A noite fria maltratava o corpo daquele homem. Do outro lado da rua, na casa em frente, a mulher o observava sem dar sinais de impaciência. Ganhou a rua uma outra criatura, indo na direção daquele que, aparentemente, vigiava os passos dos transeuntes. A mulher começou a acenar para a esquina onde estava o homem de calças escuras e chapéu de palha. Ele não acenou de volta. Aproximou-se o dia e as vozes já se faziam ouvir. Dos três presentes naquela cena, apenas um permanceu firme em seu posto. A mulher saiu da janela para se deitar, vencida pelo sono, já que o seu marido não chegou depois das três da manhã, como sempre fazia desde que se casaram -- ele era garçon. O homem que dobrou a esquina, dando a impressão de que ia entrar na casa onde estava a mulher, seguiu em frente até sumir no horizonte. O homem da esquina, firme em seus propósitos, observou a luz do dia chegar, e com ele a agitação da cidade. A cena se repetia há cinco anos, desde o dia em que, ao chegar em casa depois do trabalho, o homem da esquina viu debaixo de sua cama um par de meias que não eram suas. Momentos antes, cruzara com aquele que considerava ser seu melhor amigo, espantado e com pressa, como se fugisse da políciai. Na verdade, o único elemento constante daquele pedaço do mundo era o homem de calças escuras e chapéu de palha, alguém tão privado da razão que não atentou que a mulher a lhe acenar por alguns instantes na noite anterior era a adorável criatura com quem se casara havia cinco anos; e o homem que lhe desejou boa noite um dia fora seu melhor amigo. |