorrência
da disparidade existente entre o título original e o adotado pelo tradutor
brasileiro, que, obviamente, não fez uma tradução, mas sim optou por outro
título, no meu entender inadequado, como já mencionado.
O fato de eu estar
estudando francês foi um atrativo especial. Eu sabia que “On” é um pronome
sujeito da língua francesa que, dependendo do caso, pode ser usado de três
maneiras: as pessoas de modo geral (En France, on roule à droite – Na França,
dirige-se à direita), uma pessoa indefinida (On me l’a déjà dit – Já me
contaram) e nós (Qu’est-ce qu’on fait? – Que fazemos?), mas sempre com o verbo
conjugado na 3ª pessoa do singular. No último caso, para fins práticos, eu
diria que é semelhante ao que a gente faz na língua portuguesa (Viram? Utilizei
a expressão “a gente”). Às vezes a gente diz “a gente vai ao cinema”, outras
vezes dizemos “nós vamos ao cinema”.
Eu não sabia o
significado de “achève”. Já trato disso. As demais palavras do título são de
fácil e direta tradução: bien = bem; les = os e hommes = homens (no sentido de
seres humanos, abrangendo, portanto, homens e mulheres).
Vamos ao dicionário (Palavra-chave,
da WMF Martins Fontes) para ver o que significa “achève”. Trata-se do verbo
“achever”. Literalmente é “acabar”, mas com três sentidos: 1) finalizar o que
está começado (achever um travail – acabar com um trabalho); 2) dar o último
golpe que leva à morte (achever un animal blessé – dar o tiro de misericórdia
num animal ferido) e 3) terminar de arrasar, de desencorajar ( cette mauvaise
nouvelle l’a achevé – esta novidade ruim acabou com ele/ela).
Traduções possíveis
para “On achève bien les hommes”: 1) A gente acaba bem os homens; 2) Nós
acabamos bem com os homens; 3) Acabemos (bem) com os homens, dando um tiro de
misericórdia neles; 4) A gente está acabando (bem) com os homens; 5) Acabam-se
bem os homens e 6) Outras variantes, com os verbos terminar, liquidar, atirar e
com os pronomes nós ou eles. Pensei que talvez o título do livro pudesse ser
uma expressão idiomática francesa, mas não encontrei registro dessa
possibilidade no dicionário de expressões que tenho. Não fiquei satisfeito. Não
sei que sentido o autor quis utilizar para o seu livro e nem que sentido faria
sentido ao tema do livro. Talvez o tradutor tenha tido as mesmas dúvidas que eu
e por isso optou por dar outro título ao livro (a exemplo daquele indivíduo que,
não sabendo se sexta-feira era com “s” ou com “x”, transferiu a reunião para
sábado).
Repassei a questão
para a minha professora de francês, que também ficou em dúvida sobre qual o
sentido que o autor queria dar ao título do livro, acrescentando, porém, que o
verbo “achever” também tinha o sentido de modelar, de formar, de melhorar (usando
o sentido literal do verbo: dar acabamento)
Mas, e o que tem a
Internet a dizer sobre isso? Primeiramente fui ao Google Tradutor. Digitei “On achève
bien les hommes” e a tradução em português veio como “They shoot homens”. O que
o Google Tradutor não sabia traduzir para o português, ele tentou traduzir para
o inglês. E o que significa “shoot”, em inglês? Significa atirar, abater a
tiros, caçar. Há correlação com “dar o tiro de misericórdia num animal ferido”,
um dos sentidos do verbo “achever” francês. Continuo insatisfeito. Vamos em
frente.
