Depois de muito relutar, assisti à primeira
eliminatória desse festival que a Globo insiste
em nos fazer crer que seja um acontecimento
no âmbito da Música Popular Brasileira.
A única novidade mesmo fica por conta dos
cenários: cada canção trazendo já o seu kit(sch)
completo. Numa delas, havia uns bonecos inflados,
balançando no alto, por entre
um não acabar mais de estrelinhas, miríades delas,
num céu improvável. Me fez lembrar aquele cenário
espantoso do show dos Rolling Stones, cuja
tournée inclui São Paulo e Rio de Janeiro pela
primeira vez em anos, cenário que a
auto-complacência de alguns deslumbrados queria
creditar à inspiração de Joãosinho Trinta. Aquela
velha história do gênio brasileiro pilhado pelos
donos do mundo. Em termos de cenografia,
houve de tudo, até um trenzinho caipira querendo
atropelar a platéia com recordações de
idos tempos, antes, muito antes da banda passar.
E, cá entre nós, aquele intérprete da música do
trenzinho, aquilo é coisa feita. O rapaz
parecia mesmo acreditar que ali começava uma
carreira das mais brilhantes ou, pelo menos,
de um certo sucesso. De chapéu ou depois de tirar
o chapéu, o moço passa uma impressão das mais
esquisitas. E o tal trenzinho foi tirado de cena,
ex abrupto, ainda enquanto o moço e seu gordo
parceiro entoavam o refrão que terá, por certo,
emocionado o júri. Xi, Pirituba...
E a lista dos jurados foi lida pelo tão nosso
Serginho Groismann, numa brecha qualquer do
extenso programa, sendo quase repetida antes
do anúncio das escolhidas. Mas o Serginho houve
por bem deter-se apenas no nome do poeta
e letrista Geraldinho Carneiro.
Bem, ganhou a bela interpretação
da Mônica Salmaso, "emoção pura", no dizer dela
mesma, mas todo festival precisa ter o seu
"Eu e a Brisa", não é mesmo?
Voltando ao Serginho Groismann, na Globo ele parece
fadado a aparições chiques como essa, não tendo
exatamente um papel sobre o palco. Nisso também,
a grande novidade, o apresentador e os
comentaristas têm o mesmo papel, ou seja,
quase nenhum. É só encher lingüiça, como se
dizia nos meus tempos de colégio. O espetáculo
não pode parar. Daí, a insistência com que
abordavam os espectadores presentes ao recinto de
onde a coisa era televisionada. Até o Sócrates
Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira,
o irmão do Raí, estava ali para conferir a
performance da conterrânea Simone Guimarães, que
se mostrava muito feliz e confiante, aliás, como
todos os outros concorrentes, nas coxias, depois
de sua interpretação, "luminosa", na expressão
também satisfeita da sorridente e sempre
sorridente, e insuportavelmente sorridente Maria
Paula, cujo entusiasmo parece querer dizer que
a vida não passa de um imenso "Casseta & Planeta".
Tudo muito pândego e engraçado.
E algum leitor poderia me jogar na cara esse
ressentimento-fel dos dinossauros, daqueles que
acreditam que festival mesmo só aqueles dos
áureos tempos, ou que a presença do Caetano
Veloso, para fazer o pocket-show do intervalo,
foi, como não poderia deixar de sê-lo, o momento
mais "bonito" da noite, mesmo com aquele vacilo
no momento em que deveria atacar de "Trilhos
Urbanos".
Bom mesmo, em termos de espontaneidade, talvez
o único momento de verdade mesmo nesse suposto
acontecimento musical, foi aquela senhora
da platéia, que precisou fuçar, mas fuçar
muito mesmo, o folhetinho com as letras das
músicas, para não encontrar a sua preferida.
Tê-la-á encontrado? (Ficamos sem saber, pois o
entrevistador seguiu em frente, para concluir,
quase sem sombra de dúvida, que "Taubaina" estaria
entre as classificadas.
Esse moço da "Taubaina", então! Alguma coisa
nele me faz lembrar o Maurício Mattar. Não
musicalmente, não é isso. Mas no semblante,
na expressão já prontinha para um estrelato rápido
e, talvez depois, uma pontinha em novela, ou, mais
depois ainda, alguma fase difícil, um namoro
tumultuado, que ele haverá de superar, é claro.
E tudo isso por ter vivido, com tal precocidade,
os seus 15 minutos de fama.
Ninguém se lembrou de avisar, mas algo me diz que,
para Walter Franco, a direção do festival havia
previsto uma reação, no mínimo, desfavorável.
