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Contos-->Carpe Diem -- 13/01/2000 - 23:34 (Erasmo Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Meteu a cabeça na quina da mesa a primeira vez; um hematoma roxo estourou na testa, com um buraco sangrento no meio. A dor cauterizava seu ódio. De novo; o sangue espirrou sobre a cara, escorrendo pelos olhos, boca e nariz. Ficou tonta e decidiu parar antes que apagasse.
Seria muito simples cometer aquelas ações; o que faltava em todo mundo era coragem e vontade. Arrastou-se até alguma cadeira do quarto e desabou atordoada. Como tinha a visão embaçada de vermelho, começando a pingar sangue pelo queixo, passou a língua ao redor da boca limpando momentaneamente o estrago facial. Rosto de modelo, nunca mais. Seus pensamentos processavam sua próxima atitude enquanto observava várias bonecas em cima da cama e da estante delicada. Uma gracinha. Mas não procurava por brinquedos naquele momento, e continuou mexendo os olhos, trêmula, desgastada. Então encontrou o espelho da pequena penteadeira, com muitas escovas e perfumes, bem arrumado e cor-de-rosa. Foi um único soco, estalando todos os dedos da mão fina e pequena. Um caco enorme perfurou superficialmente a pele branca, espumando mais sangue; não hesitou em pegar um dos estilhaços. Parecia até que sabia qual estava mais afiado entre tantos. Conseguiu focalizar suas feições refletindo no que restara do espelho. Cabelo lindo, cheiroso e sedoso, que todo moleque espinhento( e muito coroa também) se borrava para tocar. Segurou com uma das mãos uma grande mecha; com a outra, apertando a lâmina improvisada até senti-la ferir a sua palma gentil, retalhou todo o corte caro do melhor cabeleireiro da cidade. Restaram só alguns buracos esfolados numa cabeça mal raspada após instantes trabalhando com suas adoráveis madeixas...a corrosão da agonia misturava-se com sua dor. Ainda era pouco.
Desesperada, abriu perfume por perfume e virou na boca. Engoliu, tossindo e salivando, derramando algumas gotas sobre as feridas, causando um ardor terrível; Após alguns momentos de pausa, seu estômago reagiu, renegando todas as substâncias ingeridas. Cambaleou até o banheiro da suite, mas vomitou no chão, convulsivamente, antes mesmo de atingir o sanitário. Engasgou algumas vezes, não o suficiente para que terminasse sua festa. Levantou os olhos borrados com sangue, rosnando palavrões em um tom baixo e doentio. O que estava faltando ainda? Um, dois, três, quatro; contou bem devagar, para que desse tempo a sua respiração ofegante. Com o dorso da mão, limpou a boca cheia de uma baba grossa e avermelhada. De repente, o papel de parede do quarto lhe chamou a atenção. Como não notara aquilo antes? Ainda segurava o caco; dirigiu-se com dificuldade para atacar a parede, cortando e estragando o trabalho decorativo que suas amigas tanto invejavam. Subiu na cama, apunhalou o colchão e despedaçou a espuma, jogando-a para cima. As bonecas. Parou de se mover para encara-las.
Sempre estiveram lá, assistindo, com a omissão que todo objeto inanimado tem, a vida dela passar. As dezenas de olhos de plástico se moviam para cima e para baixo, zombando da menina miserável , da adolescente bonita, da promissora graciosidade feminina. Quinze aninhos cobrindo seu hímen macio .Ela saltou para trás por instinto, assustada. Escondeu-se na frente da cama, temendo olhá-las de novo... quando o fez, ainda zombavam. Fúria destrutiva, atirou-se contra todas e distribuiu seu carinho maldito através de golpes descontrolados. Foi bom, foi ótimo. Cabeças voando, roupinhas desfeitas, porcelanas rachando seco no chão.
Quando acabou, parecia mais leve, mas não o suficiente; talvez estivesse apenas começando. Lembrou de suas roupas e viu que as que vestia estavam encardidas com a sujeira orgânica. Abriu seu armário violentamente; puxou as gavetas e arrancou todas as vestes do corpo sem se importar com eventuais arranhões. Fez uma montanha de pano com sua boutique cara e farejou o álcool embaixo da pia do banheiro. Pegou-o, despejou o frasco todo sobre os acessórios da moda. Um isqueiro dentro da penteadeira(fumava uns cigarros escondidos dos pais, às vezes) foi a palavra final para a fogueira de luxúria. As chamas arderam levando seus últimos bons sentimentos.
O resto da casa, de repente, pareceu-lhe uma tentação dolorosa. Destrancou a porta do seu quarto dos sonhos; abriu-a, encontrou o corredor. Até a hora do almoço estaria sozinha. Foi para o quarto dos pais; lá, remexeu gaveta por gaveta, olhou embaixo da cama, e encontrou o que queria dentro de uma caixa de sapatos no armário do pai: revólver e balas, bem organizado, enrolado na flanela amarela. Vagou nua até o térreo, arranhando o corrimão da escada com suas unhas quase compridas.
Viu a sombra do lustre sobre o tapete persa da sala de estar. Será que ela conseguiria acertá-lo? Um filete de riso escapou de seus lábios feridos, para aos poucos tornar-se uma risada, uma gargalhada incontrolável. Mirou no teto....antes que apertasse o gatilho, escutou um latido amigável e virou-se. Cachorro da casa correndo até ela para uma carícia. Nem lembrava dele. Antes que o totó chegasse perto demais, ela moveu a arma em sua direção e atirou. No estômago, seguido de um uivo alto, choro animal e sangue no tapete. Sua mamãe iria lhe matar se visse a sujeira. O pobre bicho gemeu, agüentando as vísceras perfuradas por alguns instantes de agonia. Não tardou e partiu para a terra dos ossos. Ela ficou parada na frente dele, observando cada momento da morte. Ainda saía fumaça do cano da arma carregada; cheirava a pólvora e rancor. Limpou a mente mais uma vez, e foi se sentar no sofá estampado diante da televisão.
Era a vez do controle remoto; pegou-o, como se fosse algo realmente precioso. Permaneceu analisando todos os botões e contornos do objeto, talvez pensando em como aquilo poderia ser fatal. Ligou a televisão, navegou pelos canais e parou na ópera belíssima que nunca havia escutado antes. Acordes líricos, arranjos melodiosos e instrumentos estranhos a seu mundinho de fadas.
A campainha tocou. Estava na hora.
Pela vidraça lateral, viu quem estava do outro lado. Eram seus pais, chegando cansados da rotina infernal e do trabalho desgastante. Abriu a porta, escondendo-se de lado, como se aquilo sanasse seu contentamento negro. Ambos entraram, e a ópera atingia um dos momentos altos de execução. Quando o casal simpático se virou, ela estava com o cano do revólver dentro da vagina. Foi um único tiro, atenuado pela música erudita. O corpo bem torneado da garota tombou no chão, emplastando o tapete com mais sangue. Nem deu tempo de seus pais entenderem o que havia acontecido; quando sua mãe gritou, um sorriso culposo se fez na boca carnuda do cadáver. E a sinfonia acabou.
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