Digito o título do livro em
francês no Google: mais de sete milhões de resultados. Em alguns dos primeiros
sites pesquisados, encontro, basicamente, a divulgação do livro pela editora,
livrarias e imprensa. Aqui, de pronto, dois detalhes: 1) A tradução do Google
para o título do livro novamente registra “They shoot homens”, mas também
aparece no site da “Amazon França” “Ambos os homens é completada”. A palavra
“ambos” está fora de contexto, mas “completada” é compatível com um dos
sentidos de “achever”; 2) O livro publicado em francês tem um subtítulo: “De quelques conséquences actuelles et futures de la mort de Dieu”, ou, em
português, “Algumas conseqüências atuais e futuras da morte de Deus”. Com isso,
pelo menos uma das minhas dúvidas se acaba: o título do livro em português
realmente é enganoso. O tradutor (ou o revisor, ou a editora) omitiu o
subtítulo do livro, que fala em “morte de Deus”, que seria incompatível com o
título, que registra “a existência de Deus”. Claro que os antagonistas dirão
que “morte” somente atinge quem existe; logo, Deus, ainda que não exista hoje,
segundo quem acredita em sua morte, antes então, existiu. Esquecem-se eles (ou
não sabem) que a expressão “morte de Deus” foi primeiramente utilizada por
Nietzsche, no sentido figurado de que antes existia a crença em Deus e que
agora essa crença deixou de existir, morreu, isto é, “na cabeça dos homens”, no
mesmo sentido que o autor do nosso livro em questão emprega.
Embora tenha encontrado
muitos pontos interessantes em minha pesquisa (registrando que esta se limitou
a algumas dezenas de sites, muito longe, obviamente, dos mais de sete milhões
de resultados mencionados) vou ater-me aos que considerei principais.
Tudo indica que a
expressão tenha se originado inicialmente do livro They shoot horses, don’t they?, do escritor americano Horace McCoy,
escrito em 1935 e, posteriormente, da adaptação feita para o cinema, com o
mesmo título, em 1969, por Sydney Pollack, com Jane Fonda e Michael Sarrazin.
Na França, tanto o livro como o filme levaram o título de On achéve bien les chevaux. Na Espanha, o livro foi titulado Acaso no matan a los caballos? e o
filme, Danzad, danzad, malditos. No
Brasil, o livro foi lançado pela Editora Globo em 1947, com o título de Mas não se mata cavalo?, seguido de
várias edições com o mesmo título por diversas editoras, sendo a penúltima em
2007, porém com o título Mas não se matam
cavalos? pela L&PM Editora e a última, em 2012, com o título de A noite dos desesperados, pela Sá
Editora, que deve ter-se valido do título que o filme ganhou no Brasil: A noite dos desesperados. Em Portugal, o
filme recebeu o título de Os cavalos
também se abatem (Creio que este título está incorreto e que deveria ser
“Os cavalos também são abatidos”. Na forma em que se encontra, parece que os
cavalos se abatem uns aos outros).
Encomendei o livro Mas não se matam
cavalos, de Horace McCoy, da L&PM e o filme A noite dos desesperados, de Sydney Pollack. Vi o filme e li o
livro, sendo que o filme é bastante fiel ao livro, embora o espectador e o
leitor tomam conhecimento de alguns acontecimentos da história em momentos
diferentes.
Eis o que a L&PM
escreveu na contracapa do livro:
“Uma pungente novela
sobre o desespero”
“A depressão econômica
da década de 1930 nos Estados Unidos fez as pessoas tomarem medidas drásticas
para sobreviver. Popularizaram-se no país as maratonas de dança – competições
públicas em que casais dançavam por dias a fio, desafiando os limites dos seus
corpos diante de uma platéia animada, na tentativa de ser a última dupla
remanescente. Em um período de fome e desespero, parecia uma maneira simples de
ganhar um dinheirinho. Mas tais concursos escondiam uma agressividade e uma
violência social usualmente não associadas aos salões de dança.”
“Em Mas não se matam cavalos? (1935), Horace McCoy (1897-1955)
apresenta Robert Syverten e Gloria Beatty, duas pessoas sem perspectiva alguma,
que decidem participar de uma maratona de dança achando que, assim, granjearão
alguma oportunidade de trabalho em Hollywood. Quando de sua publicação, a
novela foi considerada experimental devido à maneira como é utilizado o recurso
de flashback. Em 1969, o livro foi
adaptado para o cinema por Sydney Pollack, com Jane Fonda no papel de Gloria.
Tanto o livro quanto o filme chocaram o público ao mostrar o mundo como um
lugar em que aqueles sem dinheiro ou status
social lutam como podem pela sobrevivência – tendo à frente apenas a certeza da
morte.”
