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Erotico-->33. UM DIA CHEIO -- 07/02/2003 - 06:05 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Deodato, ao contrário das mães de Banguela e de Juliano, atendendo a recomendação expressa de Antunes, não interrogou o filho assim que chegaram a casa. Dissera-lhe o soldado:

— As coisas todas vão entrando nos eixos. Não permita que Cléber, simplesmente, se defenda, inventando mentiras. É melhor deixar que as idéias fermentem no cérebro dele do que fazer ele acreditar que está enganando todo mundo. Amanhã, depois de uma boa noite de sono, você vai ver que estará mais acessível, mais cordato, mais afim.

Deodato desconfiava de que havia premissas espíritas nesse palavreado, como se inspirado tivesse sido o amigo diretamente pelo plano da espiritualidade. Pensava nele desenvolvendo a mediunidade e via em todas as expressões a tradução do ideário dos protetores. Por isso, apesar da vontade de se inteirar da verdade dos acontecimentos que levaram o filho e companheiros à delegacia, cumpriu o conselho, conservando-se em silêncio.

É verdade que Maria estava assustada, vendo a cadeira com as rodas quebradas, quase não dando para movimentar. Mas era tarde da noite e estava muito cansada. Os arranhões e hematomas tinham recebido curativos no pronto-socorro, de sorte que não tinha mais com que se preocupar de imediato. Trabalhara o dia todo e o sábado prometia ser de arromba, dado que a patroa iria receber convidados para o almoço. Sendo assim, resmungou uns avisos de que o rapaz precisaria tomar mais cuidado, especialmente com as amizades, e foi dormir o restante das horas.

Quando Cléber acordou, o dia ia alto. Nove horas e tanto. O pai estava cuidando da comida, pois lhe cabia cozinhar na ausência da esposa. As meninas brincavam lá fora, para não perturbarem o sono do irmão. Com elas, a jovem governanta, Rosângela, que ficara vivamente impressionada com a condição de sofrimento do rapaz, tanto que não via a hora de estarem juntos para perguntar-lhe certos fatos relacionados com a perda das pernas. Não teriam, contudo, tempo para conversarem durante todo o dia, porque logo apareceu Antunes, com o projeto de conduzir o peralta para uma excursão educativa.

— Você vai comigo fazer um passeio.

— A cadeira está avariada.

— Não se preocupe. Nós vamos e voltamos na viatura.

— Pra onde você quer me levar?

— Pra um lugar que você ainda não conhece. Já avisei teu pai. Fica sossegado que você vai gostar de visitar o Centro Espírita.

Cléber avaliou a situação:

“Se eu disser que não, vou ter de aturar as perguntas a respeito do que tenho feito e do que fazia no local da agressão. Vai perguntar o que fazem os outros dois e se estão indo na escola. Vai ser uma chateação. Se ele me levar no Centro, vai me pôr ouvindo alguma lengalenga religiosa e depois vai querer saber o que achei de tudo. Aí, faço uns elogios, digo que está tudo bem, que as explicações foram claras, invento alguma dúvida, dou motivo pra ele assuntar à vontade e me livro do interrogatório.”

Ao passar pelo terreno livre na frente da casa, avistou Rosângela, que lhe acenou, como a lhe desejar boa sorte. Fez de conta que não viu, mas interessou-se em observar o jeito da mocinha, cujos seios apontavam sob o vestido pobre e justo de menina que está crescendo. As irmãs se escondiam atrás da outra, talvez com medo do monstro de pernas de madeira.

Na viagem, Antunes foi dando as primeiras idéias do que iam encontrar:

— Hoje é dia de atendimento das pessoas carentes. Nós chamamos de “assistidos”. É preciso que as pessoas preencham uma ficha e prometam cumprir algumas obrigações. Uma delas é manter os filhos na escola: de dia, se não trabalham: à noite, se ajudam os pais em casa ou em algum emprego.

— Todo mundo cumpre direitinho?

— Vejo que você é desconfiado. É claro que não temos recursos pra acompanhar cada família. Mas, às vezes, enviamos questionários aos diretores das escolas. Aí, os faltosos recebem novos conselhos...

— ... e ficam sem os alimentos e os trocados.

— Você se engana, se pensar que estamos cobrando as coisas. Nós só mostramos que eles têm muito a perder, se não derem instrução às crianças. A nossa filosofia, ou seja, a doutrina de Allan Kardec exige muitas leituras. Se a pessoa não tem instrução, vai deixar de entender muita coisa.

— Quando o senhor lia pra mim, não era tudo que eu compreendia.

— Estou sabendo. Mas eu procurava explicar de acordo com os meus conhecimentos. Você pensa que eu entendo tudo? Vai demorar muito pra isso.