Tampouco informaram que zen mesmo era o citarista
Alberto Marsicano, de tantos serviços prestados
à cena alternativa de São Paulo.
Mas também se esqueceram de dizer, depois,
que ali atrás, enquanto o mundo entoava "Sozinho"
do Peninha, estava o arranjador que já foi
de Jobim e que hoje é de Caetano, com o seu cello
indefectível e sua invisível batuta, o Jacquinho
(Morellenbaum, para os que não são íntimos).
Deu para se saber que o Brasil da Globo continua
uma terra de canários, neste momento em que
uma equipe de cientistas da UNICAMP,
da USP e da FUNDAÇÃO ROCKFELLER anuncia
o mapeamento completo, pasmem!, do
sistema nervoso dos beija-flores.
Mas volto ao assunto, já que isso não tem nada
a ver nem com festivais. É claro, estou voltando
ao assunto, havia torcidas. No título deste artigo
eu já adiantava: kit(sch) completo. Uma das mais
barulhentas, sem dúvida, era composta por três
garotas, maravilhadas com a energia que tinha
rolado durante a apresentação daquele rap não
sei das quantas. Uma coisa bem jovem, tá ligado?
é isso aí, mano. É a juventude se afirmando.
E o valoroso Serginho Groismann não perdeu a
oportunidade e fez uso daquele seu tom eivado de
credibilidade, informalmente informando que
o "rap" era, na verdade, uma palavra composta pelas
iniciais de "music & poetry" - vejam só quanta
coincidência, em plena música brasileira, aliás,
foi aqui que tudo começou com as emboladas,
Jackson do Pandeiro, e com o Jair Rodrigues
cantando "Deixe que digam, que pensem, que....".
Foi uma das intervenções culturais mais
informativas, sem dúvida, da noite de abertura,
e, não é tão difícil assim prevê-lo, talvez
de todo o festival.
O fato é que acabei assistindo a tudo isso,
depois de muito relutar, porque a campanha
massacrante realizada pela Globo foi para não
dar margem a qualquer dúvida, aquilo ia ser um
porre.
Mas Caetano Veloso também fez questão de incluir
"ALEGRIA ALEGRIA", porque também não ficaria bem
insistir na "injustamente" (diga-se, apenas
de passagem... fica chique!) vaiada "É PROIBIDO
PROIBIR". E deixou o palco exultante, mas também
humilde, se desculpando com o maestro Jacquinho
pela tropeçada, de resto compreensível numa
noite de tanta genialidade tropical e tão permeada
por recordações fagueiras.
Mas houve um grande momento, sim, um lampejo,
um instante de magia, daqueles que nos fazem
acreditar que o país não é essa palhaçada kitsch
que a Globo nos impinge como sendo a nossa
cultura: esse chiquê que já vem tão mal das pernas nos
domingões do Faustão e nas novelas, essa mania
da embalagem vistosa para encobrir o vazio, se
não a lavagem ideológica pura e simples.
Foi por ela, aliás, que consegui vencer a minha
resistência. Foi por ela que enfrentei
galhardamente a hora e meia de quase nada ou
muito pouca coisa. E ali estava, de novo,
o Caetano que dizia, discursando em meio às
vaias para "É proibido proibir", ter entrado
e saído de todas as estruturas, naqueles tempos
em que o viva e a vaia, acreditávamos, brotavam
espontaneamente das platéias.
Hoje se sabe que ele mais entrou do que saiu
das ditas estruturas, e que a sua presença,
ali, só fazia repetir o mesmo gesto ambíguo
tão nosso conhecido em tantos anos de íntima
e intensa convivência com o mito na mesma tela
da Globo. E ele também teve o seu momento,
e ter-se-á redimido, com certeza, perante
os rancorosos dinossauros, como coadjuvante
emocionado da presença negra e forte de
Virgínia Rodrigues, transformando em acalanto,
em mais um lance genial do próprio Caetano,
agora também produtor, uma das músicas
imortalizadas pelo grupo Olodum no carnaval
baiano. Foi num dos ensaios do Grupo
de Teatro do Olodum que ele vislumbrou um futuro,
ainda, para ela, para ele próprio, para nós
todos, para a nossa música. Virgínia Rodrigues
agora é do mundo. E não sei não... Pela reação
da platéia do festival da Globo, parece fadada
a não emplacar por estas bandas. Nem chique,
nem kitsch. Virgínia Rodrigues é puro
alumbramento.
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