“Um livro pungente,
impossível de largar.”
Já a embalagem do DVD divulga
o seguinte texto:
“Um sórdido retrato de
tempos difíceis, uma alegoria existencialista (Variety Staff – Variety)”
“Esta é uma história
cruel e selvagem que tem lugar entre os participantes de uma maratona de dança
durante a Grande Depressão americana. Rocky (Gig Young) é o detestável mestre
de cerimônias de um concurso que oferece 1.500 dólares ao vencedor. Uma peq uena fortuna para essa dura época em
que a falta de emprego e a péssima economia atingem a população. Principalmente
aos participantes que estão à beira do desespero. Entre eles estão: Gloria
(Jane Fonda) uma mulher infeliz e deprimida que faz dupla com Robert (Michael Sarrazin)
um aproveitador [não vi elementos no filme para o personagem receber esta
classificação]; Ruby (Bonnie Bedelia) uma garota do campo que está grávida e
seu marido James (Bruce Dern); um marinheiro (Red Buttons) e uma atriz
aspirante (Susannah York). Na medida em que o concurso se estende ao segundo
mês, a raiva, a suspeita, dúvidas e insegurança atingem todos participantes,
inclusive o cruel e manipulador Rocky, levando todos a um chocante final.”
No livro, o leitor é
informado já no início sobre a morte de Glória que pediu ao seu parceiro para
matá-la. Enquanto transcorre o julgamento de Robert, ele vai contando sua
história, a maratona de dança e como tudo terminou. No filme, só sabemos isso
no final.
Mas, afinal, onde entram
os cavalos nessa história? No filme, as cenas iniciais mostram um cavalo
trotando e um menino correndo no campo e, mais atrás, um homem mais velho. O
cavalo cai sob olhos dos dois, quebrando uma perna. O velho prontamente
sacrifica o animal com uma espingarda, diante da tristeza do menino.
Intercaladas a essas cenas vão sendo comunicadas as regras da maratona de
dança. Ao final do filme, não sem antes presenciarmos toda a sorte de situações
diretas e indiretas que nos levam a comparar a sorte desses seres humanos
participantes da maratona a animais feridos, Gloria, no cume do seu desespero,
entrega um revólver a Robert, situação em que se dá o seguinte diálogo,
iniciado por Glória:
“– Vou pular fora desse
carrossel. Estou tão cansada dessa coisa toda.
– Que coisa?
– Da vida. E não me
venha com sermões cheios de luz.
– Não ia.
...
– Me ajude. Por favor,
por favor.
– Diga quando (Com o
revólver apontado para a cabeça de Glória).
– Estou pronta.
– Agora?
– Agora.”
O tiro é dado e Glória
começa a cair em câmara lenta e a continuidade da queda de seu corpo se dá em
um campo florido (numa clara analogia ao campo em que o cavalo é abatido nas
cenas iniciais do filme)
Quando a polícia chega e
prende Robert, o policial que o conduz à viatura lhe pergunta:
“– Por que fez isso
rapaz?
– Ela me pediu.
– Como é obediente. Essa
foi a única razão, rapaz?
– Sacrificam cavalos,
não sacrificam? (They shoot horses, don’t they?).”
Falei primeiramente de como
as coisas acontecem no filme, porque vi primeiro o filme e depois li o livro.
Mas, obviamente, também no livro, as referências aos cavalos são postas.
Extraio alguns trechos para mostrar isso:
“– A moçada só tem
alguns minutos antes de se retirar para um merecido descanso – Rocky anunciou
ao microfone. – E enquanto eles estiverem fora da pista, senhoras e senhores,
os pintores farão um círculo oval na pista para o dérbi desta noite. Dérbi hoje
à noite, senhoras e senhores: não se esqueçam do dérbi. É a coisa mais
emocionante que já viram... Tudo bem, moçada, faltam dois minutos para o
descanso... Um pouco mais de velocidade, moçada... Mostrem aos presentes como
vocês são fortes... Vocês da platéia também, mostrem a essa moçada que podem
contar com o apoio de vocês...”