Cléber não queria deixar a conversa descambar para os acontecimentos da noite:

— E que há de tão interessante em ver um punhado de mendigos beijando as mãos dos protetores?

— Não seja crítico sem conhecer. Lá não existe ninguém abonado. Se existe, não faz nada diferente dos outros: costura, cozinha, fornece medicamentos, procura aconselhar, explica, ajuda, auxilia, conforta, diz umas palavras de bom ânimo. Tudo depende da necessidade das pessoas. Muitos dos que trabalham pedem ajuda pros outros. É uma verdadeira sociedade beneficente.

— “Beneficiente”...

— Eu também pensava que fosse assim, mas me explicaram que se diz “beneficente”. E eu agradeço a você a oportunidade de lhe ensinar alguma coisa.

Cléber não acreditou mas deixou passar batido o esclarecimento.

Nesse meio tempo, chegaram. Havia pouca gente no salão principal, onde poderiam acomodar-se cerca de cem pessoas, talvez um pouco mais.

Com a ajuda de Antunes, o rapaz foi caminhando de muletas até os fundos do prédio, onde ficava a cozinha. Lá, a azáfama era grande. Várias mulheres preparavam a comida, em caldeirões bem grandes. Ao verem Antunes, foram logo pedindo ajuda.

— Quer descascar batatas, por favor?

Josefa falava em tom imperativo. Era mais uma ordem do que um pedido.

— Este daqui é Cléber, filho de Deodato.

— Nem precisava dizer. É a cara do pai, só que mais bonito.

As outras se aproximaram curiosas. Mas não procuraram pelas pernas de pau. Queriam ver a semelhança fisionômica.

— É bem parecido.

— Não nega a raça.

— Os olhos são iguaizinhos.

— Ele veio pra ajudar?

— Você quer ajudar?

— O que devo fazer?

— Que tal descascar as cebolas?

— ‘Tá legal!

Logo lhe empurraram um cesto enorme e deram alguns palitos de fósforos para colocar entre os dentes:

— É pra você não chorar.

Enquanto iam descascando, iam conversando:

— Quem é que paga as despesas?

— Cada um dá o que pode. É uma espécie de contribuição social, como num clube. Mas o dinheiro mais graúdo vem de subvenção do Governo, porque esta entidade é reconhecida como de utilidade pública. É uma verba anual. Mas não é suficiente. Precisa que a turma arrecade mais, vendendo livros, fazendo campanhas junto aos comerciantes, participando das quermesses da igreja com uma ou duas barraquinhas...

— E os padres deixam?

— Depende do padre. Tem os que deixam e os que proíbem. O que nos ajuda muito são as doações de roupas e de alimentos. E assim vamos levando. Também não são muitas as famílias a quem damos assistência. O forte deste Centro é a sopa que distribuímos pelo bairro toda noite. Essa é a principal atividade, a principal tarefa de benemerência. Você se lembra do lema de Kardec?

— Fora da caridade não existe salvação.

— Boa, rapaz! É isso aí! A turma aqui resolveu tomar como divisa essa frase e todos procuram fazer o melhor que podem. O teu pai esteve conosco muitas vezes. Agora que ele está cuidando da tua mãe e das tuas irmãs, não tem vindo muito. Aliás, só vem pra uma ou outra reunião. Até a tua mãe tem comparecido. Você sabia?

— Não.

— Pois veio duas vezes esta semana. E prometeu voltar na semana que vem.

Cléber pensou na matreirice da mãe:

“Deve estar empenhada com a ajuda ao Gaspar.”

Parecendo ter lido o pensamento do garoto, Antunes complementou:

— Eu acho que ela ficou agradecida por teu pai não estar bebendo mais e estar muito mais calmo. Por falar nisso, ele brigou com você por causa de ontem?

— Não brigou nem deveria. Nós não tivemos culpa...

— Eu sei que foi você quem procurou a polícia. Vocês não foram detidos. Mas os teus amigos estavam drogados. Isso poderia fazer com que os investigadores segurassem vocês lá ou mandassem pro Juizado de Menores. A tua idéia de me chamar salvou os três.

— Mas nós não fizemos nada. Fomos roubados e agredidos...

— Porque estavam onde não deviam. Se tivessem vindo pra cá, estariam em boa companhia. Foram se meter...

— Nós não pensamos...

— Não tem importância. A vida ensina. As experiências devem ser bem aproveitadas. Não vão cair noutra. O pior é que aqueles dois estão viciados. Onde é que arrumam dinheiro...

— Eles me ajudam com o artesanato.

— E você dá um tanto pra cada um.

— Nós dividimos.

— O teu pai me disse que você guardou uns quatrocentos reais na primeira semana. É muito mais do que teu pai e tua mãe ganham juntos. Sabe o que eu penso? Penso que você está pedindo, expondo os tocos das pernas.