“– Senhoras e senhores –
Rocky disse ao microfone –, antes de começarmos o sensacional dérbi, gostaria
de chamar sua atenção para as regras. Devido ao número de participantes, o
dérbi será feito em duas seções: quarenta pares na primeira e quarenta na
segunda. O segundo dérbi será feito logo depois do primeiro, e as entradas
serão decididas por sorteio dos números deste chapéu. Vamos fazer os dérbis em
duas seções durante uma semana, e o casal que fizer o menor número de voltas
será eliminado. Depois da primeira semana haverá apenas um dérbi. A moçada vai
correr em volta da pista por quinze minutos, os rapazes vão correr com os
calcanhares e nas pontas dos pés, as moças vão trotar ou correr, como
preferirem. Não há um prêmio para o vencedor, mas se alguém da platéia quiser
dar um prêmio em dinheiro para animar a moçada, tenho certeza de que eles vão
gostar. Todos podem ver as camas no meio da pista, as enfermeiras e os
treinadores de pé segurando pedaços de laranjas, toalhas molhadas, sais
aromáticos e um médico de plantão para ver que nenhum desses jovens continuem a
correr se não estiver em boas condições físicas.”
“Glória e eu deixamos
que os cavalos de corrida dessem o ritmo. Não fizemos nenhum esforço para ficar
na frente. Nosso esquema era chegar a um ritmo estável e mantê-lo.”
Bem, dérbi é uma palavra
de origem inglesa, em referência a Lord Derby, que deu início à corrida de
cavalos chamada Derby de Epson, em 1780. Vemos, então, quão bem empregada está
a palavra dérbi. Inserir corridas entre os participantes, em meio a uma
maratona de dança, para extenuar ainda mais os casais, eliminando os mais
vagarosos, parece até uma situação mais dura do que as próprias corridas de
cavalos.
A exemplo do filme,
embora seja um pouco repetitivo, transcrevo a seguir a narração que Horace
McCoy, na voz de Robert, dá no final de sua história. Diferentemente do filme,
somente aqui, fica a referência explícita ao sacrifício de cavalos, como
veremos:
“Glória estava remexendo
na bolsa. Quando tirou a mão de dentro, vi que estava segurando uma arma
pequena. Não tinha visto a arma antes, mas não fiquei surpreso. Não fiquei nada
surpreso.
– Pegue – ela disse,
entregando a arma para mim.
– Não quero. Guarde isso
– eu disse.– Vamos, vamos voltar lá para dentro. Estou com frio...
– Pegue e ajude a Deus – ela disse,
pressionando a arma em minha mão. – Atire em mim. É o único jeito de me salvar
deste sofrimento.
‘Ela está certa’, disse
comigo ‘É o único jeito de salvá-la desse sofrimento.’ Quando eu era criança passava as férias na fazenda de meu avô em
Arkansas. Certo dia estava perto do defumadouro, vendo a minha avó fazer sabão
numa grande panela de ferro, quando meu avô atravessou o jardim, muito agitado.
‘A Nellie quebrou a perna’, meu avô disse. Minha avó e eu subimos a escada para
o jardim onde meu avô estava arando. A Nellie estava no chão gemendo, ainda
presa ao arado. Ficamos ali olhando para ela, só olhando para ela. Meu avô
voltou com a arma que tinha usado em Chickamauga Ridge. ‘Ela pisou num buraco’,
ele disse acariciando a cabeça de Nellie. Minha avó me virou para o outro lado.
Comecei a chorar. Ouvi um tiro. Ainda escuto esse tiro. Corri até ela, me
joguei no chão, abraçando o pescoço dela. Eu amava aquela égua. Eu odiei meu
avô. Me levantei e fui até ele, bati nas pernas dele com meus punhos... Mais
tarde, naquele dia, ele me explicou que também amava Nellie, mas que teve que
atirar nela. ‘Era a coisa mais bondosa a fazer’, ele disse. ‘Ela não ia ficar
boa. Era o único jeito de salvá-la do sofrimento...’
Eu estava com a arma na
mão.
– Tudo bem – eu disse a
Glória. – Diga quando.
– Estou pronta.
– Onde?
– Aqui mesmo. Do lado da
cabeça.
O píer pulou quando uma
onda grande se quebrou.
– Agora?
– Agora.
Atirei nela.
O píer se mexeu de novo
e a água fez um barulho de engolir algo quando voltou para o oceano.
Joguei a arma no mar.
Um policial estava
sentado atrás comigo enquanto o outro dirigia. Estávamos indo bem depressa e a
sirene tocava. Era o mesmo tipo de sirene que usaram na maratona de dança
quando queriam nos acordar.
– Por que você a matou?
– perguntou o policial no banco de trás.
– Ela me pediu – eu
disse.
– Escutou isso, Ben?
– Que filho-da-puta mais
prestativo! – disse Ben, por cima do
ombro.
– É seu único motivo? –
perguntou o policial do banco de trás.
– Mas não se matam
cavalos? – eu disse.”
O livro integra a lista
dos 1001 livros para ler antes de morrer,
de Peter Boxall (Editor geral). Em trecho da resenha, Andrew Pepper, professor
assistente de inglês e literatura americana na Queen’s University de Belfast,
escreveu:
“A maratona de dança
também é usada para comentar a exploração inerente a certas formas populares de
entretenimento, bem como a desvalorização da vida pelo capitalismo. Ao
contrário da banalidade açucarada da maioria dos filmes hollywoodianos, ela é
imprevisível, dolorosa, violenta e niilista. Os participantes são commodities,
‘cavalos’ que podem ser sacrificados tão logo deixem de ser úteis ou
produtivos. Essa é a essência da crítica social de McCoy, uma crítica que, aos
moldes da própria maratona, não leva a lugar nenhum.”
Isto posto, parece não
restar dúvidas que o sentido que os franceses deram ao traduzir “They shoot horses,
don’t they?” para “On achève bien les chevaux” não é outro que não o de “dar o
tiro de misericórdia nos cavalos feridos, para deixarem de sofrer”.
No entanto, os franceses
passaram a usar a expressão nas mais variadas situações. Assim são os livros,
peças de teatro, filmes, artigos, cujos títulos são On achève bien les grecs – Chroniques de l’euro 2015, On achève bien les
écoliers, On achève bien nos vieux, On achève bien les jeunes, On achève bien les
livres, On achève bien les anges, On achève bien les chauffeurs de taxi, “On achève
bien les disc-jockeys, On achève bien les tonneaux, On achève bien l’info, On achève
bien les investissements étrangers, On achève bien le ministère e outros,
além, é claro, do nosso On achève bien les
hommes, referindo-se, respectivamente, aos gregos, aos estudantes, aos
velhos, aos jovens, aos livros, aos anjos, aos motoristas de táxi, aos DJs, aos
barris de vinho, à informação, aos investimentos estrangeiros, ao ministério e
aos homens.
Os próprios franceses
reclamam da utilização descuidada da expressão, como observamos no site
“lesmediasmerendentmalade.fr” ou, traduzindo, “os meios de comunicação me
deixam doente”. Sob o título geral de “A patologia da mídia” e o título
específico “On n’achève pás les sots”, algo como “A gente não consegue acabar
com os tolos”, o autor escreveu:
“On achève bien les chevaux é o título em francês de um filme
célebre de Sydney Pollack de 1969 adaptado do romance homônimo de Horace McCoy
(em inglês filme e romance têm por título They
shoot the horses, don’t they?). A imprensa preguiçosa adora fazer
malabarismos com esse título, particularmente o Courrier International. Três exemplos entre uma dezena: ‘No Iraque,
on achève bien les athlètes’; ‘On achève bien les gorilles des montagnes’
e ‘On
achève bien les petits équipes’. Portanto, o sentido desta expressão não é
aquele que lhes dão alguns sots achevés
(tolos bem acabados) e sem inspiração: ele não é nem aquele de ‘certas pessoas
têm uma técnica eficaz para acabar com os cavalos, dando-lhes o tiro de
misericórdia, nem aquele, mais amplo, de ‘certas pessoas têm uma técnica
temível de matar, exterminar, ou erradicar. O sentido, totalmente outro, é
precisamente este: se abatemos um cavalo ferido que sofre, então por que, por pena,
não abateríamos também um ser humano desgostoso da vida que nos estende um
revólver e que nos pede que lhe mate? Descobrimos esta expressão amarga e
desiludida da boca de Robert Syverten em resposta ao policial que lhe interroga
sobre o assassinato que ele veio a cometer.