Não havia insinuação. Antunes falava como se tivesse visto. Cléber se desconcertou. Resolveu arreganhar os beiços:

— E isso é crime? Crime é me terem tirado as pernas. Agora a sociedade está só compensando. Quem tem dó é porque tem culpa. Quem dá é porque tem.

— Não precisa ficar abespinhado. Eu passei a manhã toda falando que nós damos de tudo para os necessitados, justificando o ato da doação e do recebimento. Foi o Cristo quem disse pra que as pessoas vendessem e dessem tudo aos pobres, se quisessem seguir os seus ensinamentos, pra ir com ele ao reino do Pai. Mas é preciso entender que os bens devem ser utilizados com inteligência. Sustentar o vício com o dinheiro da comiseração pública, por certo, não vai ser tido em boa conta, quando vocês voltarem ao etéreo.

— Vai falar isso pra eles. O que eles querem é ficar numa boa.

— E você? Você também está fumando?

— Eu, não.

— Por quê?

— Porque eu sei o que acontece com os viciados. Eu vi na televisão e confirmei no hospital. O Doutor me proibiu...

— Proibiu ou explicou?

— Ele disse que eu não teria muito futuro...

— E você ficou com medo?

— Não fiquei, não. De verdade. Só que eu queria vencer na vida. Com meus próprios meios. Com a minha inteligência.

— Então, vai ter de aconselhar os dois...

— Já fiz isso. Mas eles não querem saber...

— É porque têm dinheiro sobrando.

— Eles sempre deram um jeito.

— Trombadinhas...

— Eu não disse nada.

— E eu sou policial à toa?...

— Quer dizer que vai ficar em cima da gente?

— Quer dizer que estamos terminando de descascar as batatas e as cebolas e você não chorou nenhuma lágrima.

— Você não me respondeu.

— Respondi, sim, quando eu trouxe você pra ver a gente trabalhar pelos irmão sofredores. Agora nós vamos lá fora acompanhar a distribuição do que tivermos aos irmãos, segundo a necessidade deles. Eu só quis pôr as coisas em dia.; em pratos limpos. Não queria que você descobrisse que estamos sabendo de muita coisa e que vamos perseguir o grupelho. A vida, vocês vão ter de aprender sozinhos. Gostaram da amostra de ontem? Pois esperem por muito mais. Quando descobrirem que vocês estão ganhando tanto dinheiro, vão encontrar quem venha tirar de vocês. E se vocês quiserem reagir, vão cair na esparrela do revide pelas armas. Vão matar ou morrer, que é o destino dos bandidos da rua. Aqueles outros lá do alto da sociedade... Isso é uma outra história.

Antunes se cansara de tanta explicação. Tinha imaginado falar algumas coisas. Não esperava que Cléber fosse assim sagaz. Teria de deixar os fatos falarem por si mesmos. Pôs o garoto no meio do terreno, em um ponto onde pudesse observar o que se passava ao derredor e se dirigiu ao interior do prédio.

O rapaz foi obrigado a escutar algumas conversas, nas quais os interlocutores demonstravam, com clareza, os objetivos de estarem ali. Percebeu a avidez de quem somente queria receber bens materiais. Inteirou-se de alguns problemas sérios de relacionamentos, havendo mães que se queixavam dos filhos preguiçosos, viciados e marginais. Intuiu o sofrimento de mulheres que apanhavam dos maridos ou companheiros. Ouviu os conselhos dos atendentes, desejosos de demonstrar o valor das diversas virtudes para o que chamavam de progresso ou evolução do espírito. Sentiu a boa vontade deles e o esforço para acertar nas palavras ou para remendar as fissuras provocadas pelos constrangimentos, pela violência, pela incompreensão. Os dramas humanos corriam ali no varejo da fraternidade e da solidariedade de um povo trabalhador e honesto. Ninguém veio dar-lhe nenhum conselho nem pedir-lhe momento de atenção. Situava-se angustiadamente fora da paisagem humana. Era como se nada daquilo lhe dissesse respeito e, no entanto, sofria inexplicavelmente por estar diante de tanta injustiça, de tanta insensatez, de tanta tragédia. Começava a compreender que o Pai deveria ter algum alto objetivo, trancando os espíritos imperfeitos nesse cárcere de carne. E olhava para as pernas de pau, como se se tivesse libertado de um pedaço da clausura. E essa liberdade o punha diretamente defronte de si mesmo, no início da vida intelectual, quando deveria, com os de sua idade, estar correndo atrás de uma bola, surfando na praia, paquerando as garotas.

Quando Antunes veio buscá-lo, quedou silencioso. Ruminava as idéias que lhe haviam passado pelo cérebro de revoltado, encaixando as noções espíritas explicadas pelo diligente doutrinador e amigo. Iniciava-se a sua transformação espiritual.

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