Os títulos do Courrier International não são em geral
uma tradução literal dos títulos originais, eles são adaptados ao gosto
francês. Assim, ‘On achève bien les gorilles
des montagnes’ corresponde no Newsweek,
de onde o artigo foi retirado, a um artigo intitulado Gorilla Warfare (algo como ‘Guerra do gorila’). Em outras palavras,
o título original não é ‘They shoot mountains gorillas, don’t they?’
William Safire, em
artigo de 26.01.1997, do New York Times,
conta que o político francês Alain Juppé, ao ouvir a pergunta de Roger Cohen do
The New York Times “se suas confissões pessoais publicadas recentemente em
livro (Entre nós) poderiam piorar sua
imagem”, deu uma curiosa resposta: “Talvez. On achève bien les chevaux” (em ingles “They shoot horses, don’t they?”).
O articulista faz
uma análise, então, da resposta de Juppé: “Qual é a origem e significado dessa
frase, expressa por Juppé em francês? Ele traz ao conhecimento ou lembrança dos
seus leitores a história contada por Horace McCoy no seu livro They shoot horses, don’t they?. E
acrescenta que, “assim como James M. Cain, outro romancista duríssimo do
período, McCoy era popular na França; sua editora, Randon House, resenhou que McCoy
foi ‘saudado pelos críticos da França como estando no mesmo nível de Hemingway
e Steinbeck.(...) O significado, tanto na França como na América, é claro: ‘Às
vezes você tem que ser cruel para ser gentil’. Mas considerando a possibilidade
de que seu livro possa piorar a situação, o uso da frase pelo Premier Juppé é
ambíguo; isso poderia significar ‘Então eu talvez dê um tiro no próprio pé’ ou
‘ Com essa revelação pessoal, eu poderia estar dando fim à minha carreira e saindo
de minha miséria’.”
Escreveu ainda William
Safire: “Sua inspiração veio da frase original do duríssimo McCoy, que morreu
em 1955? Os dicionários de citações Bartlett e Oxford cita-o como fonte. Os
franceses usam muito os cavalos em provérbios: “Il n’est si bon cheval qui ne
bronche”, que significa ‘O melhor cavalo pode tropeçar’, “Il est aisé d’aller à
pied quand on tient son cheval par la bride’, que seria, literalmente, ‘é fácil
ir a pé quando se tem o cavalo pelas rédeas’, significando que ‘é fácil descer de uma alta posição, quando essa
posição pode ser retomada à vontade’. Mas nosso adágio de miséria-amor-despacho
não pode ser encontrado entre provérbios franceses. Até que seja refutado, é o
verdadeiro McCoy.”
A expressão está também
em uma canção francesa de Laure Milan:
“Je t’ai donné tout mon amour
Sans penser que tu
pourrais um jour
A bout portant, tirer dans mon dos
Mais
on achéve bien les chevaux.”
A compositora diz
ter dado a alguém todo o seu amor e que, assim como podemos abater os cavalos
feridos, que são inocentes, ela também pode fazer a mesma coisa com ele,
dando-lhe um tiro à queima-roupa pelas costas.
Encontramos a utilização
da frase novamente no Le Courrier
International, em um artigo que fala do descaso da administração pública
para com os professores: “Après tout, on achève bien les chevaux. Porquoi pas les
professeurs de français?”, isto é: Damos o tiro de misericórdia nos cavalos.
Por que não nos professores de francês?
Raza Abazid, fundadora
da Syrie Moderne Démocratique Laïque faz uso da expressão no título de seu
artigo, de 27 de setembro de 2016, sobre Aleppo, a cidade síria destroçada por
conflitos bélicos, “On achève bien Alep...”:
“À l’heure où l’on abat
les enfants comme l’on achève les chevaux pour qu’il ne souffre pas longtemps
de leurs blessures, je me demande jusqu’où aller l’indifférence.” (Quando as
crianças são abatidas como se abatem os cavalos para que eles não sofram por
muito tempo de seus ferimentos, eu me pergunto até que ponto pode chegar a
indiferença?).
Encontrei, ainda, no “Le
Parisien SensAgent Dictionnaire”, no verbete que falava do filme “On achève
bien les chevaux” a seguinte menção: “La traduction française du titre anglais
original [They shoot horses, d’ont they?] est littérale: l’adverbe ‘bien’ est à
prendre au sens comparatif (également) ou interrogatif, et non qualitatif
(correctement)”. Algo como: A tradução francesa do título original em inglês é
literal: o advérbio ‘bem’ no seu sentido comparativo (igualmente, também) ou
interrogativo, e não qualitativo (corretamente, bem).
Este sentido da palavra
“bien” (bem) tinha me escapado inicialmente. Agora faz mais sentido a tradução
francesa para o título do livro e do filme, guardando também coerência com as
traduções portuguesa e espanhola (estas apenas para o livro). Façamos um
exercício de tradução literal, observando que, mesmo a tradução literal do
verbo “achever” comporta variantes, como atirar, matar, sacrificar, acabar,
abater, dar o tiro de misericórdia:
a)
do inglês para o português: “Eles atiram em cavalos, não atiram?”
b)
do francês para o português: “A gente também atira em cavalos.”
c)
do espanhol para o português: “Por acaso não matam os cavalos?”
Mas estes conceitos se
aplicam também ao título original do livro A
existência de Deus comprovada por um filósofo ateu “On achève bien les hommes”, simplesmente substituindo a palavra
“chevaux” (cavalos) por “hommes” (homens)? “Eles atiram em homens, não atiram?”,
“A gente também atira em homens” e “Por acaso não matam os homens?”. Ou o
título está com um sentido alternativo utilizado pelos franceses, a exemplo dos
expostos neste texto?
Bem, entendendo não ser
possível que, na continuidade da leitura do livro A existência de Deus comprovada por um filósofo ateu, não aflorasse
explicitamente o motivo pelo qual o autor deu o título ao livro (o original, em
francês, não o brasileiro), segui em frente. Quase ao final do livro (nas
páginas 324 e seguintes), a revelação. Para um mínimo entendimento, devo fazer
uma transcrição um pouco mais longa:
“Hoje, no momento em que
nosso destino político está essencialmente nas mãos do Mercado, vale dizer, de
comerciantes e financistas sem escrúpulos, de magos duvidosos, de médicos e
cientistas descontrolados, alguns dos quais se limitam em grande medida a
retomar, com outros meios, as terríveis experiências de um Mengele, é essencial
a abertura de um espaço político e filosófico de discussão dessas questões.
Pois o fato é que existe hoje um programa de fabricação de uma
‘pós-humanidade’. Esse programa é oculto: os neotênios não devem ser
assustados, não se deve, sobretudo, permitir que eles entendam que estão sendo
levados a trabalhar na abolição do neotenato – vale dizer, em seu próprio
desaparecimento. Mas esse programa é tão poderoso que acaba por se revelar,
aqui ou ali. Assim é que Francis Fukuyama, o grande arauto do neoliberalismo,
que havia proclamado depois da queda do Muro de Berlim o início do fim da
História, com o advento generalizado das democracias liberais, teve de recuar e
reconhecer que o triunfo do Mercado não era o último episódio da história
humana, mas que um outro haveria de seguir-se: a transformação biológica da
humanidade. Mas infelizmente essa tomada de consciência serviu apenas para que
ele mergulhasse em um novo erro de apreciação. Fukuyama quer crer, de agora em
diante, que o neoliberalismo será capaz de nos preservar dessa engrenagem
fatal... embora seja exatamente isso que nos conduz diretamente a essa
engrenagem! Para ele, com efeito, a democracia de mercado seria um estado
perfeito se não fosse ameaçado pelo desenvolvimento de certas técnicas: ‘uma
técnica poderosa o suficiente para remodelar o que somos pode perfeitamente ter
conseqüências potencialmente negativas para a democracia liberal’.
Evidentemente, convenhamos, se não existem mais homens, a democracia corre o
risco de funcionar no vazio. Para evitar esse perigo, bastaria que ‘os países
regulem politicamente o desenvolvimento e a utilização da técnica’, segundo
Fukuyama. Boa intenção sabidamente irrealizável que não custa nada e permite a
Fukuyama não tocar no essencial: é o Mercado que alimenta o desenvolvimento sem
fim das tecnociências, as quais, não reguladas, conduzem diretamente à saída
para fora da humanidade. E, no entanto, esse vínculo fica claro: como o Mercado
implica o fim de toda forma de inibição simbólica (vale dizer, o fim da
referência a todo valor transcendental, em proveito apenas do valor mercante),
nada, se ficarmos nesta lógica, poderá impedir que o homem se liberte de toda
idéia que pretenda mantê-lo em seu lugar e saia de sua condição ancestral assim
que tiver condições de fazê-lo. Não é, portanto, apenas a ciência, como se
costuma dizer, mas a ciência acrescida do efeito deletério do Mercado sobre os
valores transcendentais que estaria em condições de permitir a realização desse
programa. Ontem, o homem neotênio se completava mediante suplementos
teológicos-políticos, próteses e gramáticas. Hoje, a contestação em ato desses
suplementos pela lógica do Mercado nos faz temer que se inaugure uma nova época
na qual a velha questão do acabamento do homem seja enfrentada de maneira
inteiramente distinta: não mais mediante procedimentos simbólicos, mas por
meios reais. O acabamento deveria, então, ser entendido em outro sentido: o que
se encontra muito claramente numa expressão como ‘acabar com os homens’*.
Volto, assim, a fazer a pergunta que já havia feito no fim de Os mistérios da trindade: existiria em
nossas democracias pós-modernas, nas quais tudo pode ser dito, uma instância
política para decidir se queremos ou não essa mutação? Nada poderia ser mais
duvidoso.
Ora, a ausência desse
lugar pesa muito. Vemos aonde poderia conduzir a saída do neotenato:
diretamente à entrada numa era de produção de indivíduos considerados
superiores, tendo escapado ao engendramento. Ou de indivíduos inferiores para
as tarefas subalternas. A existência, hoje em dia banalizada, de organismos
geneticamente modificados deveria deixar-nos com a pulga atrás da orelha: seria
possível a curto prazo fabricar, por clonagem e modificação genética, novas
variantes humanas.
*
Expressão usada com duplo sentido: fazer
o acabamento de e acabar com. Ela
integra o título do livro na edição francesa – On achève bien les hommes... (N.da.R.T.).”
A nota acima transcrita
(no livro está ao pé da pagina 326) é da revisora técnica da tradução Marilia
Amorim. Se essa nota já constasse do início do livro (o que seria algo
perfeitamente concebível, já que se trata da explicação do sentido do título
original do livro), eu não teria tido (e de resto, os leitores em geral) todas
essas dúvidas e questionamentos aqui expostos. Mas claro, aí eu não teria lido
o livro Mas não se matam cavalos, de
Horace McCoy, nem visto o filme A noite
dos desesperados, o que teria sido uma grande perda. Observa-se, ainda, na
nota, novamente, a omissão (representada pelos três pontinhos) do subtítulo
original do livro “De quelques conséquences actuelles et futures de la mort de Dieu”, ou, em
português, “Algumas conseqüências atuais e futuras da morte de Deus”,
obviamente, porque contradiz o título do livro em português, conforme já
comentamos.
De qualquer forma, entendo
que o autor, embora fale no constante acabamento que o homem vem recebendo em
decorrência dos avanços técnico-científicos e da lógica do Mercado, transmite-nos
a idéia de que esse “aperfeiçoamento” serve para descaracterizá-lo como ser
humano, acabando por matá-lo (é o “tiro de misericórdia”), dando origem a um
novo ser, pós-humano.
De sorte que, o título
do livro em português poderia ser algo como O
acabamento do homem, ou algo similar, com nota explicativa semelhante à constante
da página 326, quando o autor deixa claro o sentido da expressão utilizada; mas
nunca o título enganoso e fora de propósito A
existência de Deus comprovada por um filósofo ateu. |